Lupin III – O Primeiro, o lançamento da Sato Company pensado inicialmente para os cinemas brasileiros (sabe… quando ainda tinha cinema… e Brasil…) é o primeiro filme do personagem em computação gráfica, a estética vigente no mainstream da animação para cinema para todas as idades. É um projeto com a clara intenção de atingir um público amplo e, quem sabe, conquistar novas audiências pelo mundo. Essa intenção, digamos, mercadológica, é o que acaba por ditar uma série de decisões narrativas que o filme toma — tanto para o bem quanto para o mal.

Antes de mais nada, vamos ao disclaimer: Olá! Lembra de mim? Leo Kitsune! Que tinha um canal antes, sabe? (Agora eu tenho um podcast! Ouçam meu podcast! Eu falo de Kimetsu no Yaiba no segundo episódio!) O JBox me fez a gentileza do convite para escrever a review de Lupin III – O Primeiro porque eu sou um grande fã do personagem — e isso meio que também foi o motivo do convite da Sato para que eu dublasse o longa-metragem. Eu faço umas pontinhas como alguns figurantes ao longo do filme (e, ei, tirando uma fala péssima, até que não me saí completamente mal) e foi uma enorme honra ter a minha voz num filme de um dos meus personagens preferidos. Mas o JBox não fazia ideia que eu estava no filme quando me convidou para escrever isto aqui. Então, que fique claro: meu envolvimento com a produção não passa de alguns minutos nos estúdios da Centauro… mas existe, então encare essa crítica da forma que preferir.

Isto posto…


Alguns dos grandes acertos de O Primeiro nascem da já citada intenção de alcançar um público amplo e mundial. Lupin III é um interessantíssimo estudo de caso de como se conduzir uma franquia tão longeva. Uma das suas maiores marcas é o respeito pelas características que fazem Lupin ser Lupin. E se o filme de Takashi Yamazaki (diretor de Dragon Quest: Your Story e de Stand By Me Doraemon, que foi um enorme sucesso no Japão e agora eu realmente estou muito curioso para assistir) quer apresentar o ícone para o mundo, é bom que essa história seja um exemplo fiel de sua estrutura usual.

A trama, como de costume na franquia, não é exatamente sobre o Lupin — mais sobre isso mais tarde —, ela é, na verdade, a história da mocinha da vez, Letícia, uma garota que tenta roubar um tesouro, o Diário de Bresson, que também é alvo do ladrão, o que os leva ao esquema de uma organização neonazista e uma viagem pelo mundo descobrindo artefatos, visitando lugares estranhos e desvendando segredos. A Letícia é uma típica coprotagonista de histórias de Lupin III, principalmente as que seguem a abordagem mais leve, romantizada, “miyazakiana” do personagem (em contraste com outras adaptações, como a série A Mulher Chamada Fujiko Mine e os filmes recentes da mesma linha, mais violentos e hipersexuais — e mais fiéis ao mangá, de certa forma): é uma moça, digamos, pura, que se mete num mundo de crimes e conspirações e acaba se encantando pelo ladrão no processo. Esse tipo de história e abordagem também dão vazão para o que há de melhor em Lupin III: a franquia é famosa por suas cenas de ação elaboradas e absurdas, e O Primeiro, em seus melhores momentos, me lembra As Aventuras de TinTin, a animação recente de Steven Spielberg, em sua energia, apuro técnico e escala (principalmente a cena final de TinTin, uma correria maluca morro abaixo). A cena da perseguição na rodovia, em especial, é daqueles momentos pra você separar pra convencer alguém a assistir o filme — e todo bom filme de Lupin III precisa de uma boa perseguição de carro inverossímil que termine com o Goemon cortando ao meio seja lá o que for. Tudo tem aquela camada de acredite-se-quiser, marca registrada do personagem… O que me deixa com a dúvida se o novo público iria aceitar tudo que acontece, mesmo sendo uma animação. Sim, todo mundo aceita a casa voando com balões em Up – Altas Aventuras, mas será que esse mesmo público não encararia O Primeiro como algo que deveria ser sério, já que tem um elenco adulto e uma trama de crimes e armas e nazistas?

De qualquer forma, essas cenas de ação absurdas são um ponto alto do filme que se alia a outro: a qualidade da animação e o design dos personagens. Eu nem preciso falar muita coisa, é só assistir ao trailer e se encantar, como eu me encantei há muito tempo. Mas não é só questão de animação fluida, é acertar o ponto exato da transição 2D-3D dos designs dos personagens e retratar com maestria a linguagem corporal já consagrada desse quinteto de ícones. Outra marca da franquia Lupin III é o fato de que seu conceito básico é razoavelmente simples, e histórias novas não costumam tentar se explicar demais. Nenhum mangá/filme/série/especial do ladrão tem relação um com o outro, todas as adaptações são independentes e todos os episódios são fechados (no geral), e todas as vezes em que temos uma nova iteração do personagem, a história não perde muito tempo explicando quem é quem e o que eles fazem: em O Primeiro, basta uma cena em que Lupin III deixa um aviso-desafio declarando que vai roubar o Diário de Bresson, seguida da chegada de Zenigata e seus policiais sem rosto, uma perseguição maluca e o twist da Fujiko atrapalhando o esquema do Lupin e pronto, toda a dinâmica está explicada. Mas para isso, também é essencial que o design e a linguagem corporal colabore com a experiência. Você precisa da postura solta do Lupin para saber que ele é ótimo no que faz e é extremamente confiante, mas não leva nada muito a sério. Precisa da cara fechada do Goemon para saber que ele faz parte do bando, mas nunca está exatamente muito confortável com nada que está acontecendo. Os rostos estão perfeitos, principalmente o já citado Goemon e a escolha de deixar Zenigata tão quadrado que parece uma estátua da Ilha de Páscoa, denotando a sua rigidez e retidão. (E rapaz, como o Jigen tá gato.)

Porém, a animação de ponta também acaba por fazer com que O Primeiro caia nas tentações da computação gráfica, principalmente pensando no contexto daquela primeira escolha mercadológica: é o primeiro filme CG da série, é o filme que precisa conquistar público, então é o filme que precisa impressionar. Resultado: por vezes, a direção escolhe fazer tomadas giratórias completamente desnecessárias, só porque dá. A já citada primeira cena é um ótimo exemplo de exageros bobos — seguidos de sinais de que a direção sabe o que fazer, quando quer. A cena no alto do telhado pode ser linda, mas precisamos mesmo da câmera girando em círculos só para mostrar o belo cenário e as belas luzes do pôr do sol? Mas logo depois, temos enquadramentos realmente criativos: Lupin com o diário na mão, seguido da Fujiko, que estava fora do quadro, o tomando de sua mão. Gosto também da tomada logo em seguida, em que Lupin está bravo com a Fujiko e enquadrado à direita da tela, e Zenigata surge no elevador à esquerda. É simples e muito bonito. É a diferença entre o floreio técnico desnecessário e a criatividade real. A diferença entre duas cenas do fim do filme, por exemplo: uma envolvendo todos os coadjuvantes num corredor fazendo nada de mais, mas com a câmera viajando, fazendo piruetas e revoluções no ar — outra, uma luta num avião, usando todo o potencial do cenário para criar situações impossíveis, uma ótima cena para fechar o filme.

Esse esforço para impressionar é louvável, mas poderia ter sido melhor aplicado, por exemplo, nas cenas que não são de ação. Os personagens são todos muito carismáticos, a trama é simples mas realmente não precisa ser mais do que é, e o filme brilha em diversos momentos — mas quando os personagens precisam solucionar um “puzzle”, a sensação é a de que o filme para. Uma coisa é avançarmos junto dos personagens, descobrindo lugares, sentindo a história se desenrolar. Outra são os personagens abrirem um livro e lerem na nossa frente. Existe uma sequência de quebra-cabeça, próxima ao fim do segundo ato, que utiliza o máximo do Lupin e o máximo da computação gráfica: envolve manipulação de gravidade e risco de vida e é divertido e intrigante. Mas num outro, mais cedo, o Lupin resolve o mecanismo de abertura do diário sem que nem ao menos entendamos como ele o fez, contando apenas com a ameaça genérica citada pelos personagens na cena, que dizem que se não o resolverem uma bomba explode. O filme pode — e consegue! — criar sequências que prendem nossa atenção e nos tiram o fôlego, mas às vezes a sensação é de que temos que esperar esses momentos chegarem enquanto Lupin e Latícia leem um diário e falam as descobertas em voz alta.

E por falar no diário… Mais duas decisões geradas pela tentativa de criar uma porta de entrada para novos públicos são relacionadas ao grande McGuffin do filme… mas isso eu preciso deixar para uma zona de spoilers mais abaixo. Não leia antes de ver o filme!

E veja o filme! Porque ele é um filme encantador, divertido e lindo, capaz de empolgar em seus melhores momentos, apesar de certas “barrigas” que um diretor mais experiente talvez conseguisse contornar melhor. Se num momento o filme parece monótono, no instante seguinte um personagem é jogado de um avião e temos uma típica cena maluca e impossível de Lupin III (essa cena em específico é ótima) e, no fim, a experiência como um todo vale muito a pena.

 

 

Agora… spoilers!

Lupin III não costuma ser sobre o próprio Lupin III. Não temos muitos estudos de sua psique ou mergulhos no seu passado, e a franquia não costuma investir em auto-homenagens com tanta frequência. Mas, correndo o risco de ser repetitivo, essa é a tentação na qual este filme cai pelos motivos já citados. O tal mecanismo destravado por Lupin, que citei acima, só podia ser desvendado por ele… pois foi criado pelo seu avô, o lendário ladrão de casaca Arséne Lupin, numa rara oportunidade em que a franquia decide ser uma “história definitiva” do personagem, completa com a incorporação de sua principal inspiração.

Mas isso não tem nada de mais. Não é o fim do mundo, sabe. Fim do mundo mesmo é a última tentação em que cai O Primeiro. Que, no caso… é o fim do mundo.

Uma coisa curiosa das várias versões de Lupin III é que suas adaptações são absurdas e inverossímeis, mas elas conseguem, estranhamente, ao mesmo tempo, serem muito “pé no chão”. Tudo bem, o Jigen nunca conseguiria atirar na quina de uma porca e fazer ela girar e soltar o parafuso para derrubar a placa no carro de polícia… Goemon nunca cortaria uma viatura ao meio num corte limpo e reto e preciso… mas a brincadeira costuma parar por aí. O Primeiro é a única história de Lupin de que eu tenho memória (…minha memória não é lá essas coisas, mas enfim) que cria uma trama que termina numa “arma apocalíptica”, como é o Eclipse deste filme. Realmente não me lembro de Lupin III empregar o equivalente ao “raio azul pro céu”, usado à exaustão recentemente nos grandes blockbusters hollywoodianos até virar piada e ser aposentado.

Os momentos de certa lentidão podem ser necessários. Os loopings da câmera são perdoáveis. A referência ao Arséne Lupin original não é grande problema — e ainda cria uma cena que eu já considero icônica, com o chapéu e a bengala; além de justificar o título “O Primeiro” — mas uma Arma do Fim do Mundo… eu já não gosto, pessoalmente, de quando Lupin vai pra algo um pouco mais místico/sobrenatural, mas essa última decisão realmente é a que me incomoda mais em todo o longa.

A cena final da luta entre Lupin e Geralt no avião compensa, porque é realmente ótima. Mas, na próxima, menos fogos de artifício e mais roubo, por favor.


Lupin III – O Primeiro será lançado no Brasil em 8 plataformas de streaming de aluguel e compra digital no dia 3 de junho. Saiba mais aqui.