A continuação de Re:ZERO nos brinda com uma nova fase da jornada do jovem Subaru Natsuki. Após superar os revezes de Um dia na Capital (primeiro arco, tem a crítica dele por aqui) usando o seu poder sobre humano de renascimento, agora nosso herói se encontra em um outro checkpoint. Salvo mais uma vez por Emília, ele terá agora de lidar não com a capital, mas com as tramas que envolvem uma mansão, o seu dono e o brasão que ele ajudou a recuperar previamente.
O artista desta nova saga é diferente. Makoto Fugetsu toma as rédeas dos elementos narrativos, mas o estilo permanece relativamente igual. Não há muita virtuosidade na dinâmica e movimentação, o que não quer dizer que seja ruim, mas simplesmente é rígido demais, dando a impressão de estarmos lendo uma espécie de catálogo. Os personagens, ambientação, quadros, balões, até mesmo as letras parecem todas sido extraídas de um tipo de livro “como desenhar mangá como um profissional!”. São de fato bem profissionais, mas são tão comuns que não chamam atenção.
Visto que os aspectos visuais não são ousados ou até mesmo incômodos (o que às vezes é melhor do que simplesmente “ok”), cabe olhar para a história sendo contada. Essa nova saga é uma continuação direta, simples e objetiva que efetua uma transição de ambientes e de trama. O arco anterior é finalizado e um novo toma lugar com novos personagens e mistérios. Nesse sentido em específico nada de muito positivo é fácil de ser apontado, já que tudo possui o mesmo status da quadrinização, é apenas um “ok”.
A transição é simples, apenas operada por um fato específico. A nova trama não tem um mistério tão misterioso assim, já que as coisas são dadas como bem óbvias. Os novos personagens são estereótipos bem conhecidos e sem nada de tão diferente para além de suas definições. E as interações que ocorrem entre esses e o protagonista permanece numa comicidade meio questionável, com conotação sexual e referências a uma autoconsciência do herói em relação a sua condição enquanto personagem de uma fantasia.
A própria facilidade com que podem ser feitas essas separações não é um bom sinal. As coisas parecem não depender uma das outras para compor um mangá, mas sim como se fossem uma colcha de retalhos e conceitos se agregando por conveniência. Entretanto, por mais que à primeira vista eu só consiga enxergar mais um quadrinho japonês feito sob demanda, com fins puramente comerciais, o aspecto irônico que aparece com bastante frequência ao longo da história parece ser algo que merece mais atenção.
Em várias situações, Subaru demonstra uma consciência bem apurada dos elementos do seu entorno, endossando de certa forma aquilo já apontado como “comum”. Ele usa conceitos de videogames para caracterizar certas situações e a terminologia otaku para adjetivar personagens. Essa faceta, além de seu poder de “Morrebinar” é um fator crucial para a capacidade que ele tem para superar as dificuldades que lhe são apresentadas.
Isso, porém, não se restringe apenas à própria história. Se esse grau de ironia é potencializado, poderia ser dito que o próprio Subaru é uma ironia de si mesmo. Uma ironia de alguém que assume para si que sabe identificar com rapidez e precisão o seu entorno, podendo lidar com ele com uma confiança exagerada.
Em vários momentos o protagonista parece ser alguém com uma condução de climas e conversas muito habilitado, tanto em negociações tensas, como em flertes amigáveis. E mesmo assim parece não querer se utilizar disso para o “mal”, mostrando uma ética inabalável um tanto incomum.
Ele tem consciência de estar vivendo algo falso, com pessoas falsas, ambientes falsos e com consequências mínimas, já que a sua própria morte não é algo definitivo, e mesmo assim decide entrar no “clima” do jogo. Ele aparentemente se apaixona por Emília, e a sua condição como apaixonado é estranha, já que em todas as interações ele parece sempre muito desinibido.
É como se ele tivesse certeza que ela vai gostar dele não importa o que aconteça. Não há preocupação alguma com “impressionar” a sua amada, o que não parece encaixar com uma pessoa que é caracterizada no início da primeira saga como um introvertido, preguiçoso, “nerd”, etc.
O que intensifica essa estranheza é que todas as personagens femininas se sentem atraídas, de alguma forma, ao protagonista. É como se ele fosse um modelo de beleza nesse novo contexto, uma tentação para os olhares e corações. Mas geralmente, e aqui eu abro mão de ser preciso, rapazes como Subaru não são exatamente as pessoas mais desejadas no sentido mais amplo da palavra. Então acredito que deve haver algo de diferente acontecendo aí, algo que se lido apenas em sua literalidade, esconde uma nuance muito mais complexa e intrincada.
Se a obra é uma história literal, com linguagem direta e com objetivos claros, então a conclusão que se pode tirar dela é que se trata simplesmente de mais um pastiche. Entretanto, se abraçarmos a ironia que tem sua vez em vários momentos do mangá, e também embarcarmos nesse ambiente mais figurativo e subentendido, talvez daí se possa concluir que essa obra não é simplesmente uma história de aventura e comédia romântica, mas sim uma viagem crítica no imaginário do próprio público-alvo (pessoas que se identificam com Subaru) de Re:ZERO.
Antes, cabe tentar entender o que há de questionável no conceito de “clichê”, as suas dimensões e o que ele acarreta na forma como os elementos de uma obra são apresentados. Não pretendo aqui estabelecer uma definição com teor histórico, mas apenas deixar mais claro o que eu quero dizer quando uso essa palavra. No sentido específico de obras de ficção, o clichê pode ser entendido como: o uso de representações comuns e padronizadas de relações, ambientes, ideias, dilemas, sentimentos e assim por diante.
O uso dos clichês não é necessariamente produto de uma preguiça de criar um mundo original ou coisa do gênero. Pelo contrário, pode ser também uma forma de evitar que o foco do leitor fique disperso, impedindo elementos mais importantes da trama de ficarem perdidos numa poluição de conteúdo. Da mesma forma, o clichê pode funcionar como uma espécie de símbolo “universal” para transmitir uma determinada sensação com maior precisão, evitando algum tipo de interpretação indesejada.
Por outro lado, um dos grandes perigos do clichê é ele em si enquanto uma generalização. A medida que um clichê é uma espécie de padrão ou figura de fácil reconhecimento, ele precisa ser relativamente flexível para poder ser inserido em diversas obras, e para que isso seja possível este não pode possuir muitos detalhes. Pode-se fazer um tipo de linha de especificidade de um elemento onde de um lado está algo extremamente original e sem precedentes, e no outro extremo o clichê.
O problema daquilo que é muito original é que não há base alguma para a compreensão do que está sendo apresentado, podendo simplesmente virar algo ininteligível. Por outro lado o clichê em sua pureza, é tão comum, que torna a obra uma experiência completamente vazia.
A administração dessa linha tênue, entre a compreensão e incompreensão, é uma das tarefas executadas no processo criativo. E além dessa linha, podemos identificar certo elemento que inverte o sentido desses dois extremos: a ironia. Quando algo é completamente original ironicamente, isso muda completamente a forma como a obra se apresenta, pois ganha um corpo melhor definível, podendo às vezes até mesmo acabar virando um tipo de clichê. A mesma coisa acontece com algo que é clichê ironicamente, tratando assim de assuntos extremamente específicos e complexos, com figuras que são de fácil assimilação.
Re:ZERO me parece residir nesse ponto infame do clichê irônico, mas não da forma clichê da ironia (esse tipo de escalação também pode ocorrer) como Subaru nos faz querer acreditar com suas piadas auto conscientes. Mas sim uma ironia que ultrapassa os limites da ficção e pretende demonstrar à partir dessas figuras a forma como um grupo de pessoas parece compreender o mundo.
Talvez seja uma forma cruel de criticar uma visão, já que isso seria basicamente rir da cara de alguém enquanto esse alguém não percebe, mas lembre-se que este meu texto pode tranquilamente estar equivocado. Sempre existe essa possibilidade.
Subaru assim representa uma espécie de jovem leitor que tem fantasias sobre mundos mágicos, garotas atraentes e superpoderes. Mas não apenas isso, já que disso não se tem nada necessariamente imoral (com exceção da Lolicon). O protagonista é a caracterização de um alguém que só consegue se sentir bem com o pensamento de que as outras pessoas existem apenas em razão de sua existência.
Ele é um grande herói que salva uma pessoa importante, deixando-a admirada com tamanha coragem e perseverança, ao mesmo tempo em que seu carisma encanta todas as habitantes do sexo oposto da mansão em questão.
E aqui o clichê entra não mais como um elemento apenas para ser invertido, mas como a própria visão distorcida da pessoa em questão. Todo o universo, personagens e relações são previsíveis e sob controle do herói. Nada escapa de seus comentários, nada é uma ameaça que não possa ser superada, nada é um desafio que lhe faça ter um medo apavorante. O vislumbre da própria morte acaba virando apenas um motivo de piada, um contingente que não possui tão grande peso na balança das suas atitudes. E ele parece estar mais satisfeito do que nunca com tudo isso.
Sua satisfação não é apenas uma espécie de gostar irônico, como quando falamos que gostamos de algo terrível para fazer graça, mas sim a representação do desejo de viver num mundo onde o seu Eu não sofre qualquer ameaça. Onde o herói está completamente sob controle de toda situação e os outros são apenas peças num tabuleiro que ele pode controlar livremente. Não há espaço para dúvida ou insegurança, o ápice da felicidade de Subaru é ser basicamente onipotente.
Esse desejo por ser o rei do mundo pode ser traduzido como um medo incontrolável em relação a um mundo que existe independentemente dele querer ou não que ele exista da forma que ele existe. E isso não é simplesmente uma questão de insatisfação política, um tipo de revolta social que pretende subverter o status quo. A insatisfação de Subaru não é um desejo de melhoramento de um projeto de sociedade, mas o choque de perceber que o mundo não se alinha e se curva diante de seus interesses egoístas.
O quadro em sua completude e detalhe mostra a visão distorcida de alguém que não compreende que, para que os outros se interessem por você, para que os outros enxerguem seus valores e qualidades, você também precisa se interessar pelos outros e enxergar os valores e qualidades dessas pessoas. Assim, Re:ZERO, numa espécie de “vou repetir o que você diz lentamente até você perceber a besteira que está falando”, coloca no centro do holofote Subaru e todos os seus associados.
Para essa resenha, foi utilizado o primeiro volume de ‘Re:ZERO Capítulo 2’, publicado aqui no Brasil pela Panini em setembro de 2019, com tradução de Fernando Mucioli. O volume foi enviado ao JBox como material de divulgação para a imprensa à época do lançamento. Porém, por problemas de logística aqui do site, agravados mais tarde pela pandemia do COVID-19, só pôde ser resenhado essa semana.
O texto presente é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.
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