O que aconteceria se todos os clichês dos filmes de mortos-vivos desde Romero fossem colocados junto a todos os clichês da cultura otaku japonesa? A resposta é um mangá que recentemente se tornou animação e que carrega todos os problemas de uma geração inteira. Estou falando de Gakuen Mokushiroku: Highschool of The Dead.

Com roteiro de Daisuke Sato e arte de Shouji Saito (será que são parentes?), o mangá conta a história de um grupo de adolescentes tentando sobreviver num mundo onde a maior parte da população foi vitimada por um vírus que as ressuscitou como mortos-vivos canibais. A adaptação dirigida por Araki Tetsuro (Death Note, Aoi Bongaku) ficou por conta do famoso estúdio MadHouse (Trigun, Paprika, o mal-falado Chaos;Head) e contou com 12 episódios exibidos entre Julho e Setembro de 2010, ganhando um OVA “fanservicento” (o sempre usado episódio da praia…) no mesmo ano.

Antes de mais nada vale um aparte para o traço do anime. Shouji Sato, para os que não sabem, antes de ilustrar HOTD, era conhecido por seus trabalhos em hentais e isso pode ser facilmente visto nas artes do mangá e do anime (e olha que mesmo para os padrões de hentais o traço dele é bem… exagerado). A maneira como as imagens são jogadas na sua cara é ridiculamente explícita e vulgar. Quando atacam uma das protagonistas os monstros não tentam mordê-las ou rasgá-las, mas sim apertar, agarrar, cutucar. As cenas que no anime são muito vulgares no mangá são praticamente pornografia. Não há um motivo sequer para que tais cenas existam exceto pela transformação da mulher em objeto sexual puro, algo similar ao feito pelas letras de funks cariocas. É o underground levado ao mainstream.

Sendo uma animação do MadHouse, era de se esperar uma qualidade técnica ótima. E isso é algo que não dá para negar que o anime tem. A animação é muito fluída, fluída até demais em alguns momentos, e as cenas de ação funcionam muito bem. Some tudo isso a uma trilha sonora bem posicionada e temos o clima perfeito para a série. Só que não espere que esse seja um clima de terror.

Muitas pessoas consideram Daisuke Sato um “virgem idiota que queria ganhar dinheiro fácil” por criar um história tão estúpida quanto a de HOTD (que é a sigla oficial do título). E de fato, a história é realmente tão profunda quanto um pires de vela – embora use alguns artifícios interessantes de que logo falarei.

Os zumbis são os típicos mortos-vivos à lá George Romero (cineasta por trás da famosa trilogia dos mortos) e todo o decorrer da obra carrega dezenas de referências à filmografia do diretor – em especial o arco do Shopping que é a mais óbvia referência excetuando do título. E isso poderia ser interessante se não fossem dois fatores: os clichês de anime e tudo não passar de um desculpa para ação acéfala e fanservice. Não vou dizer que detesto esse tipo de coisa, porquanto que Tengen Toppa Gurren Lagann é um dos meus animes favoritos, só que soube ser simplório sem ser vulgar.

Existem pessoas que consideram HOTD o “Dawn of the Dead” japonês, entretanto ele está bem mais próximo de ser o “Resident Evil: Extinction” japa. As imagens são todas claras e os zumbis em geral aparecem em locais abertos, tirando todo o clima de ameaça da situação. Pior que isso só o fato deles serem cegos e insensíveis, dependendo puramente da audição para encontrar suas vítimas (o que me faz perguntar como eles sabem quando estão segurando alguém), assim se tornando meros sacos de pancadas lentos embora em grande quantidade. Também não existe tensão alguma nas cenas, pois desde o começo o espectador sabe que nenhum dos protagonistas vai morrer. O enredo não traz nenhuma surpresa, não cria nada de extremamente original e as situações são as mesmas mostradas em filmes de mortos-vivos. E então, para tentar criar alguma “originalidade” na série, colocam os chavões dos animes.

Todos as personagens principais de HOTD são arquétipos puros que todos já vimos em algum lugar. Temos o garoto normal e pouco popular que do nada vira um herói, a amiga por quem ele é apaixonado, a aluna mais velha super-habilidosa mas que se revela perturbada, o otaku viciado em armas, a garota inteligente e arrogante, a garotinha fofa, a enfermeira burra e peituda e o mascote. E com isso eu resumi tudo sobre os protagonistas do anime. Não há nada além disso neles, nem sequer o mínimo desenvolvimento é tentado.

Toda a filosofia da série se resume em tentar mostrar como as pessoas mudam quando postas em situações de risco, entretanto mesmo nisso a série se contradiz, pois não demora muito para que os “heróis” que deveriam só se preocupar em sobreviver arrisquem tudo para salvar uma garotinha cujo pai foi assassinado. E a coisa continua assim, pintando um quadro distorcido da realidade que culmina na razão do sucesso dessa série.

E então entramos nos aspectos interessantes que eu comentei. Fui levado a assisti-la a conselho de um amigo e quando terminei de ver o último capítulo eu fui até ele e perguntei como ele podia gostar daquilo. A resposta que recebi foi uma das coisas que mais me fizeram pensar até hoje: “não sei”. Não deve ser segredo para ninguém que além de otaku eu sou o que se pode chamar de um grande nerd e esse meu amigo também – talvez até mais que eu. Passei alguns dias tentando entender o que ele viu nessa série e cheguei à seguinte conclusão:  Daisuke Sato não é um “virgem idiota que queria ganhar dinheiro fácil”, mas um “sujeito muito esperto que queria ganhar dinheiro fácil”. Não se pode chamar de idiota um homem que cria algo que simplesmente não teria como deixar de ser popular entre seu público alvo. E o público alvo de Highschool of the Dead é o otaku japonês.

Muita gente não deve saber, mas otaku no Japão é um termo pejorativo usado para descrever pessoas viciadas (que é o significado da palavra) em qualquer coisa que seja. A sociedade japonesa – e a sociedade como um todo – é extremamente exigente, criando muitas vezes diversos padrões de conduta que ditam a vida de uma pessoa e excluindo do convívio social quem não segue tais padrões. Com isso em mente, analisemos os dois pontos-chave de HOTD: os zumbis e o clichês de anime.

Existe uma linha de pensamento filosófica que diz que a crescente popularidade dos zumbis é devido a um sentimento mútuo de descontentamento com a sociedade. Um expoente disso seria a Espanha, onde os imigrantes ilegais tomam os empregos dos Espanhóis criando uma insatisfação geral com os “invasores”, porém em todo o mundo é muito fácil ver mortos-vivos. Experimente olhar para as pessoas caminhando com seus fones de ouvido nas cidades ou olhando desatentamente pela janela enquanto andam de ônibus e terá uma noção do que quero dizer. A infecção zumbi seria uma extrapolação desse sentimento de tirania. Matar um zumbi não é matar um monstro, mas matar a própria sociedade ditatorial.

Agora olhemos para os protagonistas de HOTD: Takashi é um jovem comum, sem nenhuma qualidade e que jamais poderia conquistar o coração de Rei enquanto o popular e distinto Hisashi estivesse vivo. Quando a infecção começa e Hisashi é infectado, apesar de hesitar Takashi o mata e deixa seu caminho livre. Esse é o momento que marca o fim da sociedade. Daí em diante tudo fica mais óbvio. A genial Takagi passa a se interessar pelo otaku excluído Kouta, o mesmo Kouta tornado agora em herói, e a popular Saeko Busujima se aproxima cada vez mais do valente Takashi. Todo o simbolismo está aí, tudo de que um otaku precisa para se perder dentro da fantasia e ter esperança de um dia se ver livre das correntes opressoras. Daisuke Sato pode ser um roteirista ruim, porém ele conhece muito bem seu público e usou isso a seu favor ao criar o mangá, algo similar ao que fez Masami Kurumada em Saint Seiya, porém focando num público muito mais restrito do que o da saga dos Cavaleiros de Athena.

Como disse no começo do texto, Highschool of the Dead carrega tudo que há de ruim na indústria atual. O roteiro é fraco sim, os personagens são vazios sim e a série como um todo é no máximo mediana, entretanto ela dá ao público o que ele quer e em dias onde a comodidade vale mais que tudo isso é certeza de sucesso comercial. Sentar e assistir uma glorificação de sua imagem é mais fácil que pensar na sua vida ruim. No fim, é um anime que encontrou seu público – e espero que esses não se sintam ofendidos, posto que minha critica é dirigida à obra e não a seus fãs ­– e que muito possivelmente continuará uma franquia por mais algum tempo.

A única coisa que me deixa alegre com esse anime é saber que o dinheiro arrecado com ele servirá para financiar obras muito boas que eu espero voltarem a ser produzidas pela MadHouse. Como uma vez disse um amigo meu, “sinto sua falta, Satoshi”.

 

Título: Gakuen Mokushiroku: Highschool of the Dead
Estúdio:
MadHouse
Gênero:
Ação, horror, comédia
Direção:
Araki Tetsuro
Número de Episódios:
12

 

Lista de Episódios
01- Spring of the Dead – Primavera dos Mortos
02- Escape from the Dead – Fuga dos Mortos
03- Democracy Under the Dead – Democracia sob os mortos
04- Running in the Dead – Encontrando os mortos
05- Streets of the Dead – Ruas dos Mortos
06- In the Dead of the Night – Na calada da noite
07- Dead Night and the Dead Ruck – Noite morta e multidão de mortos
08- The Dead Way Home – O caminho morto para casa
09- The Sword and the Dead – A espada e os mortos
10- The Dead’s House Rules – As Regras da Casa dos Mortos
11- Dead Storm Rising – A ascenção da Tempestade de Mortos
12- All Dead’s Attack – O ataque de todos os Mortos