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A tradição literária moderna é cheia de personagens-tipo, indivíduos que representam menos um alguém específico do que uma ideia, um conceito, uma ferramenta narrativa.

Dentre esses está o flâneur, indivíduo de certo modo marginal que observa e tenta compreender essa entidade que chamamos de “sociedade”.

Hoffmann em seu conto A Janela da esquina do meu primo e Poe em O homem da multidão já trabalhavam essa figura tipicamente urbana, porém foi com Charles Baudelaire e suas imagens de Paris que o conceito se consolidou definitivamente na literatura mundial. Vem também de Baudelaire o nome e os temas que inspiraram a obra que nos servirá de assunto dessa vez — Aku no Hana, As Flores do Mal.

Na adaptação do mangá de Oshimi Shuzou, vemos Takao Kasuga, um jovem normal (ou quão normal um jovem que lê Baudelaire pode ser) que acredita em amor platônico, pureza de alma e tem uma paixão por uma garota de sua classe, Nanako Saeki. Até que um dia ele acaba roubando as roupas de ginástica de Saeki e foge com elas para casa.

O problema é que ele foi visto por Sawa Nakamura, que começa a chantageá-lo com o fato, forçando-o a obedecer a suas vontades. Começa então uma história de revolta, humilhação e autodepreciarão que vai lentamente revelando os lados escuros de uma sociedade reprimida.

Talvez alguns estejam se perguntando “por que falar de um anime que teve apenas seu primeiro episódio exibido sendo que essa coluna sempre se deu a tratar de obras completas?”. A resposta é ao mesmo tempo simples e extremamente intrigante: por um estranho jogo do destino, o primeiro episódio de Aku no Hana causou uma reação extrema em toda a comunidade otaku mundial algo que se encaixa assustadoramente  bem no tema que tentei explorar na coluna anterior, ou, mais ainda, nas últimas três — a relação entre público e obra.

Hans Robert Jauss, teórico e crítico literário, propôs, em resposta às linhas críticas existentes em seu tempo, uma Teoria da Recepção, linha crítica que teria como base de sua análise o modo como determinada obra é recebida pelo público. Para Jauss, o valor de uma obra dá-se não por seus valores estéticos ou filosóficos, mas pelo impacto causado por ela na sociedade.

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Para exemplificar sua tese, ele citou o exemplo de Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Considerado uma das principais fontes do romance moderno (e por alguns A origem do romance moderno), Madame Bovary trás uma história de traição conjugal e desconstrução do romantismo até então vigente na literatura europeia. O livro rendeu a seu autor um processo judicial e gerou uma forte discussão na sociedade francesa daquele tempo.

Porém, se há realmente um autor cuja obra tenha causado um impacto verdadeiramente colossal na literatura mundial, sem dúvidas esse autor é Baudelaire. Seu livro de poemas, As Flores do Mal (em francês Les Fleurs du Mal), carregava imagens de uma sociedade entorpecida, cheia de vícios,  mergulhava no erotismo e nos temas mais baixos, chegando mesmo a ser tirado de circulação por “ofender aos bons costumes”, além de ter sido duramente criticado pela burguesia contemporânea.

Ao optar por dar a sua obra o mesmo nome do livro de Baudelaire, Oshimi parece deixar transparecer algumas intencionalidades. Assim como Baudelaire, ele parece tentar criar uma obra que denuncie os males de sua sociedade e gere uma forte resposta pública, usando também do erotismo e da obsessão para transmitir sua mensagem.

Porém, por mais que sua história seja tensa, esteticamente o trabalho de Oshimi é convencional demais para causar um grande impacto. Ao invés de gerar uma onda, Aku no Hana foi abraçado. Se era realmente marcar a sociedade o que Oshimi pretendia, parecia que a proposta iria falhar.  E então veio o anime.

Utilizando-se de Rotoscopia (técnica na qual se grava atores reais executando ações para então se trabalhar animação em cima das imagens), o anime possui um aspecto visual realista e extremamente incomum, de certo modo até mesmo incômodo para olhos acostumados às liberdades tomadas pelo traço nipônico típico.

Não obstante, a direção e trilha sonora também escapam às convencionalidades genéricas que ditam a produção animada  japonesa moderna. O resultado é uma obra idiossincrática, estranha e pesada, diferente o bastante da original para que levantasse comentários. Comentários nem todos elogiosos. De fato, a reação ao primeiro episódio da série variou entre elogios apaixonados da “crítica especializada” e gritos enfurecidos do público. O que não houve foi silêncio. E nesse momento, Aku no Hana adentrou verdadeiramente no território d’As Flores do Mal.

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Tal aproximação está até mesmo internalizada na estrutura da narrativa. As cenas em que vemos Takao, como bom flâneur que é, parado, somente observando, a repetição do dia-a-dia, a imagem da conversa refletida no espelho, a flor que não desperta, tudo constrói o cotidiano de uma sociedade equilibrada, ordenada, mecanizada, enquanto nos coloca de fora, transforma-nos também em flâneurs, sugere-nos também estranhar.

E nisso a rotoscopia é favorável à obra, pois dá às personagens uma aparência perturbadoramente humana — a todo o momento parece haver algo neles que simplesmente não está certo. Há apenas dois momentos em que a ordem é rompida. No primeiro com o surgimento do elemento caótico e perversor, similar ao Satã de Milton, que é Nakamura e o segundo quando Takao vê as roupas de ginástica de Saeki, momento em que a flor negra do desejo finalmente desperta.

O que parece ser profetizado nesses momentos é a catástrofe vindoura, a perturbação da ordem e do status quo.  Como cantado no próprio encerramento, “a flor despertou”.

Porém, ainda resta uma questão. Por que essa adaptação foi tão repudiada?

Quando se pensa sobre uma obra, é necessário pensar que ela foi produzida com determinado público em mente. Cada era, cada região, cada gênero e cada mídia possui um conjunto diferente de indivíduos que nele se insere e cada um desses conjuntos tem convicções e expectativas diferentes.

Mesmo adaptações para mídias distintas de uma mesma obra possuem um público diferente e que irá reagir de modo diferente a ela (o caso de Shin Sekai Yori é um bom exemplo de tal situação). Nesse sentido, é possível dizer que cada adaptação é uma obra em si própria, o que torna mais claro o que ocorreu na transição de Aku no Hana de um mangá para um anime. Assim sendo, se a intenção de Oshimi era realmente causar impacto, então seria possível dizer que o anime de Aku no Hana é mais Aku no Hana que a obra original.

Todo o movimento desse primeiro episódio do anime parece ter sido uma tentativa de demonstrar o impacto que será causado pelo todo. Da controversa técnica de animação à música de encerramento (apenas consigo descrevê-la como uma subversão da febre Vocaloid) tudo parece se somar para a criação de uma obra que, como As Flores de Baudelaire, tenta ser algo que, por amor ou ódio, não possa se ignorar.

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Não uma simples iteração em uma mídia, mas um evento significativo para toda a indústria e cultura do anime, algo que pode ser, talvez, a mais importante obra do tipo produzida na última década. Tudo isso conquistado em um único episódio. O que está por vir, não sei, porém podemos estar presenciando um evento raro e poderoso: o nascimento de uma obra prima.

De fato, a flor despertou.