Existem diferentes maneiras de fazer com que um tipo de entretenimento seja aproveitável àqueles que a consomem. Seja um filme, uma série, um quadrinho, uma música, um livro, tanto faz, é bastante interessante observar como a forma interfere na construção dessas artes, como os que as planejam utilizam os artifícios comuns a tais meios em prol das narrativas que são desejadas construir e do tipo de sensação que querem despertar naqueles que as consomem.

Os filmes live-action do Deadpool (2016-2018) utilizam muito bem a noção do protagonista de fazer parte de uma narrativa contada, com ele conseguindo quebrar a quarta parede e se comunicar diretamente com o espectador como artifício de humor dentro da história. Re:Zero brinca com as convenções de uma “história isekai de jogo” utilizando regras de games (o personagem voltar do ponto salvo quando morre, por exemplo), mas sem oficializar aquele mundo como virtual. Ambos são artifícios certeiros dentro do que esperam atingir, embora absolutamente diferentes em execução. Quando essa soma de mensagem e forma é bem planejada, os resultados podem ser maravilhosos.

Caso de Shokugeki no Souma, animê iniciado em 2015, com animação do J.C.Staff, que adapta o mangá de mesmo nome do autor Yuto Tsukuda, publicado pela Shueisha entre 2012 e 2019 (e aqui pela Panini desde o ano passado). A trama leva propositalmente uma série de clichês de histórias shounen para o ambiente culinário. Temos o protagonista Yukihira Souma, que passou a vida cozinhando com o pai num restaurante de bairro, popular, indo para uma conceituada escola de gastronomia. Nela, há todo um sistema de castas e competições entre alunos, que são frequentemente colocados em situações que os forçam a melhorar, exercer a criatividade, trabalho em equipe e coisas do tipo. Rolam os shokugekis, duelos culinários em proporções épicas, “acampamentos” onde eles cozinham um contra o outro sob a supervisão de ex-alunos já formados, “eleições” para definir os melhores de cada ano, estágios, festivais e outras ocasiões pontuais.

Souma, inicialmente, é visto como um outsider, como alguém sem o refinamento necessário para frequentar tal ambiente. Conforme os arcos passam, ele adquire a amizade e o respeito de vários galhos da fauna estudantil, embora sempre apareçam outros grupos mais ególatras e todo o ciclo precise ser repetido. Inclusive, contra uma patota de mais alto nível intitulada “Elite dos 10”, alvo dos conflitos mostrados nessa mais recente temporada, Shin no Sara, exibida entre outubro e dezembro de 2019.

Shokugeki consegue ser um exemplo interessantíssimo de obra cujos artifícios narrativos utilizados amplificam a experiência em diferentes fronts. Honestamente, o roteiro não é super elaborado, uma porção de clichês são repetidos aqui e ali (o protagonista surgido de baixo que vai alçando voos maiores; os antagonistas tidos como mais especiais que os outros, mas que veem seu status quo ser alterado pelo conflito com o herói; um “sistema” opressor que deve ser enfrentado; etc.), mas os auxílios visuais e auditivos inseridos no pacote todo alargam a experiência num todo, fazendo dessa, que poderia ser uma série absurda, mas comum nas mãos de outros, em algo um tiquinho mais especial que o esperável de um “shounen de lutinha”.

O primeiro deles é se aproveitar do fato de a temática do plot girar em torno de gastronomia e caprichar em tudo o que se relaciona a isso. Os treinamentos e preparos de pratos são tratados com cuidado semelhante ao que séries de aventura teriam com cenas de artes marciais. Assistir um personagem cortando uma cebola aqui é como ver, em questão de intensidade, um samurai treinando com sua espada, por exemplo. E não que a faca se converta numa espada nesse processo (tem horas que rolam essas paródias, mas não é essa a regra geral), é que a direção do animê adiciona um vigor tão grande e caricato em cenas assim que é muito fácil se deixar levar pela ação.

Os segmentos onde rolam os ditos shokugekis são tratados como segmentos de brigas quase mortais: são exibidos golpes através do modo como reagem aos preparos, como os alimentos são cortados, triturados, como os temperos são adicionados e coisas triviais do tipo. Quando as especialidades culinárias dos personagens são reveladas, é como, por exemplo, observar novos jutsus sendo exibidos em algum combate de ninjas em Naruto, ou golpes especiais em batalhas Pokémon, a escolha da referência é livre.

Há também um cuidado com a arte dos pratos quando eles, enfim, são apresentados: muito detalhado, com mais realismo que todo o resto, o que até causa uma confusão momentânea na cabeça quando outras camadas na animação, mais surreais, se misturam a isso para ilustrar como seriam os cheiros, sons, sabores e tudo mais que permearia tais momentos. Shokugeki no Souma, de fato, usa as possibilidades de ser uma mídia animada para esticar a experiência do telespectador em receber as reações que são desejadas por sua direção. Seu foco principal, grande ouro, o gimmick, é jogar quem está assistindo nas sensações que poderiam ser provocadas, caso presente ali.

Quando um prato é muito gostoso…

E talvez a ilustração mais convincente nisso tudo seja, justamente, a escolha roteirística mais insensata em todas: os personagens mergulharem em fantasias nudistas quase sempre relativas ao tipo de comida que consumiram. Com exceção de Kill La Kill (2013-2014), não me lembro de ter visto um uso de ecchi tão bom e justificável quanto esse, que serve para impulsionar o que está sendo contado em vez de apenas como um acessório gratuito, desmotivado narrativamente. E engraçado, hilário em seu disparate. O erotismo é posto com garotos, garotas, adolescentes, adultos, idosos, de todas as castas de importância dentro da árvore de personagens. E suas consequências são reais dentro do animê. Em um dos episódios finais, é explicado que um dos vilões, construído como um fascista, corrupto, controlador e abusador, possui uma “habilidade” muito curiosa: despir os que estão a seu redor (as roupas se desintegram do corpo) quando ele gosta muito de um prato. Essa piscadela carregada de semiótica não funcionaria com um dos heróis, seria incoerente, mas reforça o nosso entendimento de que tal cara é um canalha, sem que ninguém precise literalmente dizer isso.

E se esse “prato principal” é primoroso, o resto do jantar não faz feio de maneira nenhuma. Os personagens são muito legais e variados entre si em pontos como personalidade, visual, talento, experiência e suporte em cenas. A maioria deles apresenta uma curva de aprendizado em seus arcos pessoais, com mudanças que são refletidas a curto e longo prazo. Duas das mais evidentes são a das personagens Erina Nakiri e Megumi Tadaroko. A primeira, inicialmente apresentada como uma antagonista feroz, inatingível, posta lá em cima por seus talentos pregressos, arrogante, quase se recusando a aprender com os outros ou admitir suas qualidades, mas abrindo-se lentamente para novos conhecimentos e amizades, que a tornam uma cozinheira e pessoa bem melhor que antes. A segunda, humilde, descolada, um avatar da síndrome do impostor, que ganha confiança também auxiliada pelas amizades adquiridas, experiências vividas e quedas constantes.

O único defeito destacável de Shin no Sara é o fato dessa quarta temporada ser apenas o desenrolar de assuntos iniciados na terceira. É um encerramento muito bom para uma porção de atritos construídos até então, mas sem nada que a faça “única” e autossuficiente, como foram as anteriores. De qualquer maneira, ela funciona muito bem nesses moldes. Ainda é um desbunde visual, os shokugekis ainda são emocionantes (o último deles, com um monte de resultados inesperados desenrolados de atitudes inesperadas dos competidores é particularmente delicioso de ver), e o final, embora esperado, é bem bonito de assistir.


Esse texto tem como base a adaptação em animê de ‘Food Wars! – Shokugeki no Souma’, com foco especial em sua quarta temporada, subintitulada de ‘Shin no Sara’. A série está disponível oficialmente aqui no Brasil através do serviço de streaming Crunchyroll (assista aqui), com áudio original em japonês e opção de legendas em português.