Assim como muitas crianças brasileiras entre os anos de 2000 e 2003, eu era absolutamente fissurado pela “quadrilogia original” de Digimon, que se estendia de Digimon Adventure (1999) até Digimon Frontier (2002). Eu adorava os personagens, os monstros, e até me forcei a gostar de alguns dos jogos não tão bons da série (quantas horas eu depositei em Digimon Rumble Arena!).

Claro, eu sempre adquiria produtos de Digimon quando cabiam no orçamento da minha mesada ou na misericórdia dos meus pais, como revistas e pôsteres e tudo mais. Mas era estranho – algumas dessas revistas e pôsteres não usavam os mesmos nomes que eu ouvia na TV.

Uma Digimon chamada “Tailmon” na Fox Kids e na Globo era chamada de “Gatomon” nas revistas, às vezes o Tai era “Tai Yagami” ao invés de “Tai Kamiya”, e eu acho que nunca peguei uma revista que não chamava a personagem Ruki, de Digimon Tamers, de “Rika”. Como aquilo me confundia!


Imagem: O Tai de Digimon e seu brasão.

Tai Kamiya… ou Taichi Yagami. | Divulgação: Toei/Bandai.

Só depois de ficar mais velho foi que eu entendi o que aconteceu. Basicamente, nossa versão das várias séries de Digimon foi uma mistureba terminológica, misturando termos exclusivos da versão japonesa (como Ruki, Tailmon e as fases de evolução dos monstrinhos) com termos exclusivos da versão “internacional”, ou, em outras palavras, americana (como o termo “Digiescolhido” ou a estranha decisão de chamar os “Digimentals” de “Digiovos”, apesar de existirem outros Digiovos na mitologia da série; ser fã de Digimon requeria estudo!).

De alguma forma os termos “errados” (uso muitas aspas porque as próprias dublagens se contradiziam ocasionalmente) acabavam sendo usados por produtos relacionados por falta de conhecimento ou atenção – afinal, nem todos que escreviam as revistas e pôsteres assistiam às séries inteiras assiduamente. Mas… isso é ruim, não?

Sim, é ruim, e é produto de uma falha bem específica de localização. Como eu disse na primeira coluna, localização como conceito engloba muito mais do que só a adaptação e dublagem de uma série – também inclui coisas como o modo como a série é vendida, o tom dos comerciais dela, o horário em que é exibida, e sim, a cobertura em materiais promocionais, como revistas.

Infelizmente o Brasil como um todo é bem ruim em manter essas informações consistentes, e com animês nos anos 90 e 2000, isso era triplicado. As distribuidoras não costumavam… bem, distribuir “bíblias” com terminologia das séries, deixando o meio editorial para se virar do seu próprio modo. E, por isso, era muito fácil esse tipo de “dissonância” acontecer.

Imagem: O Supremo Senhor Kaio do Leste (ou Kaioshin).

Reprodução: Toei Animation.

Vamos conferir outro exemplo: Dragon Ball Z. Eu lembro que entre revistas, sites e até as telas de títulos de episódios do anime em si, ninguém concordava com como se escrevia nomes de personagens: Vegeta ou Vedita? Rikum ou Recoom? Boo ou Buu ou Bu?

A coisa só complicava mais com os nomes mais “estranhamente japoneses” do elenco: Mestre Kame, Muten Roshi ou Kame Sen’nin? Supremo Senhor Kaioh, ou Kaioshin? (Bem, esse a própria dublagem confundia).

Sinceramente, até hoje eu fico na curiosidade de como esses nomes estavam escritos nos materiais de dublagem que a Álamo usou – será que existem 291 scripts (mais filmes!) em que o nome do personagem era escrito como “Vedita”? É o tipo de coisa que me tira o sono, sem brincadeira.

OK, mas vamos para um exemplo que eu não uso quase nunca porque nunca assisti muito: o Fairy Tail original, Rave Master! O animê, adaptando o primeiro mangá longo de Hiro Mashima, foi exibido por aqui pelo Cartoon Network em 2006.

A única coisa que eu realmente lembro dele é que a chamada do animê no Cartoon usava só termos que não eram usados na dublagem: por exemplo, a organização de vilões era chamada de “Demon Card”, seu nome japonês, sendo que ele foi trocado para “Guarda das Sombras” na adaptação americana (que foi usada como base para nossa).

Definitivamente é o tipo de coisa que me deixa curioso: quem escreveu essa chamada, e como essa pessoa sabia do nome japonês dessa organização? Foi fornecido pela distribuidora? A pessoa que escreveu era um enorme fã purista do original? Existem enormes fãs puristas de Rave Master? Tantas respostas perdidas no tempo…

Imagem: Sailor Mercúrio com seu ataque de bolinhas, borbulhas, seja qual for.

Sailor Mercúrio e seu ataque. | Reprodução: Toei Animation.

Tem casos em que a culpa não é realmente do material promocional, mas da adaptação que é uma bagunça mesmo.

Por exemplo: eu até poderia lançar uma revista listando todos os ataques das Sailor Guerreiras de Sailor Moon, mas eu teria que escolher um entre vários que as personagens usavam em suas duas dublagens das séries.

Borbulhas de Mercúrio? Bolhas de Mercúrio? E nossa, qual das 20 adaptações do “Moon Princess Halation” é a certa? Nomes de personagens também sofriam: algumas revistas usavam certos nomes japoneses que a dublagem jamais usa, como, “Chibi-Usa” ao invés de “Rini”, nome emprestado da adaptação americana.

Publicações dos anos 90 definitivamente eram as que sofriam mais, já que era uma época sem internet (ou pelo menos com uma internet insuportável de usar); ou seja, em adição aos problemas já listados, os envolvidos muitas vezes tinham que depender da fonética para guiar a escrita.

Nem todo mundo que assistia Cavaleiros do Zodíaco na Manchete graças à uma antena com Bombril na ponta entendia exatamente como se escrevia “Hyoga” ou “Shiryu”, para não falar de nomes mais complexos de mitologias específicas. Freya? Freyja? Siegfried? Zigfried? A saudosa revista Herói em particular era forte vítima de “erros de ouvido”.

Imagem: O Rei Caveira, de Yu-Gi-Oh Duel Monsters.

Divulgação: Estúdio Gallop.

Também há casos de completo descaso. Claramente o pessoal da Devir responsável por adaptar o card game de Yu-Gi-Oh! para o português não se deu ao trabalho de consultar como os nomes das cartas tinham sido traduzidos para o animê (e vice-versa).

Logo, você ouve na TV “Rei Caveira”, mas lê “Caveira Invocada” no TCG; “Herói Elementar” no animê, mas “Herói do Elemento” na vida real; “Guerreiro da Espada de Chama Dourada” na telinha, mas “Espadachim das Chamas” no papel… OK, esse terceiro realmente foi a escolha certa mudar.

O caso de Yu-Gi-Oh! merece esse destaque especial porque… bem, convenhamos: os animês só existem para vender esses cards, então você imaginaria que os distribuidores tomariam mais cuidado para manter tudo consistente entre as mídias. Você imaginaria.

Bom, eu passei esse tempo todo dando exemplos de fracassos, mas existem triunfos? Bom, muito poucos. De cabeça eu realmente só consigo pensar na injustiçada passagem de Yo-Kai Watch aqui pelo Brasil.

Imagem: Whisper, de Yokai Watch.

Divulgação: OLM.

Os produtos oficiais lançados por aqui – que eu cheguei a ver, digo, estou algumas décadas à frente do público alvo! – tomavam cuidado para respeitar as (geniais) adaptações dos nomes dos monstrinhos que se ouvia no animê.

Na verdade, até existia um aplicativo para smartphones e tablets listando todos os Yo-Kais com seus nomes adaptados, incluindo alguns que não apareceriam no animê por anos (ou jamais)!

Claramente foi um esforço coordenado de muitas pessoas para manter o universo da série consistente por todas as mídias. Pena que não fez mais sucesso…

Mas Yo-Kai Watch é mais ou menos o único exemplo moderno interessante para nós, porque em um mundo em que tanta informação está nas palmas das nossas mãos 24 horas por dia.

Só se erra a escrita de “Bakugou” se você realmente nem estiver tentando. Mas não deixa de ser um pedaço divertido da história da cultura pop japonesa no Brasil, e não consigo deixar de pensar nele com um quentinho no coração.

E vocês, lembram de alguma gafe editorial divertida em termos de cobertura de animês da TV? Divergências de tradução mangá versus dublagem? Chamadas da TV que pronunciavam o nome do Ash como “Ache”? Mande aí nos comentários, e nos vemos na próxima coluna!


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