Em 25 de agosto de 1939, nos Estados Unidos, entrou em cartaz O Mágico de Oz (Victor Fleming). Baseado no livro de mesmo nome de L. Frank Baum, publicado no início daquele século, o longa contava as estranhas aventuras de Dorothy Gale na Terra de Oz. Após ser levada em sua casa, com seu cachorro de estimação, Totó, por um tornado em sua fazenda no Kansas, a menina vai parar no reino distante, cercada por paisagens vivas e criaturas que fogem ao padrão conhecido. Inserida numa trama esquisita – e perigosa – de disputa de poder, a chance de Dorothy está no fim de uma estrada com tijolos dourados, na qual ela segue uma viagem cercada de riscos de vida só perceptíveis quando vistos com o distanciamento correto. Afinal, o que é ser atacada por árvores nefastas, perseguida por uma bruxa má e surpreendida por macacos voadores na ingenuidade cantante de uma criança? Mesma ingenuidade que enxerga soluções, em sua concepção, óbvias para os problemas dos amigos que fez no caminho – um cérebro para um espantalho preenchido de palha, um coração para um homem de lata, coragem para um leão covarde. Todos itens conseguidos no fim de uma aventura, cuja garantia está apenas na crença de que tal resultado virá, independentemente de interferências alheias.
Histórias cujo desenvolvimento está intrinsecamente ligado ao imaginário infantil de que as coisas não apresentam uma ameaça tão urgente, com um ponto de vista positivo a respeito de situações que, quando adultos, o realismo joga uma pá de cal em quaisquer esperanças de dar certo, são comuns em diferentes produtos da cultura pop. Na novela mexicana Alegrifes e Rabujos (2003-2004), uma trupe de crianças interage com um velho bruxo dentro de um casarão abandonado, sem a supervisão de responsáveis. Na adaptação para TV de Sítio do Pica-Pau Amarelo, no arco “Reinações de Narizinho” (2001), a menininha de mesmo nome é convidada para o Reino das Águas Claras, futuramente se casando com o príncipe do lugar. Pokémon, em todas as suas desambiguações possíveis, se calca em crianças viajando sozinhas e enfrentando organizações criminosas utilizando os monstrinhos, quase que ignorando os eventuais riscos desses atos. E é nessa boa dose de ingenuidade infantil inconsequente que se encontra o ouro de The Promised Neverland, um dos melhores mangás em publicação na atualidade.
Escrita pelo autor Kaiu Shirai e desenhada pela ilustradora Posuka Demizu, a série é um dos atuais fenômenos em vendas no mercado de quadrinhos japonês. Com capítulos serializados dentro da Weekly Shonen Jump desde 2016, seus 10 volumes encadernados desde então já acumulam mais de 6 milhões de cópias vendidas. Por aqui, começou a ser publicado pela Panini em agosto deste ano. A história conta a vida de crianças dentro de um feliz orfanato, que passam seus dias comendo, se divertindo e estudando através de testes acirrados de conhecimento, esperando que, até completarem 12 anos de idade, possam ser adotadas. Quando uma das pirralhas, a adorável Conny, esquece seu coelho de pelúcia ao ser levada para uma família numa noite, Norman e Emma decidem lhe entregar o brinquedo no portão do lugar. Porém, a dupla têm seu status quo obliterado ao descobrir que, na verdade, os órfãos ali são criados como gado de luxo para servirem de alimento para demônios. Ao perceberem que toda a vida que tiveram até então era pautada em um cenário criado e monitorado, eles precisam encontrar uma brecha em tal sistema para escaparem com vida, em segurança, mesmo ignorantes sobre o que há do lado de fora dos muros que cercam o local e com a certeza de que a “mama” que os criou está aliada aos inimigos e fará de tudo para prejudica-los.
Indo pela já citada mesma linha que O Mágico de Oz, com os protagonistas presos numa realidade que lhes é desconhecida, perigosa e absurdamente desfavorável quando friamente analisada, The Promised Neverland também aposta na capacidade pueril que crianças têm de enxergar possibilidades de vitória ao fim de uma aventura. Por mais que todas as peças do lado inimigo joguem com maior empenho e poder de partida, há esperança nas atitudes de Emma, Norman e Ray (nesse primeiro volume, os únicos cientes do que fazem parte), que utilizam suas capacidades físicas e intelectuais para traçar estratégias de fuga utilizando os poucos recursos que estão às mãos. O clima a imperar poderia ir prum lado mais soturno, levando em conta todo o aparato contextual inserido, aterrorizante até. No entanto, é nítido o cuidado para que o tom não vá demais em quesitos “adultos”. The Promised Neverland é uma história levada pelo ponto de vista infantil dos personagens, uma aventura pura onde o maior propósito é narrar o desejo deles de vencer.
O que é muito bem executado em diferentes partes trabalhadas ao longo do gibi. O roteiro, baseado em apresentar uma dificuldade que deve ser superada e o caminho que eles tomarão para atravessá-la, é eficaz em prender na leitura. É um universo desbravável aos poucos, com os leitores descobrindo seus detalhes quase ao mesmo tempo que os protagonistas. A trama proporciona momentos divertidíssimos dados pela interação dos personagens quando todos em cena sabem o que está acontecendo (as reações mais passionais da Emma em oposição ao pensamento racional do Ray são bacanas de observar), ou quando se mesclam com outras crianças que não têm ideia do que está havendo (um segmento com a Emma e outra menina cuidando de uma bebê é ótimo).
Também muito bons são os momentos onde a tensão se eleva, vindo surpreendentes dentro dos contextos diários (há uma cena em que a “mama” encara Emma observando um espaço vazio na parede, onde estaria um desenho da já citada órfã levada como alimento para os demônios, que é de arrepiar todos os pelos do corpo). O desenho da Posuka Demizu é belíssimo em ilustrar essas pegadas quase inversas. As expressões dos personagens em momentos de descontração, quase cartunescas, mostram bem a leveza com que o pacote todo deve ser levado, assim como há um maior detalhamento em cenas onde uma angústia maior precisa ser construída (quando demônios aparecem, há até uma estranheza, um afastamento do resto). São opostos propositais bem definidos e otimamente executados.
Aceitação popular e hype não necessariamente são sinônimos de qualidade. Com The Promised Neverland, no entanto, essa combinação casa perfeitamente. É interessante observar a reação positiva do público para um shonen não baseado em lutas, poderes e competições entre os personagens. O lance aqui vai mais para um lado aventuresco cinematográfico, sobre pilares de ingenuidade narrativa que, quando bem utilizados, proporcionam histórias com capacidades atemporais. O primeiro volume é excelente e, só aqui entre nós amigos esquilos, um segredinho não tão profissional de quem já conferiu quase tudo o que saiu do mangá por meios alternativos: fica ainda melhor conforme os capítulos avançam – mas não contem para ninguém que existe pirataria na internet, hein.
Essa resenha foi baseada no primeiro volume nacional de The Promised Neverland, publicado no Brasil pela editora Panini, com tradução da Erika Abreu, letreiramento do Gustavo Figueiredo e edição do Diógenes Diogo – mas foi ajudada também pelo conhecimento prévio deste que vos escreve, que acompanha a obra desde o início de 2017. Nas leituras feitas para esse post, nenhum erro ortográfico foi encontrado no quadrinho. No entanto, é sugerido cuidado na hora de folhear suas páginas, pois há risco de que elas se destaquem, mesmo com o gibi custando R$21,90 em seu preço de capa.
Chamar mangá de gibi é uma falha bem grave.
Achei bacana esse primeiro volume, o 2 já achei mais ou menos, ainda assim legal.
Esse é o tipo de título que tentarei acompanhar somente pela versão impressa. Difícil é segurar a ansiedade até o lançamento dos próximos volumes.
A Panini devia copiar logo a JBC e adiantar o número de vários títulos também. Periodicidade bimestral é só pra segurar o preço nas livrarias.
não é não