Em um projeto anunciado ano passado, o estúdio MAPPA, em parceria com o Tezuka Productions, anunciou a produção de um novo anime baseado no mangá Dororo, clássico absoluto de Osamu Tezuka e reconhecido como uma das obras mais importantes do autor ao lado de Astro Boy e Black Jack. O anime estreou no Japão em janeiro deste ano e chamou atenção não só por carregar um nome tão importante, mas também pela sua qualidade constante. Agora, estamos no começo de abril e o anime já passou pela sua primeira metade. O que a animação nos trouxe até aqui?
Dororo é um mangá que foi publicado no Japão na revista Shounen Sunday, entre 1967 e 1968, rendendo quatro volumes encadernados (publicados no Brasil pela NewPOP). Os quatro volumes, em 1969, originaram uma adaptação para anime que finalizaria a história em aberto do mangá, ainda de um jeito não tão conclusivo.
Nos anos 2000, a atenção para a obra foi retomada, através de um jogo lançado pela Sega para PlayStation 2 em 2004, que ficou conhecido no ocidente como Blood Will Tell, e um filme live-action de 2007, estrelado por Satoshi Tsumabuki e Kou Shibasaki.
Mas e sobre a nova adaptação? Acho que o essencial que precisa se saber sobre o novo anime da série é que ele consegue olhar para todas as versões passadas da obra e usá-las para seu bem. O novo anime de Dororo é diferente da obra original, tem um tom diferente, porém em nenhum momento se perde na essência, incluindo a da obra original de Osamu Tezuka.
Na nova história, acompanhamos a saga de Hyakkimaru, um jovem que quando ainda era bebê foi sacrificado pelo seu pai, ou melhor, teve as partes de seu corpo sacrificadas em prol de um pacto com 12 demônios (bem menos que os 48 demônios do original). O jovem sobreviveu depois ter sido encontrado por um médico que, ao acolhê-lo, recriou seu corpo através de várias próteses e o criou como filho.
Para recuperar seu corpo, Hyakkimaru viaja em busca dos demônios do trato de seu pai. Em suas viagens, ele encontra Dororo, um jovem energético que vive sozinho enganando e roubando as pessoas para sobreviver.
O tom da nova série, em comparação com o mangá original, é bem mais pesado. Isso é retratado na própria personalidade de Hyakkimaru que não tem o mesmo tom brincalhão que é visto em sua versão original. O novo Hyakkimaru não tem voz ou alguma outra forma de se comunicar telepaticamente que é vista no mangá, além de que sua falta de visão é algo bem mais abordado na nova série, pois é essa característica que torna possível para o rapaz distinguir aquilo que é uma ameaça.
Introdução escrita por Talles Queiroz (Teke), redator do JBox e da Crunchyroll Notícias.
O texto abaixo contém alguns spoilers dos primeiros 12 episódios do anime ‘Dororo’. Esteja ciente antes da leitura.
Para começar com essa análise e encaminhar o texto para alguma direção, tomei como base os 12 primeiros episódios da nova versão do anime, não tive nenhum contato com o mangá a não ser por poucas imagens que vi ao longo dos anos. Logo percebemos que o anime adotou um traço mais “maduro” e consequentemente a história terá um tema adulto, mais violento. Quando digo “maduro” é simplesmente por uma distinção da arte de Osamu Tezuka que tinha uma característica mais infantil, bonitinha, o que não quer dizer que seja um ponto negativo em nenhuma das situações, isso só vai implicar em como o autor quer impactar seu público. Mahou Shoujo Madoka Magica (2011), School-Live! (2015), todos eles têm em comum essa característica do tema violento sendo representado por uma arte mais “infantil” e ambas mostram que isso não necessariamente infantiliza a obra, mas que ela pode passar a ilusão de que a história vai para um caminho, quando na verdade está em outro. E por isso acredito que resolveram amadurecer o traço de Dororo, o espectador vai ter de cara aquilo que está sendo apresentado.
Agora com Hyakkimaru junto de Dororo eles continuam em uma jornada para sobreviver e batalham contra demônios e tentando arrumar alguma recompensa. Isso vai instigar em diversas mini histórias que compõem o enredo e, apesar de parecer que são paralelas, elas vão se conectando em alguns pontos, ou seja, nada que vemos será em vão. Uma coisa que acontece lá no começo, pode ser retomada mais à frente e o anime vai nos relembrar com um pequeno flashback. Sei que isso é comum no gênero, mas acredito que seria mais interessante se não houvesse essa retomada, pois o visual em geral é bonito, e trabalhar com esses aspectos visuais que instigam o espectador a percorrer pela tela, a prestar atenção e ele mesmo puxar de sua memória vira uma experiência muito mais imersiva do que “assisti o episódio de hoje, foi ótimo, próximo”. E para uma história que fala de guerra, que tem batalhas, entendo que é complicado querer exigir essa atenção, mas traria um conceito diferente e interessante.
No anime que mexe muito com os sentimentos, nós estamos vendo as consequências de uma guerra que não dá sinal de acabar, as pessoas estão passando fome, morrendo, perdendo seus entes queridos pelo exército, é muito forte ver crianças desesperadas porque a mãe faleceu na sua frente. É o caso de Dororo. Quando descobrimos o porquê de viver sozinha, é absurdamente chocante imaginar que ela enfrentou a miséria com seus pais, viu ambos morrerem e agarrou a vontade que sua mãe tinha que ela vivesse em um mundo melhor e transformou isso em força para continua a viver e batalhar. E ela transborda a sua vontade de continuar vivendo e passa para os outros a sua volta. Nós vemos um anime de um cara que aparenta ser indestrutível (e descobrimos que ele não é) e ele quem vai salvar o dia no final. Mas a força que “carrega” o anime eu acredito que venha de Dororo. O apoio que ela oferece do seu jeito meio atrapalhado, o carinho sutil pelo Hyakkimaru e como ela tenta os levar para um caminho que traga prosperidade, particularmente é o que “move” a história.
O amadurecimento do companheirismo entre Dororo e Hyakkimaru é sem dúvidas muito prazeroso de acompanhar, pois há certo estranhamento e uma fascinação que são quebradas ao caminhar de suas aventuras. Mesmo que eles não saibam muito sobre o outro e que as descobertas de seus passados não sejam contadas em histórias bonitinhas em volta da fogueira – mas sim expostas por ações de um terceiro elemento – isso não abala o relacionamento que eles constroem. É tão natural que você mal percebe que Hyakkimaru fala com Dororo, mesmo que sem muitas palavras, há algo de diferente até mesmo em como eles andam um ao lado do outro. É óbvio que isso aconteceria, porque simplesmente é esperado que haja uma mudança significativa nas relações dos personagens, porém não é como se fosse forçado. Nem eu fiquei regulando como eles tratavam um ao outro, ansiando que Hyakkimaru fale com Dororo, ou que eles virem melhores amigos para sempre do dia para a noite. Eu automaticamente aceitei que eles são assim pela forma que a história é contada. Claro, Dororo vive “puxando” o amigo de um lado para o outro, mas ela é uma criança e é natural que ela aja de certa forma. Por mais que tenha sobrevivido sozinha, passado pelas mais absurdas dificuldades, ela não deixa de ser uma criança e isso reflete na sua personalidade e em como ela vai tratar Hyakkimaru.
A construção do emocional de Hyakkimaru parece andar de mãos dadas com quem está assistindo. É claro que vamos sentir e reagir a muitas coisas que o próprio personagem não vai, porém eu percebi que conforme a história volta a humaniza-lo e lhe entrega, por exemplo, a audição, e com isso ele é inundado por uma onda de emoções estranhas que nunca teve oportunidade de sentir, essa é a nossa porta de entrada para um mundo totalmente novo e, ironicamente, assustador. Então conhecemos Mio com sua voz doce e relaxante, anestesiando cérebro de Hyakkimaru, e admito que o meu também, em um sentido de que ela me passava uma tranquilidade muito grande dentro daquela confusão sangrenta.
Mio sofre e é possível sentir fisicamente a dor que ela passa para tentar proteger as outras crianças que convivem com ela. Essa foi a primeira vez que senti algo tão pesado na série, mas mesmo assim isso acalma o espectador e acalma a todos os personagens só cantando a mesma música. É apaixonante. Mas de repente a história vem e destrói a paz e mata a ela e todas as crianças. É enfurecedor, ao mesmo passo que é muito comovente como os episódios construíam a relação entre Mio e Hyakkimaru – e como essa vai ser a faísca que o fará explodir emocionalmente. O fechamento dessa história é visualmente muito bonito, teve certo cuidado especial com a trilha e o visual que traz uma paz interior a quem está assistindo.
O progresso da história tem um ritmo bom, porém às vezes me peguei pensando que as coisas estavam acontecendo muito rápido. Por exemplo, quando percebemos que Hyakkimaru se encontra com Tahoumaru, em seguida eles descobrem que são irmãos e também sobre o pacto do pai, e acontece um confronto em uma calorosa “reunião de família”. É muito estranho, meio frenético, mas bem óbvio. Nós já vimos a história de Hyakkimaru, já vimos o que seus pais fizeram com ele e algumas consequências, não faz sentido prolongar esse reencontro. É esquisito passar de uma narrativa que está progredindo em um ritmo constante e que sofre essa mudança abrupta. Não que seja necessariamente ruim, porque pode ter sido uma estratégia de como contar a história, mas não senti que aproveitei o suficiente e nem que meus sentimentos foram cutucados pelas ações dos personagens, e isso sim é negativo. A mãe dos dois herdeiros das terras se matou para se redimir com seu filho amaldiçoado e a cena não passa mais do que uma sensação de… “eita”. É uma cena visualmente muito bonita, mas nada mais do que isso.
Tecnicamente falando da obra o que eu mais adoro no geral é a abertura. A música “Kaen“, interpretada pela banda QUEEN BEE, passa exatamente o que eu quero sentir assistindo o anime: dor e sofrimento, mas com alguma coisa que me faz querer continuar, porque tem algo de muito prazeroso. A arte e a animação da abertura é incrivelmente linda, mas quando eu mergulho dentro da abertura e me envolvo com a música, a voz do artista, e a história que ela quer me passar, dói.
A forma como as emoções de Hyakkimaru são passadas, que não vemos dentro dos episódios, e como ele chora, dá uma vontade de agachar e chorar junto. Como eles estão em um campo, Dororo está sozinha se abraçando, Hyakkimaru e Mio estão juntos e logo em seguida não estão mais. É quase um poema transcrito em imagem, não precisa de mais nada. Dororo perdeu os pais, as pessoas quem mais ama, Hyakkimaru perdeu aquela que acendeu o fogo do seu coração. Eles estão sozinhos e isso dói.
Gosto também como eles inseriram o traço de Osamu na personagem de Dororo, dá uma certa cortada na tensão, eu estou chorando, mas aquele desenho me aquece, quase como um abraço visual.
Em contrapartida, o encerramento tem uma animação mais dura, que pela estética do traço mais “sketch”, é uma beleza mais sutil e diferente. A música “Sayonara Gokko” da banda Amazarashi combina perfeitamente bem com esse encerramento, a voz de Akita Hiromu quase que desenha as emoções dos personagens conforme solta as palavras. Se na abertura eles estão sozinhos e sofrendo, aqui eles tem um ao outro e existe certa positividade. Na abertura tem guerra, batalhas internas e externas, no encerramento há o encontro de uma paz dentro do inferno que eles vivem. Novamente um poema transposto em imagem. Há um respiro de alívio quando vejo os dois andando lado a lado transbordando a confiança daquele relacionamento.
Há alguns pontos negativos no anime, mas não acredito que alguma obra seja completamente perfeita. Por exemplo, as animações claramente terão seus defeitos em lutas pela exigência que isso carrega aos animadores, é complicado. Gosto das lutas em Dororo e percebo que houve preocupação de serem bem feitas dentro dos limites. Quando Hyakkimaru está lutando, seja um demônio ou uma pessoa, sinto que fico cada vez mais imersa naquele mundo, encantada com o som da espada, a forma que o corpo dele se move… Não é perfeito, mas é incrível.
O texto foi baseado nos 12 primeiros episódios de Dororo (2019). Aqui no Brasil, a série é disponibilizada oficialmente pela Amazon Prime Video com áudio original e legendas em português.
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