Olá gente, muito prazer. Meu nome é Marcelo “Sahgo” Gouvêa e bem-vindos ao Se Localizando, uma coluna sobre um dos meus tópicos favoritos em festas: tradução e localização (observação: não sou muito popular em festas). Para os não familiarizados, localização é a prática de não só traduzir o texto de um produto (no caso desta coluna, animês) para um outro idioma, mas também adaptá-lo para o contexto da nova cultura. Isso inclui uma gama imensa de decisões que vão desde “escrever ‘Goku’ com um ou dois ‘u’s” até escolhas de vozes na dublagem e o tom que os comerciais do Cartoon Network ou da Globo ou da Rede Brasil ou da plataforma que for escolhem para promover a série do personagem.

Conhecê-los é fascinante para mim, porque diz muito sobre como os envolvidos na distribuição veem o produto e as estratégias que eles adotam para tentar fazê-lo “dar certo” no país destino. E é isso que farei nestas colunas: analisar essas decisões – tradução, edições, dublagem – e falar um pouco sobre elas aqui, possivelmente contando a vocês umas curiosidades e fomentando discussão. Estamos entendidos? Não? Bem, continue lendo e acho que você deve entender, cedo ou tarde.


Com isso fora do caminho, vamos começar o tópico desta coluna com… a minha infância! Eu era uma criança normal do final dos anos 1990-começo-dos-2000, e como toda criança normal do final dos anos 1990-começo-dos-2000, eu assistia Dragon Ball Z, a famosa adaptação animada de maior parte do famoso mangá de Akira Toriyama, e adorava – não perdia um episódio no Cartoon Network, e fazia questão de também assistir às reprises na Band e na Globo.

Goku e sua “bomba espiritual” | Reprodução: Dimps

Dito isso, naquele tempo, eu nunca pensei muito sobre as decisões de adaptação de Dragon Ball Z. Eu sabia o básico, como os personagens terem nomes de comidas e tal, mas nunca fui muito mais a fundo do que só essas curiosidades. Tudo isso mudou quando ali, por volta de 2004, minha família comprou um PlayStation 2, e um dos primeiros jogos que eu joguei nele foi Dragon Ball Z: Budokai 2, jogo de luta desenvolvido pela Dimps e lançado em 2003 para o console e para o GameCube. A versão que eu joguei foi a americana, e aquele foi o meu primeiro contato com Dragon Ball Z em inglês – sinceramente, eu nem sabia que eles tinham o anime nos Estados Unidos! E ao jogar Budokai 2, fui percebendo que vários nomes de ataques e personagens eram diferentes dos nomes com os quais eu estava acostumado: a Genki Dama era “Bomba Espiritual”, o Makankosappo era “Canhão-Raio Especial”, o Mestre Karin era Korin… era tão esquisito! Mas ao mesmo tempo, era muito interessante, e me fez ficar mais interessado nas escolhas de tradução de Dragon Ball como um todo (bem, na verdade de animês e jogos como um todo, mas para os propósitos desta coluna, Dragon Ball). E a série tem muitas curiosidades legais de localização.

Por exemplo, voltemos ao fato dos nomes dos personagens serem baseados em comidas e afins. Todos podemos concordar que isso é bem engraçado – afinal, Akira Toriyama – mas já pararam para pensar como isso muda a nossa primeira impressão desse mundo? Digo, imagine que você é uma criança japonesa em 1984, lendo sua Shounen Jump semanal e conhecendo essa nova história, Dragon Ball. Nela, um menino com o nome do herói macaco da Jornada ao Oeste, neto de um senhor chamado “arroz frito”, faz amizade com uma moça chamada “ceroulas”, rouba o coração de uma menina chamada “seios” (ou “leite”), estuda sob um mestre de artes marciais chamado “Eremita Tartaruga”… são todos nomes bem engraçados, e condizem com como o mangá era quando começou. E mesmo quando ele trocou de marcha e passou a tomar um rumo mais sério de ação, o autor nunca parou de dar nomes assim para seus personagens, até aterrorizando os leitores com um ditador galáctico conhecido como… “freezer”.

Prazer, “Ceroulas”! | Reprodução: Toei Animation

É um charme bem específico de Dragon Ball, e, quando se para para pensar, todos nós, de outros países, não compartilhamos dele. “Goku”, “Gohan”, “Bulma”, “Mestre Kame” – todos simplesmente parecem, para o típico não-japonês, nomes bem típicos de personagens de um desenho animado, indistinguíveis de um Yusuke ou de uma Princesa Adora. Não me entenda mal: claro que, mesmo assim, é perfeitamente possível apreciar Dragon Ball em qualquer cultura (não é à toa que ele é tão popular mundialmente!), mas essa primeira impressão? Completamente diferente da cultura de origem.

Aí você se pergunta: “O que você queria então, que trocassem os nomes dos personagens para suas traduções?”. E minha primeira resposta seria “menos agressividade, por favor, isto é só um estudo”, e minha segunda seria… “talvez”! Seria uma opção válida para manter esse estranhamento dos fãs japoneses nos demais países. Mas aí outra pergunta segue: “Será que Dragon Ball teria conquistado outros países com esses nomes menos ‘sérios’?”. E eis o grande dilema da localização! É uma escolha, tudo é uma escolha: deixar os nomes em japonês, traduzi-los, mudá-los (como fez a versão americana)… todas são decisões válidas, e é preciso pensar nelas com cuidado – o sucesso e a eficácia do animê em questão dependem disso!

E não é só uma questão dos nomes ridículos: na verdade, a não-tradução de técnicas também é uma escolha que afeta a experiência. Por exemplo, como eu comentei antes, nos Estados Unidos, a Genki Dama foi adaptada como “Bomba Espiritual” (o que não é uma tradução direta do termo, que seria “Esfera de Energia”). O nosso primeiro reflexo é achar isso estranho, mas não é estranho não traduzir o termo? Não é um termo inventado, são duas palavras japonesas que têm um significado claro, então por que não traduzir? Provavelmente foi uma questão de sonoridade: alguém, em algum ponto do processo de localização, deve ter achado que “Genki Dama” soa mais grandioso e exótico do que um simples “Esfera de Energia” (se bem que sou da opinião de que o jeito com que a nossa dublagem pronunciava o nome de início, “Jênki Dama”, também não passava muita grandiosidade, mas, bem, acontece). Também é uma escolha válida, tanto quanto a americana, e tanto quanto a de todas as outras línguas que traduziram o termo (a dublagem árabe, por exemplo, adaptou como “Morte Inevitável”. Hardcore!).

Vovó Uranai | Reprodução: Toei Animation

Com essa noção de localização sendo um conjunto de escolhas, nem sempre fica claro o que é um “erro de tradução”. Tomemos por exemplo a personagem da Vovó Uranai (Uranai-baba no japonês): “uranai” literalmente significa “vidência”, “leitura de sorte”. Inclusive, nos Estados Unidos, traduziram o termo como “Vidente”… mas deixaram o “baba” (vovó) sem tradução, resultando em “Vidente Baba”. Qual dos dois é o certo, Vovó Uranai ou Vidente Baba? Ou será que o certo seria traduzir as duas palavras, resultando em “Vovó Vidente”, ou “Velha Vidente”? Ou será que devíamos ter deixado em japonês, “Uranai-baba”? Isso é especialmente difícil de definir em obras antigas como Dragon Ball, que já foram traduzidas e retraduzidas tantas vezes (inclusive pelas próprias produtoras!) que resultam em quase um tipo de “telefone sem fio” em adaptações. Mas graças a isso, os personagens têm dezenas de nomes diferentes em culturas diferentes, e eu acho isso lindo. Dificulta a comunicação intercultural entre fãs, mas é lindo.

Para falar a verdade, teve um incidente recente na minha vida que me fez voltar a pensar na adaptação de Dragon Ball Z: alguém levantou em uma discussão no Twitter o caso do personagem Kami-sama. “Kami-sama”, em japonês, literalmente significa “Deus” – tanto deuses individuais de cada mitologia quanto um Deus maior, acima de todos. Por isso o choque do Goku é tão grande quando ele vê que “Deus” tem o mesmo rosto que Piccolo, um demônio – é, essencialmente, uma brincadeira com as expectativas do leitor com base no conhecimento prévio dele do significado de “Kami-sama”. Mas a maioria das adaptações de Dragon Ball, incluindo a nossa, optaram por deixar o nome sem tradução, prejudicando momentos como esse na obra. E no Twitter, alguém defendeu isso, pois chamar Kami-sama de “Deus” poderia dar a impressão de que ele é o Deus abraâmico, pois essa seria a primeira coisa que nós, como ocidentais, pensaríamos (no Japão, “Kami-sama” também pode se referir ao Deus abraâmico, mas, como a população cristã do país é bem pequena, não é a primeira associação que o típico leitor da Shounen Jump faria).

Kami-sama pode ser cruel. | Reprodução: Toei Animation

Então, qual dos dois é certo? Deixar como “Kami-sama” ou traduzir como “Deus” (algo que inclusive foi feito em um dos lançamentos do mangá por aqui)? Bem… os dois, na verdade! Porque as duas opções fazem sentido dentro da história e tem seus prós e contras. Por um lado, “Deus” faria o personagem parecer grandioso e importante naquela primeira aparição, mas, por outro, deuses muito acima dele são introduzidos mais à frente na história, então, deixá-lo como “Kami-sama” torna a classificação de divindades um pouco menos confusa. Outra faceta fascinante da localização.

E como eu disse, a localização vai além da tradução, e até a escolha de vozes afeta o nosso entendimento do personagem. Quando se fala de escolhas de vozes e Dragon Ball, a primeira coisa que vem à mente sempre é a voz do Goku. No Japão, o guerreiro Z tem sua voz fornecida pela renomada Masako Nozawa, em todas as fases de sua vida, incluindo a adulta. É uma escolha que parece bem incomum para nós, fora do Japão, mas lá, há uma cultura forte de homens sendo representados por mulheres no meio artístico, como no muito antigo e muito popular Takarazuka Gekidan, uma companhia de teatro musical composta somente por mulheres. Em outras palavras, ter uma mulher fazendo a voz de um personagem masculino, mesmo um tão musculoso e sem traços tipicamente femininos como o Goku, não é tão estranho para o ouvido japonês.

Masako (à esq.) e Wendel (à dir.), duas faces do mesmo Goku.

Mas para muitas culturas, todos podemos concordar que é bem incomum, especialmente em décadas passadas – não é necessariamente algo que não poderia ser feito, mas algo que quase nunca é feito (fora de paródias), e se arriscassem seguir o exemplo na adaptação, talvez não causasse a resposta esperada no público – ele poderia achar risível e não conseguir levar a série a sério. Por isso, praticamente todas as adaptações de Dragon Ball escalam dubladores homens para o Goku adulto, e isso muda um pouco a percepção do personagem no Japão versus outras culturas. Na minha visão, é como se o Goku fora do Japão passasse a imagem de um “adulto trapalhão”, enquanto que no Japão, é mais uma imagem de “criança que nunca cresceu”. E os dois são interpretações válidas para o personagem (apesar de haver espaço para discutir intenção autoral). Os dois são Goku.

Acho que essa é uma boa nota para encerrar esta coluna. Esse é o meu propósito com ela: não condenar adaptações e dublagens, mas pensar nos efeitos que elas têm sobre as obras que consumimos. As obras que consumimos nos moldam e nos enriquecem, e a localização faz parte do processo, e merece esse pequeno holofote. E quem sabe voltemos a Dragon Ball algum dia – esta coluna nem começou a explorar a totalidade da coisa! Tem nomes de objetos, outras escolhas de vozes além do Goku, as traduções dos jogos…!

O mundo da localização da série é basicamente tão grande quanto a própria. Mas vamos deixar para pensar nisso em um futuro mais distante, a próxima coluna será sobre um outro tópico. Enquanto isso, quero ouvir o que vocês acham! Traduzir Kami-sama como “Deus” teria sido uma ideia melhor? Qual voz do Goku vocês preferem? E nossa, lembram daquela antiga voz americana do Freeza que se ouvia nos jogos Budokai? Joguem nos comentários, adoraria ler os seus pontos de vista. E com isso, até a próxima!


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