A esse ponto você já deve ter assistido ao primeiro trailer de Os Cavaleiros do Zodíaco, a série que estreia ano que vem na Netflix e reconta mais uma vez o início da saga que foi uma febre no Brasil nos anos 1990. E até aqui você também já deve estar sabendo das mudanças sofridas, mais ainda de uma em específico que causou barulho e se mostrou a escolha inclusiva mais preguiçosa por parte dos envolvidos: Shun agora é uma mulher.
Antes de falarmos sobre isso, vale destacar um ponto importante, pois não é a primeira vez que acontece (ou quase acontece). O anime original, produzido a partir de 1986, nunca teve relevância nos Estados Unidos, o que é uma baita perda para a sua produtora, a Toei Animation. A série só teve uma chance por lá no começo dos anos 2000, quando já estava totalmente datada e quando anime de porrada já não era novidade (eles já conheciam Dragon Ball Z e Yu Yu Hakusho). Soma-se a isso as diversas censuras sofridas. Não deu audiência, saiu do ar, os DVDs foram descontinuados num primeiro momento.
Porém, alguns bons anos antes disso, os Cavaleiros quase ganharam um filme live-action no mercado americano, o que seria a entrada da marca por lá. Um teaser super trash só foi vazado recentemente e nos mostra porque nem o Masami Kurumada (autor da obra) aprovou. E olha que o homem aprovou muita coisa duvidosa depois disso…
O ponto importante da tosquisse desse projeto em live-action mora justamente no Shun. Na época, os responsáveis já tentaram aquilo que agora se tornou realidade, a mudança de gênero do personagem. Isso até poderia fazer muito sentido pra sociedade da época, mas cola de um jeito muito torto nos dias de hoje.
A Netflix e sua parceira no projeto, a Toei, certamente estão preocupadas em emplacar os Cavaleiros nos Estados Unidos com essa nova animação. Junto com o trailer em português, também foi lançado o trailer em inglês e o mesmo não aconteceu no Japão (lá, foi lançado o mesmo trailer em inglês, com legendas em japonês). Além da animação em computação gráfica, tornou-se necessária a inclusão de uma mulher entre os heróis principais da trama, de modo a conversar com a necessidade de representatividade feminina que há em séries de animação ocidentais atualmente. Mudar o Seiya seria drástico demais, é o protagonista que carrega o nome original da série. Eles tinham o Hyoga. Tinham o Shiryu, o Ikki. Mas escolheram o Shun.
No quinteto principal de heróis da série clássica, Shun é o mais emotivo, o mais delicado. Ele evita ao máximo a violência, não lhe agrada a ideia de ferir ninguém. Ele representa a constelação de Andrômeda, uma mulher. Sua 1ª armadura no anime inclusive tem seios, e ainda é de coloração rosa. Obviamente, jogado na cultura ocidental, tornou-se motivo de chacota homofóbica. Um garoto que gostasse do Shun quando criança poderia ser alvo fácil de piadas na escola. A bichinha, a mulherzinha. E nem vou falar da polêmica cena na casa de Libra…
A existência do Shun como ele é era justamente um dos diferenciais positivos e inclusivos por si só. Afinal, vivemos numa sociedade enraizada de machismo, e ter um personagem que mostrava que um homem também poderia ter um aparência frágil, chorar e continuar sendo homem era um ganho enorme na quebra de estereótipos – mesmo que o autor nem tenha pretendido isso. Quando os responsáveis pelo novo anime escolhem Shun para se tornar uma mulher, assumem o preconceito em todos os lados. Um personagem efeminado só pode ser mulher, uma personagem mulher tem que ser a delicada.
Pode até ser que os roteiristas tenham transformado a nova Shun em uma mulher “badass“, valente e pronta pra porrada, mas isso não torna a escolha menos preguiçosa. O trailer nos revela por exemplo, que as amazonas (ou “mulheres cavaleiro”, como denominou nossa antiga dublagem) continuam a usar máscara, uma submissão imposta na história original. Os Cavaleiros do Zodíaco: Ômega (2012) não emplacou, mas se arriscou mais nesse quesito, com uma personagem do elenco principal que questionava seu uso. Antes disso, no excelente Lost Canvas (2006), também tivemos a Yuzuriha, que dispensava a cobertura de seu rosto. Por que não criar uma personagem assim do zero ou arriscar a mudança de gênero nos outros três do elenco? Não, vamos de Shun que é mais fácil.
Ainda falta um bocado pro novo anime ser lançado, ainda há muito o que se discutir até lá. Fato é que essa escolha só vai mexer com quem é fã das antigas e que não parece ser muito o alvo dessa série. Pena pros novos meninos que podem perder um exemplo diferente de homem, como a geração dos anos 1990 teve. Pena também para as novas meninas, que podem ter só uma única heroína com o estereótipo comum. Aliás, para elas, Saintia Shô pode ser algo mais valioso.