Há alguns dias, o Japão passou uma proposta de nova lei de direitos autorais, que deve entrar em vigor a partir do ano que vem caso aprovada pelo parlamento. Segundo a nova regra, quem for pego baixando mangá, revistas ou trabalhos acadêmicos ilegalmente, está sujeito a pena de prisão e multa de até 2 milhões de ienes (algo em torno de 90 mil reais) – essa regra valia, até então, apenas para downloads de vídeos e músicas.
Sites que fornecerem links para material pirata, mesmo sem hospedar esse material em si, agora também estão sujeitos a punições, embora pessoas já tenham sido presas por isso antes de qualquer tipificação penal. Anteriormente, apenas sites que postavam o material ilegal poderiam ser punidos, com os responsáveis sujeitos a 5 anos de prisão e multa de 5 milhões de ienes (225 mil reais) – e foi justamente devido a essas restrições que os sites com links piratas se tornaram numerosos no Japão, uma forma fácil de “burlar” a lei.
A lei é nova, mas a discussão é antiga: qual a relação da pirataria com o mercado formal? Ela ajuda ou atrapalha? Dá para frear a pirataria? Para entender melhor essa questão, o JBox conversou com Andressa Soilo, doutora e mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A tese de doutorado dela, sobre propriedade intelectual, streaming e pirataria digital, pode ser acessada gratuitamente no Repositório Digital da UFRGS.
Segundo ela, os efeitos da pirataria são muito flutuantes de caso para caso, nada na sua relação com o mercado formal tem uma resposta certa. Em alguns casos, uma versão pirata ou gratuita pode ter efeito positivo, como ocorreu com Little Brother, livro de Corey Doctorow. O autor disponibilizou versões digitais grátis do livro, que acabou no top 10 da lista de mais vendidos do New York Times em 2008. Corey é um ativista e defende que a falta de acesso por parte do público é o maior inimigo dos criadores de conteúdo.
Em outros casos, ela pode ser negativa – no Japão, ela é apontada como um fator principal para o declínio de vendas no mercado de mangás. Em 2015, um estudo japonês identificou que as vendas de mangás completos caíram enquanto as vendas de obras ainda em publicação subiram após uma campanha que dificultou acesso a materiais piratas. Essas são algumas evidências de que a relação entre o mercado legal e o ilegal é bastante complexa (como todo fenômeno social, diga-se de passagem).
Um outro ponto trazido por Andressa é que a pirataria não é simplesmente uma questão econômica ou de acesso. Obviamente, este é um fator importante e interessante de ser considerado, mas há também questões como motivos ideológicos (“não vou dar dinheiro para uma mega corporação”), morais (“não acho justo pagar por este produto”, ou mesmo “este autor facilita o acesso, é sacanagem piratear”), culturais, entre outros, na hora de alguém optar por acessar um conteúdo ilegalmente. Ela ainda nos contou que há alguns lugares muito ricos que estão sempre no top 10 da pirataria, como Singapura, onde as pessoas sabem que é crime, mas pirateiam mesmo assim, já que podem ter o material de graça dessa forma.
Questionada sobre as diferenças entre Norte e Sul políticos, ela acredita que, pelo Sul ter demandas sociopolíticas mais urgentes, além de estar em constante esforço de adaptação às diretrizes e leis de países do Norte sobre propriedade intelectual, a pirataria acaba não sendo prioridade dos governos e também se torna banalizada entre as pessoas, até porque, mesmo o preço dos serviços muitas vezes pesa bastante no bolso (e os serviços e catálogos tendem a ser mais modestos). Já no Norte – basicamente o berço da pirataria digital (Napster surgiu nos EUA e The Pirate Bay, na Suécia) – a questão é menos sobre acesso e mais política e cultural. Por exemplo, a Suécia foi o primeiro país a ter um Partido Pirata, fundado em 2006, com bandeiras, obviamente, pró-pirataria. Ela também conta que países nórdicos detém um índice curioso de pirataria – na própria Suécia, por exemplo, cerca de 20% das pessoas acessam conteúdos de forma pirata.
Para Andressa, devemos ter em mente que a pirataria não é algo “à margem” do mercado, é como um “serviço” (afinal, é uma alternativa que serve a muitas pessoas), e também mobiliza e molda o mercado formal. Serviços de streaming, trazendo muito conteúdo a um preço mais convidativo, são efeitos do consumo pirata no começo dos anos 2000, que indicava certas demandas do mercado consumidor. Inclusive, ainda segundo a antropóloga, a Netflix já admitiu que rastreava o que as pessoas estavam pirateando para criar programas mais atraentes para o público. Ela também conta que, na Índia, o público queria muito acessar o Spotify, mesmo tendo diversos outros streamings de música à disposição, e algumas pessoas compravam contas americanas ilegalmente para poder utilizar o serviço. Esses exemplos indicam certa simbiose da pirataria com o mercado formal, embora a relação entre ambos seja permeada também por diversas tensões.
Questionada sobre formas eficazes de combater a pirataria, Andressa acredita que serviços que atraiam e satisfaçam as demandas da clientela são importantes (esse é um dos motivos pelo qual uma série de serviços busca personalizar a experiência do usuário). Provavelmente, as pessoas queriam serviços como Spotify quando baixavam músicas no Napster. Contudo, hoje, há a percepção de um “excesso de serviços de streaming“ – quem quiser “tudo”, vai acabar pagando caro por cada serviço e o público, num geral, não quer assinar muitos serviços – isso, inclusive, pode acabar levando alguns à pirataria (essa insatisfação deve ser lida também como uma demanda do mercado).
Outro fator importante são leis, mas não leis agressivas. Para ela, leis como a japonesa podem, num primeiro momento, coibir as pessoas pelo medo (e pelas prisões “pedagógicas” de grandes nomes/sites da pirataria), mas as pessoas do meio sempre acabam encontrando uma forma de burlar a legislação (por exemplo, no Japão também é muito comum o uso de sites de file-sharing privados, com senha nos arquivos). Leis severas demais acabam pegando meio mal, por punirem de forma absurda crimes que não são tão condenáveis assim (além de, muitas vezes, deixar evidente a existência de um lobby por trás). Mas leis coerentes com o crime e as motivações que levam a ele são uma forma válida e importante de combater a pirataria.
Outra questão essencial para Andressa são campanhas didáticas. Muito se fala de como “a pirataria é ruim” mas pouco se explica sobre direitos autorais e as questões legais envolvendo propriedade intelectual. Ela fez um estudo sobre serviços que distribuem canais de televisão de forma pirata (o famoso “gato”) e descobriu que muitas pessoas acreditavam não estar fazendo nada errado já que pagavam dinheiro a um mediador que fornecia os canais. Ela mesma achava, quando mais nova, que baixar música era algo normal, oferecido pelo computador sem qualquer ilegalidade (e, com certeza, não foi a única). Assim, é importante ensinar às pessoas sobre propriedade intelectual e direitos autorais.
Por fim, a antropóloga acredita que, mesmo com o combate, a pirataria vai sempre existir e se adaptar às novas regras, justamente por não ser um assunto simples. As pessoas continuarão pirateando por diversos motivos, seja por ideologia, seja por querer assistir algo que não está em nenhum serviço legal (até porque esses serviços provavelmente nunca conseguirão abarcar tudo que existe), e, assim, continuará moldando o mercado formal e também entrando em conflito com ele.
O JBox agradece à Andressa pelo tempo e solicitude. Se você se interessou pelo assunto, não esqueça de baixar a tese de doutorado dela gratuitamente (e legalmente) aqui, confira também outros textos dela no Manual do Usuário [agradecemos ao Vagner Alexandre por esta dica].
Depende da mídia! Jogos antigos para: (Nes, Snes, Sega, GBA…) deveria está livre dessas leis, já que a maioria das desenvolvedoras desses games, não existem mais.
”Saiu de casa, vira domínio público.”
Ikizer Donno
Só vim aqui dizer que nem li e nem lerei este tipo de matéria…
Exceto que muitos desses jogos ainda são oferecidos de forma oficial, mesmo com as desenvolvedoras não existindo mais, outra foi lá e comprou os direitos.
A ignorância também deveria ser um assunto levado em conta quando se trata de pirataria.
Pois é… isso acontece com títulos mais conhecidos; 90% são ignorados.
Bom, eu acho que retribuir as pessoas que criaram o conteúdo que estou consumindo é o certo, valorizar aquilo que se esforçaram pra fazer. Sobre os animes por exemplo, assino Crunchy e Netflix e só vejo animes por ali. A ultima vez que acompanhei em um lugar “alternativo” foi em 2018, durante a estreia de Tokyo Ghoul… aí eu dropei o anime no ep2.
Ótima matéria.
Irônico o Luffy ser anti pirataria
(imagine uma música sertaneja antiga. Agora cantarole)
Lá vem o corno nos chamar como sempre
Bem do alto de sua ignorância
E aqui e agora a gente canta pra essa gente
Que vota errado e de burrice tem abundância
Pirataria acontece todo dia
Nas esquinas, na rede e na vida
Só imaginar que essa música tocaria
Até no baile deste cara copiadinha
O que o otacku brasileiro não aprende
Que a vida a gente aprende pra ter esperança
Senão este cara não vive pela frente
Porque da morte ela te puxa pela dança
Contatos para shows, só nos chamar
Podiam fazer uma lei onde quem baixa mangá pirata vai trabalhar como ajudante dos autores. Vão ler antes de todo mundo e vão ajudar a indústria. Todo mundo ganha.
Uma lei assim não faz o menor sentido de várias formas.
Os autores moram no Japão. Ajudar na adaptação para o português você quis dizer? A maioria dos que consomem pirataria são crianças ou ignorantes, não vejo como poderiam agregar positivamente no trabalho de um autor e nem na tradução para o nosso idioma.
E uma ‘punição’ como essa induziria mais pessoas a fazer o mesmo. Assim tendo cada vez mais pessoas lendo os mangás de graça. Ou seja, continua sendo ruim para a empresa que os publica.
Cara, foi uma piada…
Ok! Não entendi muito bem onde está a piada… mas tudo bem. :)
Em One Piece ele age diferente de 90% dos piratas: não rouba pessoas ou vilas, só viaja de boas e enfrenta outros piratas malvados ou marinheiros (a maioria deles é mal nas altas posições, Smoker é uma exceção).
Dei like porque imaginei a cena, a pessoa vai ser ajudante e vai ver a dureza que é a vida de mangaká e ajudante kkkkk.
Ela está certa, eu por exemplo deixei de assinar a netflix por questão oral, em resumo ela quis boicotar o estado americano da Geórgia, só porque lá passou uma lei anti-aborto, aí eu cancelei ela depois disso e terminei de rever FMA Brotherhood agora dublado (porque a netflix não pegou o direito da dublagem BR), eu penso voltar a assinar a Crunchyroll porque ela dublou animes (a maioria em estúdios bons também) e eu nem vi legendado piratamente animes que ela dublou, depende muito mesmo de como a pessoa pensa e as condições financeiras dela, e no fim eu acho que o fã busca dar lucro pros criadores do produto diretamente, seja mangá, camisa (oficial né) ou jogos.
O mundo dá voltas. Quem diria que o Jbox algum dia iria “ouvir o outro lado” da pirataria, o dos consumidores.
No caso de trabalhos acadêmicos chega a ser uma patifaria falar em pirataria. O conhecimento científico precisa ser livre de restrições. Restringi-lo é um entrave ao progresso da humanidade, afinal como conhecimento novo e útil pode ser produzido sem o acesso pleno ao que a ciência já produziu?
Conheço autores que sequer podem utilizar seus próprios trabalhos irrestritamente, sem contar que as editoras é que ficam com todo o lucro. Ganância essa que levou o jovem ativista Aaron Swartz (fundador do Reddit) a se suicidar aos 26 anos, após condenações absurdas de dezenas de anos de prisão, além de uma multa milionária que jamais conseguiria pagar, por ter disponibilizado trabalhos acadêmicos ao público. Uma perda irreparável de uma personalidade promissora.
Numa era em que a desinformação e a anticiência são largamente propagadas junto às fake news, inclusive por figuras públicas e governamentais, esse modelo de negócios que restringe o conhecimento acadêmico e se reflete na legislação presta um verdadeiro desserviço à sociedade.
Muito da pirataria é culpa das próprias empresas que acabam fazendo maus acordos de distribuição, sem deixar portas abertas pra nicho.
Tome como exemplo Pokémon ou Sentai. A Pokémon Company e a Toei colocam episódios no canal japonês do youtube mas deixam com bloqueio de região. E isso porque provavelmente fizeram acordo com empresas estrangeiras pras quais deram direitos globais e acham que pra gente só as versões “localizadas” são suficientes.
Nesse sentido, pra mim a melhor abordagem, que devia ser um exemplo, é sem sombra de dúvidas da Tsubaraya. Eu virei um fã mais engajado de Ultraman porque Geed foi exibido no canal deles no youtube. Sem trava de região. Ser uma ótima série foi um baita bônus pra eu virar fã. Fiquei tão feliz que até comprei o blu-ray do filme pra apoiar eles. E mesmo já tendo visto a série de graça no youtube deles, comprei o BD box da Milcreek, até encarando pagar nossa “maravilhosa” taxa de importação.
Sobre esse BD vale uma salva de palmas pra eles também. Além de serem bem acessíveis, estão saindo por um ótimo preço. E melhor ainda, por ser BD, posso comprar e assistir aqui na minha TV quando quiser. Bem diferente do que a Shout fez com sentai, onde só lançou em DVD e, se você quiser assistir, bem, se vira aí arranjando um aparelho/leitor sem trava de região. Tem até a questão do preço: os sets de sentai são mais caros numa mídia “inferior”.
Eu topo apoiar a empresa comprando os produtos licenciados dos animes que eu gosto se eles facilitam o acesso.
Acredito que a imprensa deve ser livre para ouvir todos os lados. :)
Dica: procure mais sobre a autora, pois ela já falou sobre Aaron Swartz e o trabalho político-ativista que o mesmo fez justamente sobre as produções acadêmicas.
Muito boa a matéria, eu concordo que a questão é uma demanda. Eu por exemplo não uso Spotify pq não tem todas as músicas que gosto lá. Assino Netflix e Crunchyroll e consumo animes piratas quando não tem no catálogo dessas duas, o que é bem raro. Consumo alguns mangás atuais piratas pois saem mais rápido do que chegam aqui, mas tenho uma grande coleção licenciada. Jamais eu daria 1 centavo para esses sites piratas que visam lucrar… Acho que perdeu muito o de fã pra fã de antigamente, atualmente é sempre visando lucro. Sobre a questão de não vou pagar esse preço, sinto muito isso com action figures onde muitas não valem o valor exorbitante que cobram (claro que o dolar alto tbm contribui pra isso)