A notícia da semana passada no meio musical nacional foi a reação negativa de parte do público durante o show do Roger Waters, terça-feira (9), em São Paulo, quanto ao posicionamento político dele ao expor o nome do candidato a presidente Jair Bolsonaro numa lista de figuras neo-fascistas internacionais, exibindo também a hashtag #EleNão – movimento ampliado por artistas daqui e de fora contra o já citado candidato. Foi relatado que uma parcela da plateia reagiu com vaias, xingamentos e deixando o evento. O ocorrido repercutiu na imprensa e nas mídias sociais, com respostas variadas e opiniões censuradoras quanto ao que um artista pode ou não dizer.
Particularmente, vejo como equivocada a reação de tal parcela, que parece ter pago o ingresso e se intitulado de fã do Waters e do Pink Floyd (banda da qual ele fez parte, assinou a direção criativa por anos, usando momentos do repertório em tais apresentações) sem, de fato, entender boa parte das mensagens passadas nas letras de músicas dele. Durante quase toda a tarde de quarta (10), nos trending topics brasileiros do Twitter, a frase “Another Brick in the Wall” ficou entre as mais utilizadas na rede, com um sem número de comentários levando seu significado para lados nada condizentes com o que é praticamente mastigado no videoclipe da canção:
Another Brick in the Wall foi lançada pelo Pink Floyd no álbum The Wall, em 1979, como uma ópera Rock, posteriormente utilizada em apresentações ao vivo conceituais da banda e adaptada num filme de mesmo nome. Uma série de análises foram feitas sobre à época e ainda hoje, como essa do Alex Sandro Alves do Nascimento, professor de Língua Inglesa na Escola Municipal de Educação Infantil e Fundamental José Gomes, através do artigo “As relações de poder na escola: O canto da contestação na música Another Brick in the Wall, de Pink Floyd”, de 2009, sendo uma das mais completas e simples de entender:
Another brick in the Wall (um outro tijolo no muro) música lançada em 1979 transmite ao público uma concepção transformadora do sistema educacional que, em sua ótica, ao invés de motivar as crianças em processo de formação, ele as oprime com suas exigências alienantes e anti-democráticas. Este modelo fascista negligencia os valores éticos e sua ideologia truculenta, seja de maneira torpe, com violência escancarada ou de maneira sutil é abrigada pela ação política institucional educacional. Talvez uma referência ao modelo educacional britânico que, na época, usasse de extremo rigor no trato com os alunos.
(Leia o PDF completo aqui.)
Luta contra o fascismo, contra a alienação, opressão, controle de pensamentos, massificação, destruição da individualidade e fôlego infantil em prol de moldar novos cidadãos iguais para que sirvam ao status quo (“tijolos”, num contexto de divisão mundial, muro de Berlim etc.), várias dessas mensagens podem ser pescadas em “Another Brick in the Wall”. E enquanto todo esse cenário pode parecer intelectual demais, até meio distante ao que é tratado aqui no JBox, é bem fácil enquadrá-lo com algo de muito sucesso – e atual – da mídia pop japonesa: Shokugeki no Souma (Food Wars) – San no Sara. Sim, a mais recente temporada do anime passa uma mensagem extremamente parecida com a música do Pink Floyd, com o intuito do The Wall e com a postura do Roger Waters nesses shows.
Shokugeki no Souma é um anime iniciado em 2015, com animação do J.C.Staff, que adapta o mangá de mesmo nome do autor Yuto Tsukuda, publicado pela Shueisha desde 2012. A trama leva propositalmente uma série de clichês de histórias shonen para o ambiente culinário. Temos o protagonista Yukihira Souma, que passou a vida cozinhando com o pai num restaurante de bairro, popular, indo para uma conceituada escola de gastronomia. Nela, há todo um sistema de castas e competições entre alunos, que são frequentemente colocados em situações que os forçam a melhorar, exercer a criatividade, trabalho em equipe e coisas do tipo. Rolam os shokugekis, duelos culinários em proporções épicas, “acampamentos” onde eles cozinham um contra o outro sob a supervisão de ex-alunos já formados, “eleições” para definir os melhores de cada ano, estágios, festivais e outras ocasiões pontuais.
Souma, inicialmente, é visto como um outsider, como alguém sem o refinamento necessário para frequentar tal ambiente. Conforme os arcos passam, ele adquire a amizade e o respeito de vários galhos da fauna estudantil, embora sempre apareçam outros grupos mais ególatras e todo o ciclo precise ser repetido. Inclusive, contra uma patota de mais alto nível intitulada “Elite dos 10”.
No mais recente run do desenho, esse grupo com os 10 maiores alunos da instituição dá um “golpe de Estado” contra seu atual diretor, destituindo-o para elevar ao poder um ex-aluno banido, mudando totalmente o intuito por trás da escola. Enquanto o ideal original pregava por um local onde os alunos pudessem desenvolver seus talentos às suas maneiras, exercendo a criatividade, fornecendo o aparato para que eles se tornassem chefs únicos, o plano desse novo diretor, dos alunos que contribuíram com o golpe e de uma organização por trás de tudo isso vai totalmente ao oposto, pré-estipulando receitas, modos de preparo e de ensino que os alunos devem seguir. Agora, os estudantes não devem pensar, não devem criar, devem apenas obedecer ao que foi ditado, como se fossem novos tijolos na parede.
O roteiro aprofunda ainda mais essa questão, mostrando que o plano é não só modificar por completo a cabeça de todos naquela escola, como “limpar” todo o Japão de restaurantes que não sigam esses ideais. O vilão orquestrador disso tudo tem em sua cabeça que toda a comida que não é altamente refinada (com parâmetros totalmente individuais) deve ser erradicada, funcionando apenas como ração para animais. Aponta que perspectivas diferentes estão erradas, que todos devem obedecê-lo por ele ter um conhecimento “maior” que o resto. Para forçar seus ideais, usa estratégias políticas, o apoio de pessoas com interesse nisso (a Elite dos 10), tentando moldar o pensamento popular a seu favor em discursos atrativos (há uma cena dele falando aos estudantes e patrocinadores do colégio em sua cerimônia de posse após um momento de extrema violência no episódio anterior bem interessante de ver) ou em ações repressivas (extinguir diferentes clubes dentro do campus que pesquisam culinárias diversas, efetivamente castigar aqueles que se opõem com expulsões ou torturas em praça pública).
Integrantes da Sociedade do Chanko torturados em público por continuarem com as atividades de seu clube por debaixo dos panos…
Nisso tudo, Souma e seus amigos funcionam como a resistência, enfrentando a repressão utilizando o próprio sistema. A perda da individualidade – e a arrogância dos que vêm de cima – é algo que afeta diretamente o protagonista, que entende que tal onda destruirá o que ele é, de onde ele veio e tudo o que acredita. É uma metáfora antifascista interessante de assistir.
Não vou mentir: Shokugeki no Souma, num geral, apresenta uma série de problemas. O roteiro é previsível, é fácil de adivinhar os vencedores nos duelos culinários, o ecchi na primeira temporada é exagerado demais, com toda a experiência valendo mais pelo food porn, pelo carisma dos personagens e pelo chuunibyou do pacote todo. Mas é bem bacana acompanhar um anime voltado para o povão com mensagens tão claras contra o fascismo, contra a alienação, contra a massificação, a favor da individualidade e do senso crítico. Uma opção de produto pop bem palatável para quem quiser ir atrás do tema e não curtir o som do Pink Floyd.
Todas as temporadas de Shokugeki no Souma estão disponíveis oficialmente via streaming através da Crunchyroll.
Já o álbum The Wall, do Pink Floyd, pode ser escutado no Spotify.
Shokugeki no Souma é uma boa série, mas eu pessoalmente não consigo vê-la como anti-fascista, pelo menos eu não enxerguei isto assistindo até onde assisti. Pode ser que eu tenha visto de forma muito despretensiosa também, quem sabe eu não re-assista alguns episódios em dado momento com o fim de conferir se procede ou não.
Eu sei que a obra tem críticas à autoritarismo em geral, mas não lembro de ter notado nenhuma referência anti-fascista propriamente dita. Também não assisti todos os episódios até então, quem sabe mais para frente não tenha aparecido algo claro quanto ao assunto.
Outra questão que me faz comentar a matéria, é que é sempre bom lembrar que fascismo é um tipo específico de autoritarismo, e atualmente, a própria palavra “fascismo” se tornou tão banalizada em discussões e embates políticos que qualquer autoritarismo é designado como fascismo. É bom ter cuidado para não cair nesta armadilha. Todo fascismo é autoritário, mas nem todo autoritarismo é fascista.
No caso do próprio Bolsonaro por exemplo, eu concordo que ele tenha resquícios autoritários, mas fascista mesmo, alá Mussolini, ele está longe de ser. É só comparar o que Mussolini instituiu em seu governo quando vivo, e o que Bolsonaro pretende fazer se eleito aqui.
O texto em si aborda um tema delicado e pode ser que gere alguns desentendimentos. Mas no geral foi bem escrito, embora eu ache que tenha caído um pouco na armadilha que citei.
E quanto ao show do Rogers Waters, eu devo discordar e dizer que, sim, as vaias foram democráticas. Ele expôs uma mensagem e foi criticado por conta ela. Numa democracia, tais críticas podem ou não existir. Ninguém o impediu fisicamente de continuar o show ou o violentou por ter falado o que falou.
Tanto que, nos shows subsequentes que fez, ele poderia ter colocado diretamente o nome do Bolsonaro lá, e não quis para evitar polêmica ou qualquer outra razão não-explicitada.
Mas, também concordo que quem pagou o ingresso caríssimo para ir em tal show poderia ter estudado melhor o conteúdo das músicas da banda e evitado aborrecimentos.
Agora, a democracia também tem seu ônus. Ora a gente gosta de algo e aplaude, ora a gente não gosta de algo e critica ou até xinga. Vaias e falta de bom senso também fazem parte do jogo democrático, para bem e para mal.
Ótimo texto