Uma semana após a tragédia no estúdio Kyoto Animation, ainda é muito difícil compreender tudo o que aconteceu. A consternação que toma conta dos fãs e todos que acompanharam o inexplicável pelos noticiários, transparece na forma das centenas de homenagens espalhadas e recebidas como motor propulsor de coragem àqueles que ficaram por aqui para seguir essa história.
“O primeiro trabalho de animação que me fez chorar foi um trabalho da KyoAni. Ainda estou em estado de choque e não posso acreditar no que aconteceu“, declarou ao jornal Kyodo News um estudante de 17 anos com um sonho comum a muitos que almejam se tornar animadores no Japão: um dia trabalhar para esse estúdio, reconhecido pelos espectadores assíduos de anime pelo primor de sua qualidade.
O cenário em volta do prédio abalado pelo incêndio no último dia 18 de julho tornou-se um memorial. Pessoas que passam pelo que restou da estrutura fazem questão de deixar flores e recados de carinho. O choro de muitos é inevitável. Para o presidente e um dos fundadores do KyoAni, Hideaki Hatta, as mensagens otimistas que chegam do mundo todo têm se tornado o “apoio emocional” mais que necessário para ele e o restante de sua equipe. No último dia 20, Hatta também manifestou a possibilidade de demolir o prédio queimado, construindo ali um parque e um monumento em homenagem às vítimas. Ele acredita que a equipe e toda a vizinhança do local não deva conviver com o considera uma “uma imagem terrível”.
Ajuda global
Vários órgãos ligados à indústria do anime se solidarizaram com a situação e buscaram meios de ajudar o estúdio a se reerguer, estendendo também sua ajuda às famílias das vítimas. A Sentai Filmworks, empresa americana que atua com o licenciamento de dezenas de animes, abriu já no dia 18 uma campanha de arrecadação através da plataforma GoFundMe. Em uma semana, a meta de 750 mil dólares foi superada em mais que o dobro, ultrapassando 2,1 milhões de dólares. A campanha seguirá até o dia 31 de julho e garante esforços para entregar cada centavo aos envolvidos na tragédia.
“Suas promessas e os fundos que levantamos visam fornecer a assistência mais direta e significativa possível às vítimas dessa tragédia comovente. Estamos nos coordenando com outros da indústria do anime no Japão para garantir que os fundos coletados cheguem aos que precisam. Continuaremos a fornecer atualizações à medida que esses detalhes forem sendo desenvolvidos.
Por enquanto, quero agradecer a todos pela gentileza, generosidade e apoio a esse esforço. A quantidade de preces e mensagens de apoio têm sido extraordinária. Por favor, ajude-nos a continuar esse esforço.” – trecho das palavras do presidente da Sentai, John Ledfort.
Clique aqui para acessar a página da campanha.
Na quarta-feira passada (24), o próprio Kyoto Animation abriu uma conta bancária para arrecadar fundos às vítimas e também para a reconstrução de seu estúdio. Em menos de 1 dia, cerca de 2,53 milhões de dólares foram arrecadados, somando doações de pessoas físicas e também de empresas.
O 2º maior assassinato em massa no Japão
Era por volta de 10h30 da manhã do dia 18 de julho, no bairro de Fushimi, em Kyoto. O barulho de uma explosão assustou a vizinhança do Estúdio 1 do Kyoto Animation, edifício principal onde várias obras importantes foram produzidas. Um incêndio se espalhou rapidamente, levando 5 horas para que os 30 carros de bombeiros que se mobilizaram para o local pudessem cessar as chamas. Elas só se apagaram por completo às 6h20 do dia seguinte.
A tragédia se originou de um crime. O suspeito, um homem de 41 anos identificado como Shinji Aoba, teria espalhado gasolina pelo prédio, antes de atear fogo aos gritos de “morram!“. Ferido no incidente, ele confessou seus atos e foi levado ao hospital. Até o momento, a polícia ainda não o deteu e o interrogou, pois aguarda a sua recuperação.
Ainda em sua confissão do momento, o suspeito teria dito que foi motivado pelo fato de que o KyoAni teria roubado um de seus romances. Além da produção de animações, o estúdio também mantinha uma editora de novels, recebendo novos projetos com frequência em um concurso conhecido como Kyoto Animation Awards. Entretanto, o presidente Hatta afirma nunca ter ouvido falar do sujeito – não que isso possa justificar o injustificável.
34 pessoas morreram no incêndio, sendo 21 mulheres e 13 homens. Esse tornou-se o segundo maior assassinato em massa no Japão desde os horrores da bomba atômica na Segunda Guerra Mundial – atrás somente de outro incêndio que vitimou 41 pessoas em 2001. Outras 34 pessoas ficaram feridas, sendo que parte delas permanece em estado grave. Todos os materiais usados nas animações e os computadores foram perdidos. Os mortos já foram totalmente identificados pela polícia e devem ter seus nomes revelados em breve.
Em entrevista ao jornal Mainichi Shinbun, a família da colorista Naomi Ishida confirmou que ela estava entre as vítimas fatais. A artista de 49 anos trabalhava no estúdio desde o ano de 1993, quando era comum que fossem recebidos trabalhos terceirizados – foi aí que ela participou de obras como InuYasha, Doraemon e Shin-Chan. Em The Melancholy of Haruhi Suzumiya, série de 2006 que destacou o nome do KyoAni, ela é creditada como a principal designer de cores. Free!, Violet Evergarden e A Voz do Silêncio são outras obras que tiveram participação de Ishida, dentre vários títulos.
Um estúdio raro
Fundado em 1981 pelo casal Yoko Hatta e Hideaki Hatta, o Kyoto Animation tornou-se reconhecido por todos que acompanham a indústria dos animes não só pela excelência de suas obras, mas por nadar contra a maré dos abusos do meio. São frequentes os casos de animadores mal pagos no Japão, com extensas cargas de trabalho e horas extras não remuneradas por contratos temporários.
No KyoAni o cenário era outro. Trata-se de um estúdio que só possui funcionários contratados, nada de freelancers. É também o local que mais se preocupa em ter funcionárias mulheres, reflexo também em suas séries e filmes, que trazem protagonismo feminino com frequência.
Após prestar serviços a obras famosas de outros estúdios, como InuYasha, Cowboy Bebop, Pokémon e até mesmo o clássico Akira, o KyoAni começou a investir em suas próprias animações em 2003, com o especial para vídeo Munto e a série de TV Full Metal Panic! Fumoffu (série essa que foi exibida aqui no Brasil pelo extinto canal pago Animax). Nessa primeira leva dos anos 2000, destacam-se também The Melancholy of Haruhi Suzumiya (2006), Lucky Star (2007), Clannad (2007) e K-On! (2009).
Já na última década, muitas obras de destaque também chegaram oficialmente ao Brasil, algumas inclusive na TV aberta. Na Crunchyroll, Free!, Miss Kobayashi’s Dragon Maid e Sound! Euphonium são os representantes do KyoAni (os dois primeiros também foram exibidos pela Rede Brasil de Televisão). A Netflix proporcionou a primeira transmissão simultânea de um anime com dublagem em português, com a série original Violet Evergarden. A plataforma também traz o tocante filme A Voz do Silêncio, baseado no mangá publicado por aqui pela NewPOP Editora – que também trouxe os quadrinhos de K-On!
Para o futuro
É muito cedo para sabermos quais serão os passos de reestruturação do Kyoto Animation. Obras já haviam sido anunciadas e agendadas, aguardando pronunciamento sobre suas continuidades.
O que há de concreto até então é o lançamento de um episódio especial de Violet Evergarden. Subintitulado de Eternity and the Auto Memories Doll, sua premiere continua agendada para os próximos dias 3 e 4 de agosto, a pedido formal do próprio estúdio, como divulgado pelo site The Hollywood Reporter. A exibição ocorre no evento AnimagiC, em Mannheim, na Alemanha.
A lista de projetos anunciados para produtos já conhecidos inclui um filme de Violet Evergarden (lançamento marcado para 10 de janeiro de 2020), um filme de Free! (para o verão japonês de 2020) e a 2ª temporada de Miss Kobayashi’s Dragon Maid. Entre as obras inéditas, uma série adaptando a novel 20 Seiki Denki Mokuroku e o curta Baja no Studio: Baja no Mita Umi.
[Com informações do Kyodo News, NHK, ANN e Jovem Nerd]
Espero que o estúdio consiga se reerguer, depois dessa tragédia.
E vai, arrecadação global de solidariedade e o espírito dos japoneses de se reerguer ajudarão demais.