(Foto de capa: Claudio Onorati/European Pressphoto Agency via NYT | Divulgação)


É difícil sentar para escrever um texto assim depois de ler e ficar completamente desconcertado com as últimas palavras que Satoshi Kon escreveu no seu blog (em inglês). Não consigo pensar em algo capaz de fazer jus ao que essa figura representa na história da animação japonesa, ou até mesmo definir a complexidade de uma pessoa hesitante em entrevistas, talvez até tímido, mas de ideias expansivas e narrativas multifacetadas.

Mas me parece correto, mesmo que raspando só a superfície dessa personalidade, pelo menos reavivar uma lembrança, ou criar uma nova, de cenas que, parafraseando Susan J. Napier, mostram uma coisa e depois fazem você perceber que, na verdade, você não está vendo aquilo que você pensava estar vendo.

Mima, protagonista do filme Perfect Blue

Primeiro, o caos

Perfect Blue e Millenium Actress, os dois primeiros filmes dirigidos por Satoshi Kon, apresentam um estilo narrativo profundamente calcado de um modo representativo, onde a forma é o próprio conteúdo e o conteúdo textual/formal (trama e personagens) é mantido o mais simples possível, como se fosse uma base para a fantasia de verdade acontecer entre os cortes e enquadramentos, no movimento dos elementos dançando entre o real e o virtual, o verdadeiro e o ilusório, que em um momento é caos e no outro é eros, junção e harmonia. Mas quando tudo parece certo e bem arranjado, volta a ser caos outra vez.

A experiência cinematográfica em ambos os filmes não é fundamentada numa estrutura de fábula, como nos filmes de Hayao Miyazaki, nem numa crítica social sistemática, como nos filmes de Katsuhiro Otomo e Oshii Mamoru (mesmo possuindo aspectos de ambos), mas na metalinguagem ou, mais especificamente, numa metapercepção, onde o quadro é uma tentativa de representar o conceito visual do que é a percepção em todas as suas camadas, considerando inclusive e consequentemente, a si mesmo, o próprio filme, como um meio perceptivo.

Seja de forma mais caótica e obscura, como em Perfect Blue, onde a história se desenvolve ao ponto do delírio e violência, ou mais ordenada e vivida, como em Millennium Actress, onde o amor juvenil perdura e se remodela na diversidade de locações e épocas. Os dois filmes brincam com o nosso próprio poder de “perceber o que percebemos”, e como esse movimento opera.

Esse processo metabólico e profundamente dialético ilustra o laboratório de experiências de Kon. Em entrevistas ele dizia não focar tanto na história, o mais fundamental era a narrativa, o aspecto visual, o movimento, os storyboards que ele desenhava detalhadamente, negando, por assim dizer, o rígido e sólido como o “em si” de um filme, colocando antes de tudo o contraditório como a mais pura representação da experiência do real.

Enquanto eu estou aqui escrevendo este texto, também estou pensando sobre o meu almoço de amanhã, lembrando de uma piada que eu ouvi ontem, etc. É impossível parar esse diálogo interno com o próprio pensar e muito menos tentar dissociá-lo daquilo que queremos cristalizar como o nosso pensamento. Enquanto eu sou eu, também não sou eu mais, porque esse eu é do passado, mas mesmo assim continuo sendo eu, mesmo que outro eu.

Sendo mais concreto, enquanto assistimos algo, existem uma infinidade de outros estímulos, além do próprio filme, sendo efetivamente associados a esse momento e que, em última instância, farão parte das nossas lembranças sobre “o momento no qual eu assisti esse filme”. O nosso pensamento flutua, como Mima, entre os espaços e faz sua passagem nessa trepidação intensa e multiforme.

Doutora Atsuko Chiba do filme Paprika (2006)

O (ir)real?

“Você já questionou a natureza da sua realidade?” disse Bernard Lowe, o personagem da série Westworld, para Dolores, questionamento também levantado por Morpheus, cujo nome é emprestado do deus grego dos sonhos, no famoso filme das irmãs Wachowski.

Ambas peças de cultura pop profundamente influenciadas, direta ou indiretamente pelo filósofo francês René Descartes, quando ele em suas meditações, consternado, afirma não ter certeza se ele pode afirmar o que é o real e o que é o sonhar. Ou indo mais longe ainda, dúvida compartilhada por Chueng Tzu após sonhar ser uma borboleta. É nessa clássica (ou batida, depende do ponto de vista) e inquietante dúvida onde Satoshi Kon deita e rola com o seu circo criado na cabeça de Toshimi Konakawa em seu último filme, Paprika.

É essa suspeita, muitas vezes associada a um comportamento paranoico, que nos coloca como mais do que espectadores estáticos e abala fundamentalmente a aparente dada condição da atividade de assistir um filme. Essa é a metalinguagem de Satoshi Kon, filmes questionando a si próprios enquanto filmes, mas mais especificamente, e é isso o que os tornam diferentes de outras experiências metatextuais: filmes questionando a si próprios, principalmente sob a forma como são percebidos no próprio processo da percepção.

Em Paprika, assim como em Paranoia Agent, a experiência antes era representada em um nível um pouco mais restrito de pessoas, uma trip de no máximo três integrantes, acaba se tornando algo coletivo, amplo e mais poderoso. Na sua única série animada, Paranoia Agent, segundo o próprio Kon, um fruto de várias ideias não aproveitadas em filmes anteriores e, ainda segundo ele, numa provocação muito oportuna, a paranoia é, juntamente com as fantasias e ilusões, experiências que definem a forma como vivemos.

Não necessariamente de uma forma ruim, mas com certeza a um nível muito mais profundo e difícil de definir em termos básicos daquilo que percebemos de forma mediada ou não (talvez a tese inteira, sendo bem ousado, é que não existe percepção imediata). É esse o movimento que eu descrevi antes, agora deixado mais explícito ainda: é a partir do irreal que o real se forma e vice versa.

Mas… e onde Tokyo Godfathers entra nessa história? Na epítome do melodrama de um texto que, de certa forma, fala sobre um momento emotivo de luto e reconciliação daquilo que é fantástico, seus filmes, seu legado, a experiência de ser estimulado por ideias que aparecem de surpresa, como visitantes desconhecidos vindos de lugares indefiníveis. E aquilo que é factual, do chão, do dia a dia anônimo, a sua morte, a ida precoce de uma pessoa brilhante que por acaso é a figura central de tudo o que foi tratado até agora.

O bebê roubado e abandonado, o catalisador da aventura, a flor de lótus nascendo na lama, que faz daqueles párias cheios de problemas, protagonistas de uma série de eventos lhes “devolvendo a humanidade” aos olhos da sociedade e seus entes queridos. Essa é a grande sacada que aquele trio disfuncional e autoconsciente da sua própria condição de caricaturas nós propõe nessa reta final.

Existe o mundo de uma grande fantasia, dos milagres de Natal e histórias com final feliz, e também existe o mundo que, mesmo parecendo ordinário demais, é onde nos é pelo menos facultada a chance de, mesmo estando na sarjeta, imaginar esse outro mundo e participar efetivamente dele. Talvez essa imaginação, definitivamente, é o que nos permite de fato manter a ordinariedade do mundo, seja para o bem ou para o mal.

E eu vou terminar esse texto da mesma forma como comecei: com palavras que não são minhas. Em tradução livre, Christopher Bolton sobre Satoshi Kon: “Naquilo que de melhor sabia fazer, Kon estava sempre revelando uma nova camada, outra história, outra realidade além da presente, e a sua morte pode ser vista como aquilo que provocou uma trágica interrupção nesse processo em andamento de revelação. (…) Lendo e relendo essas poucas mas ricas obras, nós precisamos fazer com que essa repetição produza sua própria diversidade, gerando novos filmes para nós mesmos, novos nós mesmos para esses filmes“.