Nota do editor: a crítica abaixo leva em consideração a experiência pregressa da redatora com a obra original e outras semelhantes. Portanto, foi mantida a visão em primeira pessoa para destacar a sua opinião.
O texto também pode trazer uma série de spoilers sobre a história de ‘Given’.
Particularmente é muito complicado escrever a minha opinião sobre um anime BL, quando a obra se originou de um mangá que já li, me apaixonei e me fez sofrer horrores pelos personagens. Given é o tipo de obra que sai do estereótipo problemático do BL (estupro disfarçado, abusos psicológicos e físicos, apagamento da bissexualidade, entre muitos outros) e conta uma história de amor por uma perspectiva talvez não original, mas incrivelmente linda.
Given é uma obra original de Natsuki Kizu (autora do também maravilhoso Links) que conta a história de quatro jovens completamente diferentes, apaixonados pela música e – obviamente – com seus problemas emocionais pessoais que se ligam diretamente com a música de um jeito ou de outro. Os protagonistas são Mafuyu Sato e Ritsuka Uenoyama, dois alunos do colegial que por acaso se conhecem no lugar de soneca do segundo. Uenoyama comenta sobre a guitarra que Mafuyu segura e este pergunta se tem como o instrumento ser consertado, ficando maravilhado ao ouvir a guitarra sendo tocada pelo outro. A história começa com Mafuyu pedindo para Uenoyama lhe ensinar a tocar guitarra, mas tendo seu pedido rejeitado.
Uenoyama é guitarrista da banda instrumental ‘the seasons’ com dois amigos estudantes universitários: o baixista Haruki Nakayama e o baterista Akihiko Kaji, que são considerados personagens secundários (não na minha opinião, mas falaremos mais para frente). Ele leva Mafuyu para ver um ensaio da ‘the seasons’ e ali algo mágico acontece para os dois mais jovens, a música vai ser um elemento poderosíssimo na história e na relação desses personagens.
Por ser tratar de uma história musical, projetei certas vozes na minha cabeça quando li o mangá e acabei esperando que minhas expectativas fossem atingidas com isso, principalmente com Mafuyu – que acaba se tornando vocalista da banda após Uenoyama lhe ouvir cantarolar – e exatamente com isso tive minha primeira decepção.
Mafuyu Sato é interpretado por Shougo Yano (voz de Nanao Kisaragi em Tsurune), que tem uma voz lindíssima, porém… Não parecia encaixar com Mafuyu nos primeiros episódios, eu imaginava o personagem tendo uma voz bem mais aveludada, talvez interpretada por Natsuki Hanae (voz de Tanjirou de Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba) ou Kishou Taniyama (voz de Natsuki Shinomiya da franquia Uta no Prince-sama) especialmente porque acompanhei vários animês que eles trabalharam e já conhecia como a voz deles funcionam nessas séries. Diferentemente de Shougo, que eu basicamente não conhecia e nem lembrava de seu trabalho em The iDOLM@STER sideM como Nao Okamura, então associei como uma voz facilmente esquecível e pouco impactante.
Mesmo quando Uenoyama pedia para Mafuyu cantar (sem letra ainda) eu ainda não conseguia sentir o que eu esperava sentir e admito: achei que odiaria ver a apresentação deles no show, pois é uma das melhores partes do mangá e uma das minhas favoritas. E bem… a apresentação da banda com a música “Fuyu no Hanashi” mexeu comigo de um jeito que eu não sei explicar em palavras. É claro que a leitura me deixou emocionada, mas ouvir a música em si, ouvir a dor de Mafuyu, a saudade, a solidão, fui inundada por um mar de sentimentos que fiquei sem saber como reagir. E é isso que espero das bandas que ouço, conseguir sentir a dor que está sendo cantada. A partir do episódio 9, Shougo me ganhou completamente como voz de Mafuyu, performando de uma forma linda e poética.
A história em si é construída de uma forma bem poética, mas também realista, principalmente quanto às relações amorosas. O que mais gosto é o relacionamento não ser o foco central, onde seríamos obrigados a assistir um casal que fica no “chove-não-molha” por 10 episódios cansativos. Pelo contrário, o foco inicial aqui é justamente a formação da banda e o caminho dela, é a aproximação dos personagens e um despertar de uma amizade um tanto inusitada. Mafuyu não sabe nada de música, nem ao menos escuta, é um garoto calmo, introvertido. Uenoyama é apaixonado pela música, é explosivo, popular. É um casal clichê, claro, mas eles têm gostosos diferentes, como uma amizade pode surgir disso? Exatamente pelo despertar de uma paixão pela música. Inicial por parte de Mafuyu, e esquecida por parte de Uenoyama.
Uenoyama já teve sua fase maluca musical, se esforçou para aprender a tocar guitarra, ouvia loucamente diversas bandas que lhe inspiravam, tinha esse fogo queimando dentro do seu coração que o fazia ir para frente. Mas quando atingiu o nível que queria, o fogo apagou. Por que tocava? Onde estava a excitação que sentia no começo? É aí que entra Mafuyu. Tudo que passou em seus primeiros anos de aprendiz ele vê em Mafuyu, aquela excitação em aprender a tocar as primeiras notas quase que perfeitamente (depois de muito treino e muito sangue saindo dos dedos), o primeiro ensaio com a banda. Isso aproxima os dois tão naturalmente que você mal percebe quando Uenoyama admite estar apaixonado – o que me deixou sinceramente enlouquecida. É óbvio que ele se apaixonaria, é um boys-love e algum romance entre homens deveria acontecer, mas não é forçado, é natural, como qualquer história de romance deve ser.
Durante algumas semanas vi nas redes sociais o que acabou sendo um pequeno problema com quem estava acompanhado. Alguns espectadores, claramente não consumidores de BL, passaram a reclamar de fanarts e comentários de fãs sobre os casais, afirmando que “fujoshi¹ força a barra”. E é isso que reforça minha fala da naturalidade de Given e é o ponto forte do anime. Muitos de nós assistimos sabendo que é um BL, mas outros que não conheciam começaram a gostar da história, porque ela é claramente ótima, sem se tocar que também se tratava de relacionamentos entre homens. Claro que são problemáticos e desnecessário os comentários negativos direcionados aos fãs, porém parece um ganho gigantesco para a comunidade fujoshi e fudanshi². Given fez barulho, comoveu, chamou a atenção e introduziu um romance naturalmente sem empurrar para dentro da nossa garganta. Tudo bem falar de problemas de se descobrir LGBT e aceitação social, mas às vezes a gente só quer ser alguém buscando nossos sonhos sem que tudo envolva a sexualidade e que todos os problemas serão pela sexualidade.
Uenoyama, quando percebe estar apaixonado por Mafuyu, vê-se em um pequeno desespero que dura poucos minutos, pois Akihiko, que se relaciona também com homens o acalma, o aconselha e mostra que não é um bicho de sete cabeças. Essa cena que não parece ser nada demais tem uma mensagem forte. Está tudo bem ser homem e gostar de homem, você não é estranho e isso não define se você é uma pessoa boa ou ruim. Isso é natural, não se preocupe.
Esse conselho do Akihiko é um dos motivos do porquê não vejo ele e Haruki como personagens secundários, eles são importantes para o amadurecimento musical e emocional de Mafuyu e Uenoyama, não é como se o papel deles fosse facilmente substituível. Given não é um animê só de romance, é sobre o caminho artístico dos personagens. Haruki e Akihiko fazem parte desse caminho tanto quanto Mafuyu e Uenoyama. Em um dos ensaios da banda, há uma certa tensão entre Uenoyama e Mafuyu e erros não percebidos por eles, mas que são percebidos pelos mais velhos. A história não está sendo apenas contada pelo ponto de vista dos protagonistas, mas também pelo ponto de vista de Akihiko e Haruki. Também há um equilíbrio como a história vai progredindo, descobrimos um pouco de cada um sem pesar muito para um casal ou outro.
Outro ponto que gosto muito e só fui perceber após terminar é como há uma clara diferença em como cada um vê o amor e os relacionamentos. Por exemplo, Akihiko namorou algumas pessoas e está envolvido com Ugetsu desde a adolescência, o mesmo vale para Mafuyu, que namorou por algum tempo seu melhor amigo de infância Yuki. Existe uma grande diferença em como eles lidam com romance e como Haruki e Uenoyama lidam, pois bem temos indicações que Uenoyama não teve paixões ainda e Haruki não tão amadurecido assim. Não é como se tivesse reações exageradas de quase morte por um beijo na bochecha ou segurar a mão como acontece em outras obras (mas eu, particularmente, amo essas reações) e se tem é sempre por um lado e não pelos dois, equilibrando a cena e deixando tudo mais leve e gostoso de acompanhar. Pode ser também porque eu amo os dois muito mais que os mais novos e isso pode influenciar como eu os vejo na história.
Mas claro, como nada é perfeito (e aqui minha segunda e última decepção), temos o elemento “mulher-intrusa-para-atrapalhar” com a colega de Uenoyama, Akino Kasai. Enciumada que sua paixão está passando tanto tempo com outro, e após ouvir o rumor de Mafuyu ser gay e possivelmente ter sido o motivo da morte de seu ex, revela cruelmente a história para o colega na esperança dele se afastar. Se tem algo que é desnecessário, é esse tipo de personagem ser incluída na história, mas felizmente o desfecho é muito mais simples e rápido e até mesmo esquecível. Não houve nenhum caos, nem briga, só comunicação e progressão da história, o que pode ser outro ponto positivo.
Sobre a relação passada de Mafuyu com Yuki, fiquei maravilhada como contaram a história, nos dando pequenas dicas sobre esse cara, descobrimos por um rumor e que esse tal Yuki havia morrido. Há uma grande dor e trauma que acompanha Mafuyu, mas quando a história finalmente é contada a nós não é por ele, mas por seu outro amigo de infância Hiiragi Kashima – temos uma versão que não é do protagonista, é de alguém de fora e que sabe apenas aquilo que viveu e viu. Acho bárbaro como isso nos foi revelado, pois é uma lembrança dolorosa e traumática e Mafuyu está fugindo do que aconteceu desde o dia do funeral de Yuki, ele não quer lembrar e nem falar disso. Temos esse aviso em alguns episódios onde vemos que Mafuyu tem algo a dizer, mas ele nega. Quando finalmente toma coragem para nos contar temos a grande revelação do motivo do suicídio de Yuki e então a música “Fuyu no Hanashi“, que são todas as palavras e sentimentos presos por 8 episódios no coração de Mafuyu. É lindo.
Enfim, Given é uma das melhores obras BL (de romance em geral, na verdade) que eu vi nos últimos tempos, pois é saudável, é um tanto realista, aborda o romance entre homens naturalmente e tem músicas maravilhosas interpretada por um ator incrível. Vale muito a pena acompanhar a carreira da banda mesmo por quem não é muito chegado em BL – e quem gosta de animê de música vai com certeza se encantar com o caminho deles.
Aqui no Brasil, Given foi transmitido oficialmente pela Crunchyroll e todos os episódios estão disponíveis legendados em português.
¹Fujoshi: Termo usado inicialmente de forma pejorativa para definir o público feminino que é apaixonado por obras que trazem relacionamentos entre dois homens.
²Fundanshi: O “inverso” do fujoshi, definindo o público masculino que aprecia obras de relacionamento homossexual entre homens.
Ótimo texto, resumiu bem a serie
Estou na dúvida de adquirir o mangá, pois como se trata de anime/mangá musical, creio que o som é uma parte muito importante desse trabalho, e isso me deixa na dúvida. Realmente valeria a pena adquirir o mangá ? Penso que o mangá poderia acabar sendo mais focado nos dramas e relacionamentos, e o anime retratar mais da banda/música. Não li, nem assisti o anime ainda, mas adoro o gênero yaoi/BL.