Há algo interessante sobre brincar com a estranheza que dá muito pano pra manga em certas produções. Pegar premissas que fogem do habitual e construir situações a partir das interações de personagens dentro dessas quebras de paradigmas pode ser bem prolífico nas mãos de bons roteiristas, escritores e diretores.
Atualmente, o produto que mais chama atenção em tal linha é a série Black Mirror, explorando em forma de antologia, bem pessimista, as reações da sociedade mediante diferentes evoluções tecnológicas. Além da Imaginação (1958-1964) brincava mais ou menos nessa, mas expandindo o leque com focos sobrenaturais, horror e tudo mais. O mangá Uzumaki (Junji Ito, 1998-1999) junta um punhado de histórias de terror envolvendo um casal afetado por uma maldição com espirais. Vampire Princess Miyu (1997) narra o cotidiano de uma guardiã protegendo a humanidade de demônios aproveitadores episódio a episódio.
Entre lançamentos recentes, Rascal Does Not Dream of Bunny Girl Senpai (Seishun Buta Yarou wa Bunny Girl Senpai no Yume wo Minai) mostra-se realmente efetivo ao seguir tal fórmula. Exibido entre outubro e dezembro de 2018, com 13 episódios, dirigido por Souichi Masui, no estúdio CloverWorks, o anime toma como base a light novel de mesmo nome, do autor Hajime Kamoshida, atualmente com 9 volumes. Nele, um grupo de personagens é exposto a uma “doença” intitulada “Síndrome da Adolescência”, onde, mediante os dramas e problemas de transição em maior evidência nesse momento de vida, casos esquisitos, que os ampliam, ocorrem com as vítimas.
O fio condutor é o estudante Sakuta Azusagawa, vítima da doença, tendo também alguém em sua família gravemente afetado. A trama tem início quando ele, certo dia, numa biblioteca, encontra uma garota vestida de coelhinha da Playboy, sendo o único capaz de enxerga-la ali. A garota, no caso, é Mai Sakurajima, uma atriz famosa que estuda em seu colégio, mas precisou dar uma pausa na carreira por motivos pessoais. Essa invisibilidade involuntária começa em pequenas locações na cidade, mas vai evoluindo, aumentando em espectro paralelamente à desesperança da menina em voltar a ser vista, com tal problema só sendo resolvido mediante uma atitude megalomaníaca tomada por Sakuta.
Boa parte da graça do anime está nas diferentes possibilidades exploradas tendo essa doença como desculpa ao roteiro. Além da atriz apagada após abandonar os holofotes, os outros casos bizarros também são bem construídos: uma menina que volta no tempo para moldar os dias a seu gosto, já que se importa demais com sua imagem e investe bastante tempo em construir uma persona social que agrade a todos; outra que é perturbada por uma doppelganger de atitudes mais ousadas que ela adoraria cometer, mas não tem coragem; uma troca de corpos ocasionada pela ilusão de que a vida alheia é mais interessante – e por aí vai.
Isso é feito de maneira bem competente, levando em conta tanto requisitos necessários contidos dentro de um bom sci-fi, quanto artifícios utilizáveis em bons dramas adolescentes. A direção não perde tempo tentando bolar uma explicação detalhada cansativa (e broxante) para a Síndrome da Adolescência, permitindo que as lacunas sejam preenchidas por si só na cabeça do telespectador, não tratando-o como um idiota que precisa ser um guia para juntar as peças. Física? Química? Magia? Ou o simples e puro nonsense? Fica a cargo do seu entendimento.
O tempo é melhor preenchido com diálogos divertidos que aprofundam os personagens, lhes pintando cores, tons, dando erros, acertos. É muito legal observar como o protagonista se porta em variadas situações. Há sempre um ar mais confortador de superioridade, recheado de deboche no modo estoico, quase sínico, como ele fala uma porção de bobagens, mas que varia de nível conforme o contato com determinados personagens. Isso não só torna suas interações em tela divertidíssimas de serem acompanhadas, como aumenta a intensidade dos momentos onde ele quebra, se deixa soar emotivo, passional, fazendo destes realmente memoráveis. A cena dele sendo consolado num dos segmentos finais, por exemplo, é bem bonita de assistir.
Na verdade, todo o cardápio de personagens é muito bom. A “Bunny Girl” do título encarna legal um arquétipo de garota mais madura, com os prós e contras disso ao longo da história. A irmã mais nova dela tem sua imaturidade bem utilizada no arco em que sua importância é maior. Os amigos de Sakuta também tocam a trama pra frente quando usados em maior ou menor destaque – tem o cara bonitão meio avoado, a intelectual com problemas de aceitação, a menina mais nova querendo ser notada. Mesmo a namorada do melhor amigo, em dados momentos, se faz útil na narrativa. Já a irmãzinha dele, tem uma das trajetórias mais legais e emocionantes em todas. Quase não há gorduras nesse quesito.
Rascal Does Not Dream of Bunny Girl Senpai é bem satisfatório no que se propõe. O anime usa as estranhezas características dos motes dessas séries que brincam com o bizarro e, tal como os melhores momentos nelas, constrói uma narrativa focada nos personagens muito bacana de assistir. É uma boa sátira aos exageros adolescentes, mas escrita com bastante sensibilidade para destacar quando esses dramas passam do ponto e, de fato, agem como doenças naqueles que os vivem.
Todos os episódios de Rascal Does Not Dream of Bunny Girl Senpai estão disponíveis oficialmente, com legendas em português, na Crunchyroll.
Sexta quero ficar doido, igual a pessoa que escreveu esse texto.
Esse anime é de fato muito bom