Com o número de cópias em circulação do mangá de Jujutsu Kaisen aumentando exponencialmente no Japão, muitos já apontam a série como um candidato a ser o “novo Kimetsu“, ou seja, uma nova febre para aquecer (ainda mais) o mercado e os bolsos da editora Shueisha.
Mas seria talvez um pouco cedo para dar esse rótulo à série? O quão parecidos esses fenômenos são? Com muitas ressalvas, vamos tentar entender melhor os números de vendas das duas franquias nesta edição da coluna Café & Matchá!
A primeira coisa importante de ser pontuada neste texto é a dificuldade em compreender os fenômenos dentro do Japão quando estamos fora dessa realidade. Por experiência própria, é muito fácil cair em erro e análises rasas, mesmo quando se tem um bom conhecimento do país.
Não faltam textos, nos mais variados idiomas, que cometem “erros” claramente induzidos por falta de material teórico e prático que possibilite um entendimento mais profundo do que se passa no Japão. Isso, infelizmente, por vezes traz um custo muito caro a longo prazo, que é o orientalismo com o qual seguimos vendo esse e muitos outros países da Ásia.
Digo isso para deixar claro que este texto deve ser analisado também com essa cautela e, por isso, em hipótese alguma, se propõe a dar um veredito final sobre a questão – talvez nem os japoneses possam, já que é extremamente difícil analisar fenômenos ainda em andamento (aliás, não faltam análises contraditórias sobre a série em sites japoneses). Mas a intenção é tentar evitar cair em uma comparação leviana.
Só porque dois fenômenos ocorrem juntos ou em sequência, não quer dizer per se que eles fazem parte de uma mesma cadeia de eventos ou possuem a mesma origem. Em resumo: se duas coisas vendem bem, não necessariamente é pelo mesmo motivo.
Bem, para tentar responder a essa pergunta, é necessário entender o sucesso de Kimetsu. Talvez a primeira coisa importante do fenômeno Demon Slayer é que… não era tão óbvio. Não vou entrar nas razões disso, porque elas não parecem nada fáceis de entender. Mas podemos olhar alguns processos com base em números.
Poucos meses antes do animê sair no ano passado, a série tinha 14 volumes e 3,5 milhões de cópias em circulação, uma média de 250 mil cópias vendidas por volume. Não é nenhum número impressionante e a série já era relativamente grande.
Claro, animês servem justamente para alavancar as vendas, mas Kimetsu certamente não era a maior aposta da Shueisha para o sucesso na hora de fechar uma adaptação animada. Felizmente, o ufotable sabe como investir o dinheiro que sonega.
Em comparação, Jujutsu já vinha numa movimentação talvez um pouco mais promissora.
Em fevereiro de 2019, com 4 volumes (considerando o “protótipo”), a série tinha 1,1 milhão de cópias em circulação, em novembro do mesmo ano tinha alcançado 2,5 milhões de cópias, com 8 volumes.
Colocando o volume Zero na conta geral, a série subiu de uma média de 275 mil cópias por volume para 312 mil – em ambos casos, já vendia mais do que Demon Slayer conseguia antes do animê, na média.
O anúncio da animação veio justamente em novembro de 2019 e, ao longo de 2020, o crescimento foi evidente.
Em setembro do ano passado, pouco antes do animê estrear, já eram 6,8 milhões de cópias em circulação, com 13 volumes – 523 mil cópias por volumes, na média. Mas é evidente que após a estreia da animação, a série ganhou um fôlego incrível.
Crescendo exponencialmente, de lá para cá a série teve um aumento de mais de 300%: atualmente, com 15 volumes totais, são 25 milhões de cópias em circulação. A média fica em 1,6 milhão por volume e os números da Oricon indicam uma tendência a aumentar ainda mais.
É bem pouco, claro, comparado à atual média de 5,2 milhões de cópias por volumes de Kimetsu no Yaiba, cujos 23 encadernados já ultrapassaram 120 milhões de cópias circulando. Mas isso é só para pontuar que o sucesso de Kimetsu veio num outro ritmo: foi ao final e após da transmissão da série na TV.
Algumas semanas antes do término da exibição, a série já tinha 10 milhões de volumes em circulação, uma média de 625 mil volumes para cada um dos 16 publicados. Já é um crescimento mais que expressivo.
Mas a “mágica” começaria a ficar mais clara em dezembro de 2019: com o lançamento do 18º volumes, a série passaria dos 25 milhões de cópias em circulação.
Poucos meses depois, em fevereiro de 2020, o número já tinha subido para 40 milhões. Parece um discurso de Levy Fidelix em debates presidenciais.
O resumo da ópera é simples: o estouro mesmo nas vendas do mangá veio principalmente depois que a série saiu da TV, mas ainda estava em streamings.
Essa disponibilidade é apontada como fator muito relevante nesse sucesso todo, segundo uma entrevista de bastidores que não fui capaz de encontrar novamente (faz sentido pois o streaming não deixa o animê esfriar totalmente e é mais cômodo que home-vídeo).
Mas a TV ainda tem seu lugar, uma outra informação de bastidor defende um papel bastante central da televisão na criação de um hit.
Parece – e digo “parece” justamente pois não tenho como provar – que Kimetsu foi a união do útil a uma boa estratégia de marketing. Uma vez nos holofotes, a produção soube aproveitar o momento. Algumas pesquisas acadêmicas apontam que quanto mais sucesso uma coisa faz, mais sucesso ainda ela tende a fazer.
Uma vez que todas as lojas aparentemente estão tocando a mesma música, “Gurenge”, da LiSA, talvez você se interesse eventualmente pelo animê que utiliza a canção como abertura. É de se ponderar também o quanto a pandemia alimentou ainda mais esse sucesso.
Veja bem, com a movimentação de #StayHome, crianças ficam em casa, provavelmente consumindo entretenimento. E o entretenimento do momento é Kimetsu, para o desespero dos pais dedicados. Não só isso, mas o comércio também tende a diminuir durante a pandemia.
Nessa situação, talvez apostar em produtos de Kimetsu seja uma boa ideia, já que uma febre tem maior possibilidade de saída. É um recorte ruim, mas eu cansei de ver anúncio de literalmente qualquer bugiganga da série em tweets de sites japoneses… e eu nem moro no Japão.
Frequentar os cinemas fica difícil nesse contexto, mas não quando o governo faz algumas irresponsabilidades que permitem Mugen Train estrear e colaborar com a disseminação da doença.
Imagine se, por causa de um vírus, todo o mercado se voltasse para a mesma marca de uma forma muito mais intensa que ocorreria fora de uma pandemia, porque ela é a coisa com a maior probabilidade de vender.
E se conseguir uma licença pra esses produtos fosse relativamente fácil? Algo como a Luccas-Netificação de expansão de marca: faça licenças a preços convidados para que todo mundo possa “te vender” e seu nome alcance lugares antes inalcançáveis.
Num suposto bombardeio de marketing – e, lembrando, eu não tenho como provar pois não sou um comerciante do Japão, mas a impressão é que não é tão difícil vender produtos dessa série – não sobraria muita possibilidade para Kimetsu não seguir fazendo sucesso, mesmo com animê fora do ar.
Ah, sim, vocês podem dizer: mas o mangá estava vendendo. É verdade. Mas algumas pesquisas de público japonesas, como esta da Animatetimes, indicam que a maioria das pessoas conheceu a obra pelo animê (a segunda opção mais escolhida é “um amigo me contou”).
É claro, no meio dessa seara, o mangá deve ter sido o pontapé inicial de muita gente, mas, ao que parece, quem realmente atraiu as pessoas à franquia foi o animê. Convenhamos, é exatamente para isso que fazem animês, né?
Bem, eu não tenho como provar nada sobre o marketing de Kimetsu, apenas posso dizer que foi minha impressão ao longo do ano observando o fenômeno – e como toda impressão de alguém fora do Japão, ela é enviesada. O importante mesmo é: por algum motivo, o mangá estourou para valer mesmo depois de sair da TV.
É um trajeto bem diferente do que Jujutsu, uma série que já vendia melhor, parece percorrer. Segundo lojistas, a série atrai público desde seu começo, assim como o outro fenômeno SPY X FAMILY, que deve bombar incrivelmente depois de anunciarem um animê. Kimetsu, inclusive, foi uma febre inesperada até para eles.
Mas, provavelmente, uma mão lava a outra. Demon Slayer atingiu um público que não costumava ler mangá.
Embora pareçam fenômenos correlacionados, não tenho dados estatísticos para mostrar para ninguém o quanto a obra impactou na indústria de quadrinhos.
Mas posso imaginar que, com o fim da história, alguns fãs talvez estejam procurando novos títulos para ler. Vendendo bem já antes, Jujutsu ganha ainda mais espaço para crescer.
Ou seja, a série pode estar sim, em parte, “nadando na onda” de Kimetsu. Segundo os mesmos lojistas, o “novo queridinho” tem crescido muito entre o público mais jovem. Não dá para prever – porque nunca dá para prever – qual vai ser o resultado disso.
Respondendo à pergunta do título: em questão de números, talvez seja realmente possível que Jujutsu Kaisen se torne um grande fenômeno (então sim, mas é difícil).
Mesmo se conseguir, me parece um pouco inapropriado chamá-lo de “novo Kimetsu”, pois são trajetos muito distintos (então não).
Apesar de vocês não gostarem muito da comparação do colega Fábio, lá do Omelete, eu acho que até prefiro chamá-lo de “novo Naruto” – mas aqui a comparação é por um outro recorte.
O texto presente nesta coluna é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.
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