Mal conheço LeSean Thomas e já o considero um dos personagens mais interessantes da cena mundial atual de animações. Ou melhor, mal sabia que já o conhecia, visto sua mão estar presente em, ao menos, duas séries nos últimos anos que muito me apetecem: A Lenda de Korra (2012-2014) e The Boondocks (2005-2014), ambas bebendo muito da fonte japonesa de traço e narrativa para contar histórias mais alinhadas com questões discutidas no Ocidente. Para essa última, confessou ele em entrevista ao Japan Times, a equipe de produção usava Samurai Champloo (2005-2006), do diretor Shinichiro Watanabe, como guia direto de ideais.

Thomas é um otaku realizando o sonho mór de um otaku. Seu primeiro contato com o mundo animado nipônico foi através de um VHS, contendo comerciais, aberturas e uns episódios dos “classicões” Hyper Combat Unit Dangaioh (1987) e Bubblegum Crisis (1987). Comparados às coisas da Hanna-Barbera e Looney Tunes que ele assistia à época, sua cabeça explodiu. Mais tarde, achou que estava adquirindo uma fita de Akira (1988), mas descobriu que o VHS que tinha comprado trazia o making-of do longa-metragem. Assistindo todos os dias, decidiu que era aquilo que queria fazer pelo resto da vida. E está fazendo.

Em 2017, lançou o one-shot Children of Ether junto com a Crunchyroll, numa das primeiras tentativas da plataforma de streaming de expandir suas produções ao público e produtores internacionais. Pro futuro, com a Netflix, já tem engatado o anime Yasuke, contando a história real do icônico samurai africano no Japão do período feudal. Mas o assunto desse post é seu projeto atual, Cannon Busters, também na casa vermelha, que estreou mundialmente sexta passada (16/05). Bom para cacete, por sinal.

Assistindo Cannon Busters, pensei no quão “híbrido” tal desenho me parecia aos olhos. Buscando mais sobre, consegui entender o porquê. Ele foi produzido nos estúdios Satelight (Girly Air Force, Macross Delta, Log Horizon) e Yumeta Company (Fatal Fury: The Motion Picture) e dirigido por Takahiro Natori, “100% anime” nesse sentido. Mas sua fonte de inspiração foi o quadrinho de mesmo nome, lançado em 2005, do próprio LeSean Thomas, que é showrunner da história toda. E parte de seu financiamento veio da China/Taiwan, de modo que alguns fatores nele foram pensados para agradar essa fatia de mercado.

“Tem esse personagem masculino imortal, que é totalmente japonês em traço, design. (…) E tem essa personagem feminina, uma robô, totalmente americanizada em seu estilo. Eles vão numa jornada juntos, utilizando um Cadillac antigo tipicamente americano que se transforma num robô gigante tipicamente nipônico. Esse tipo de mistura dá à audiência chinesa algo novo. (…) Cannon Busters é o anime híbrido ideal para o mercado chinês.” Explica na mesma entrevista supracitada.

Vou adiante nisso. Cannon Busters é um dos melhores exemplos de “gaijin animes” dos últimos anos. Embora não seja “gaijin” de verdade.

Não sei vocês, mas sou grande entusiasta de desenhos ocidentais que emulam signos presentes em desenhos nipônicos. Têm os já citados A Lenda de Korra e Boondocks, mas a lista segue mais a fundo, com A Lenda de Aang (2005-2008), Três Espiãs Demais (2001-2013), Code Lyoko (2003-2007), Megas XLR (2004-2005), os recentes Voltron (2016), Miraculous: As Aventuras de Ladybug (2015) e por aí vai. Vejo-os não só como uma boa forma de familiarizar pessoas que não estão tão acostumadas assim com conceitos de animes, mostrando vários deles de forma mais diluída e condizente com o “padrão” ocidental, mas também como formas de entretenimento tão boas quanto (por vezes, até melhores), utilizando as “normas” de séries japas.

Há quem torça o nariz para essa ocidentalização. Tanto que o próprio diretor de conteúdo animado japonês da Netflix disse que Cannon Busters encontrará certa resistência desse público mais paroquial, sobretudo nos Estados Unidos, que não aceita animes que não sejam 100% japoneses. Faz sentido quando lembramos as reações exageradas (ou chiliques, escolham o termo mais apropriado) quando a Crunchyroll anunciou que investiria na produção do não-anime High Guardian Spice no ano passado. Bobagem.

Mas voltemos a Cannon Busters. Por que ele é um dos melhores exemplos de gaijin animes dos últimos anos? É um anime propriamente dito, mas que conversa em traço, em estilo, temática e outros requisitos com o modo ocidental de contar histórias animadas. E ele faz isso tão bem, contando uma história tão boa, com personagens tão cativantes.

Num cenário que mistura velho oeste com o Japão da era Edo, tecnologia futurista e fantasia medieval (parece confuso no papel, mas funciona em tela), acompanhamos as aventuras da androide S.A.M, uma espécie de dama de companhia e segurança ultra avançada programada para fazer amigos, que busca a ajuda de um lendário bandido imortal, Philly the Kid, para ir ao encontro de seu príncipe num castelo distante, fugitivo de um ataque que tomou seu reino. Juntos a uma robozinha especializada em consertos, eles embarcam numa road trip, acumulando experiências, diversões, aventuras, amizades, inimizades e cadáveres por onde passam.

A série é muito boa em construir essa “família” composta pelos três do núcleo de protagonistas. É interessante enxergar a evolução da relação deles ao longo dos episódios, com um absorvendo as virtudes (e defeitos) do outro, formulando uma “humanidade” bastante crível em personagens que não são humanos. A malandragem de Philly afeta as duas, que vão perdendo traços de sua ingenuidade (perigosa) e adquirindo camadas de cinza a cada capítulo vivido. Vibrei em dois momentos diferentes onde S.A.M opta por uma abordagem menos mecânica, surpreendendo os que a rodeiam (e o telespectador): quando ela é “sequestrada” e confundida com uma prostituta, arrancando rizadas dos pretensos “clientes” com vários xingamentos, e mais para o final, quando destratada por um personagem chave da história toda, onde ela o responde com muito mais sinceridade que qualquer um ali poderia esperar.

E a “bondade” ingênua das robôs também é benéfica ao Philly, que deixa um sentimento de parceria guiá-lo em momentos onde, antes, ele agiria de modo asqueroso. O final do episódio onde eles enfrentam um mago que “suga” pessoas de uma cidade lixão é desnorteante quando percebemos quais eram as verdadeiras intensões dele para começo de conversa.

Esses plots são desenvolvidos com um apoio visual impressionante e interessante de olhar. Não só nos cenários e locações, com as misturas já ditas entre western e futurismo, como nas inventividades de cada personagem. Há uma cena de “tiroteio” num bar logo no primeiro episódio que é linda de olhar. Os vilões iniciais todos diferentes uns dos outros, exibindo partes mecânicas que tornam a batalha visualmente deslumbrante. E os oponentes posteriores também são bem montados em suas habilidades. Adoro a líder sem braços que controla garras flutuantes. É meio asqueroso, estranho e divertido demais em execução.

As partes “episódicas” também são muito legais de acompanhar, com viradas de mesa capazes de embrulhar estômagos mais sensíveis (aquela família num posto de beira de estrada, Deus do céu…). As escolhas narrativas da direção também são bem pensadas (flashbacks só aparecendo quando certo personagem está dormindo, por exemplo). E quando as coisas mergulham de vez nas loucuras japonesas, com transformações exageradas, luzes, explosões, batalhas mecha etc., o desbunde é certo para quem se deixar levar.

Infelizmente, nem tudo são flores em questão de roteiro. Têm uns dois personagens que não fazem muito sentido no pacote todo. Um deles, um samurai bebum, é inserido e descartado sem muita explicação. O outro, que é pintado como um grande oponente mais pro final, não tem suas motivações explicadas, sendo gratuito e inútil na trama toda. Não é nada que chegue a comprometer a experiência, mas não passa despercebido.

Isso de lado, Cannon Busters é entretenimento pipocão certo. Diversão descompromissada, voltada para um publico um pouco mais velho, bem executada em suas ideias. Um produto “internacionalizado” que vale muito a conferida.


Esse texto toma como base os 12 episódios de Cannon Busters, em sua versão dublada em português pelo estúdio paulista Vox Mundi, com direção de Fábio Lucindo, disponíveis exclusivamente pela Netflix.