Ideologia. Substantivo feminino, extremamente em voga nos dias atuais. Ocupa há alguns anos o centro do debate nos principais países do globo, sobretudo no Brasil, onde há quem acredite que determinado governo possa ter duas faces, uma puramente técnica e outra puramente ideológica. Mais além, há também quem acredite que um governo possa não ter ideologia.
Ora, o que seria, para quem assim pensa, a ideologia? Um conjunto de ideias defendido por um grupo ou pessoa? Seria possível, sendo assim, não ter uma ideologia? Em decorrência de tais formulações, resultantes de noção pouco precisa acerca do assunto, pode se dizer que o termo, no entanto, é mais empregado do que compreendido na complexidade do conceito que engendra.
Mas o que, afinal, isso tudo tem a ver com um dos mais recentes sucessos da gigante japonesa Shueisha, o novo e já tão aclamado Spy x Family? Bem… diria que muita coisa, como espero deixar claro nas próximas linhas.
De início, partamos de algumas definições do conceito. Para nos ajudar, lanço mão de um trabalho exemplar no que diz respeito ao tema: O Que É Ideologia, da professora e filósofa Marilena Chauí. Com pouco mais de 100 páginas, o livrinho – diminuto apenas em relação ao número de laudas – é leitura obrigatória para quem se interessa pelo assunto.
Amparada por um vasto conhecimento bibliográfico, a autora faz um panorama que vai dos postulados dos ideólogos franceses aos pensadores alemães, como Hegel, até desembocar na Teoria Crítica. Muito resumidamente, o livro aborda, grosso modo, algumas das principais definições do que é ideologia e de como elas foram se transformando ao decorrer do tempo.
A noção geral atribuída pela maior parte das pessoas à ideologia, diz Chauí, é aquela que considera Ideologia um “conjunto sistemático e encadeado de ideias”. A autora, no entanto, rebate, afirmando que essa definição na verdade diz respeito a um ideário.
O que seria, segundo ela e todo o estofo histórico-filosófico que sustentam o seu pensamento, a ideologia propriamente dita? A resposta é clara: trata-se de um ocultamento da realidade realizado como forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política — condições materiais da vida humana. Aos que já leram o mangá de Tatsuya Endo, isso parece não dizer muita coisa, mas chegarei lá.
Vejamos o enredo de Spy x Family. A história se passa em num mundo (nem tão) fictício onde as nações de Westalis, a oeste, e Ostania, a leste, são separadas por uma “cortina de ferro”. Os dois países, claramente inspirados na divisão entre Alemanha Ocidental e Oriental do período da Guerra Fria entre EUA e URSS, vivem em profunda tensão política.
Nesse contexto, o protagonista espião Twilight é encarregado de uma missão que poderá definir os rumos da paz mundial: terá de executar a “Operação Strix” e impedir que um partido de extrema-direita do leste promova uma guerra contra a nação vizinha.
A tarefa de Twilight será a de se aproximar de Donovan Desmond, o líder do partido da União Nacional, e ficar a par de qualquer atividade suspeita que possa representar o início da guerra.
Tido como uma figura extremamente reservada, a única ocasião em que se pode acessar Desmond é nas festas do Colégio Eden, nas quais figuram toda sorte de políticos e pessoas influentes.
Para participar de tais confraternizações, o solteiro Twilight terá de formar uma família e matricular um filho na renomada escola destinada apenas aos filhos da elite de Ostania.
É aí que entram Anya, garotinha orfã de (cerca de) 6 anos adotada pelo nosso espião — para a missão —, e Yor, uma moça tímida e adorável escolhida por Twilight para ser a mãe da Família Forger, que então será forjada para dar andamento à missão.
Antes de mais nada vale ressaltar que Spy x Family é um mangá de comédia. E o que propicia o cômico da narrativa é algo que se materializa também como um princípio formal da obra: a contradição entre o ser e o parecer — e aqui começamos a chegar no nosso assunto. Desde o título, está apresentada essa contradição.
É a vida de espião versus a “fictícia” Família Foger, isto é, aquilo que Twiligh realmente é e o que ele faz parecer ser, Twilight x Loid Forger. Mas isso não se limita ao protagonista. Na verdade, os três componentes da família estão inseridos na mesma lógica.
Yor, a introvertida recepcionista da sede da prefeitura de Berlint, em Ostania, é também uma assassina de alugel que atua sob o nome de “Thorn Princess” (“princesa dos espinhos”).
Anya, aparentemente uma criança comum, é uma paranormal capaz de ler a mente de quem quer que esteja próximo a ela. E a farsa é mantida (pelo menos até o segundo volume, o último que li) por todos eles entre si.
A ação se desenvolve a partir dessas bases, que conduzem para uma história linear construída de modo a aprofundar as tensões. Dentre os elementos presentes na narrativa, um dos mais decisivos é o poder de Anya.
A pequena, por conseguir acessar o pensamento de seus interlocutores, sabe de tudo o que gravita em torno da mentira que seus pais querem transparecer, no entanto não abre mão de manter o segredo apenas para si e assim “jogar o jogo” com os Forger.
A “onisciência” de Anya auxilia no desvelamento da farsa, ao mesmo tempo que escolhe mantê-la. Justamente essa operação, que combina recalque e desrecalque, é que atua na construção do humor. E é aqui que entra o conceito de ideologia.
No livro de Chauí, há um percurso para a definição de um sentido mais estrito para o termo. Esse percurso não desconsidera por completo as demais acepções, embora faça uma escolha clara. O ocultamento da realidade para fins de dominação de classe é, em suma, o que se define por ideologia, dentro da concepção materialista de história, da qual a filósofa é partidária.
Em Spy x Family, a trama política é tratada de modo nada despretensioso, embora há quem acredite que tudo não passe de pretexto para dar condição ao cômico. Fosse assim, o conceito de ideologia nada teria a nos dizer sobre a obra, e nem a obra sobre o conceito… mas tem.
Fato é que a ação principal decorre de uma face dupla da realidade. Podemos reduzir o conflito de espião x pai de família, que está expresso desde o título, para um conflito entre vida material, ou seja, aquela que está calcada nas relações materiais com determinada realidade social vigente, e vida ideológica, construída em função das aparências.
Embora não possamos falar, a princípio, na finalidade para a qual opera a ideologia (isto é, a dominação de uma classe sobre as outras), temos aí o seu princípio, o mascarar das relações da realidade material que rege a vida dos homens.
Na verdade, a finalidade não coincide com a do conceito materialista histórico, mas ela existe no mangá: da parte de Twilight, é preciso manter a imagem de psiquiatra e pai de família bem sucedida para alcançar o objetivo pretendido pela Operação Strix.
É de se elogiar a clareza com que trabalha Tatsuya Endo sobre essa lei geral que organiza a narrativa. Desde a primeira página, é a contradição entre vida material e vida ideológica o que se apresenta como a chave para entender Spy x Family.Nesse sentido é exemplar a maneira como se situa Anya naquilo tudo. Ela tem o poder que, na maior parte das vezes em literatura, é destinado apenas ao leitor e a um narrador em terceira pessoa, quase nunca a um personagem.
A expressão assustada quase não sai de seu rosto: qualquer um iria se assustar ao conseguir acessar a distância (muitas vezes um abismo) entre aquilo que as coisas são e o que querem parecer que são.
Enfim, outros elementos também valem a menção, como a construção das demais personagens, a arte e o fio central da história, que já no segundo volume ganha contornos muito bem definidos.
A aparição de Yuri, irmão mais novo de Yor, ao final da segunda edição deixa o leitor ansioso pela continuação. Cabe dizer, sem o prejuízo de spoiler, que mesmo ele está inserido na lógica citada acima, denotando a consciência do autor sobre o seu objeto.
Pelo menos até aqui, não consegui encontrar defeitos em Spy x Family, que aborda assuntos dos mais importantes, como o matiz filosófico que permeia a posição de Anya, com muita profundidade e leveza. Estou particularmente ansioso para ver até quando será possível manutenção das aparências dos Forger. Se o presente texto tiver razoável aceitação, é possível que haja uma continuação para discutir de maneira mais ampla a história, acompanhando a publicação brasileira volume a volume.
Em suma, Spy x Family pode ser lido de diversas maneiras. Aqui está sugerido apenas um modo de enxergá-lo de acordo com um aparato teórico específico. Entretanto, a boa fluidez narrativa aliada a uma ótima execução de ideias, o bom aproveitamento das personagens, o traço limpo de Tatsuya Endo, a composição dos quadros e páginas e a maneira de expressar a comicidade, sem apelar a clichês repisados a exaustão (lê-se: ecchi e derivados), tornam o mangá uma obra primorosa. O melhor lançamento de 2020, na humilde opinião deste leitor.
Sobre a edição brasileira
A edição brasileira de Spy x Family é de responsabilidade da Panini. Com periodicidade bimestral, o mangá tem o seu 3º volume previsto para este mês. No Japão, o título é seriado na revista online Shonen Jump Plus, tendo seus capítulos disponibilizados gratuitamente através do aplicativo MangaPlus, da Shueisha. Por lá, já foram publicados 6 encadernados.
O formato escolhido no Brasil tem base no tankobon japonês, de aproximadamente 200 páginas. As dimensões estão dentro do padrão da Panini: 13,7 x 20 cm.
O papel utilizado é o offwhite 66, com couché nas páginas coloridas. A capa é feita em laminação fosca sem detalhes em verniz e o preço, até agora sem reajuste, é de R$ 22,90.
Dado o atual momento dos valores praticados pelas editoras brasileiras, diria que o preço de Spy x Family é razoavelmente justo. O papel é de boa qualidade, sendo muito agradável para ler e manusear.
A laminação fosca também consiste numa decisão acertada, visto que as cores do padrão de capas do mangá — até agora, todos possui um mesmo fundo num “cinza esverdeado” (?), com personagens específicos em cada edição — ornam bem com esse tipo de textura.
O design clean das capas também é ponto positivo. A breve sinopse na parte de trás de cada volume não atrapalha a arte e ainda pode ser útil para leitores de primeira viagem. A parte interna das capas é impressa em cores, tendo sempre um prefácio do autor e o logo da série.
Dadas essas características e os preços praticados hoje em dia, é difícil que Spy x Family resista à onda de aumentos, visto que possui especificações de mangás que já são vendidos por R$ 29,90 (como Jujutsu Kaisen, cujo primeiro volume tem crítica feita pelo JBox).
Quanto à tradução e à adaptação, quase não tenho ferramentas para analisá-la, visto que não sei japonês. Por isso, limito-me a dizer que o texto é bastante fluido e o tom cômico não se perde em nenhum momento da história. O trabalho da editora Selene Vieira e da tradutora Luciane Yasawa parece bastante acertado, levando em conta esse aspecto.
Quanto a possíveis erros, apenas pude encontrar duas ocorrências. Na página 119 do volume 1, deveria haver um artigo na fala de um dos balões (“Nos últimos anos, têm considerado [a] chamada terapia do murro como um tratamento de ponta no mundo da medicina…); No volume 2, um pequeno deslize na digitação fez Anya virar “Arya”, na página 32. Além disso, não há quaisquer ressalvas sobre o trabalho editorial, que é de boa qualidade até aqui.
O texto presente é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.
Belíssima análise, parabéns pelo trampo! Essa profundidade desconstruindo as obras é minha pira hahahahaha … Peguei o volume 1 recentemente, curti demais essa arquitetura de mundo do autor e como as relações se dão na construção de máscaras que exercemos uns aos outros.
Obrigado! É realmente um mangá muito bem trabalhado.
Marilena Chaui filósofa!!!
Kkkkkkkkkkkkk
LMAO!