A editora NewPOP dedicou a última semana de janeiro para divulgar seus lançamentos para os próximos meses. Uma novidade que chamou atenção dos amantes de clássicos, principalmente de tokusatsu, foi o anúncio do selo Xogum, onde serão lançados dois mangás do saudoso Shotaro Ishinomori: Kamen Rider e Kamen Rider Black.

Aliás, um parêntese sobre isso: o selo Shogun também será marcado pelo lançamento de dois mangás de Go Nagai: A Divina Comédia e Mazinger Z. Esse último, em especial, é altamente recomendável para os fãs de tokusatsu, uma vez que o robô gigante foi o primeiro a ser pilotado por um humano num cockpit. De certa forma, a série foi a precursora de Spiderman (1978~79) e Battle Fever J (1979~80), as primeiras do tokusatsu a apresentarem heróis que pilotam um mecha como um veículo. Fora que Nagai era aluno de Ishinomori.

Imagem: Shotaro Ishinomori.

O Rei do Mangá, Shotaro Ishinomori | Divulgação

Voltando a falar sobre o assunto principal dessa coluna: Teremos ainda neste semestre o lançamento de Hokusai, pela editora Pipoca & Nanquim, também de Ishinomori. E será muito bem-vindo, com certeza.

Para nós, fãs de tokusatsu, ter as publicações do Rei do Mangá, principalmente quando se trata de Kamen Rider, é um marco importante.

A mesma NewPOP publicou vários títulos do “Pai do Mangá Morderno”, Osamu Tezuka (tenho todos eles na minha coleção, inclusive).

Sem dúvida, a editora se tornou uma referência para possíveis lançamentos de mangás de Ishinomori. É importante esse reconhecimento, pois ele ainda é um mangaká que se destaca na cultura pop japonesa. E não é exagero dizer que Ishinomori tem potencial para rivalizar com Tezuka.

Falando em Tezuka, poucas pessoas devem saber que Ishinomori, com apenas 16 anos, foi convidado pelo veterano para ser seu assistente. Isso graças à sua vitória num concurso de talentos. Ser aluno de Tezuka era um privilégio, mas ele teve que se mudar para Tóquio, largar os estudos e enfrentar divergências com seu pai, que era contra e só concordou quando Yoshie, a irmã mais velha do jovem talento Shotaro Onodera (o nome verdadeiro de Ishinomori), se ofereceu para acompanhá-lo e ajudá-lo. Tezuka ainda indicou a pensão Tokiwa para os irmãos Onodera.

O local se tornou um patrimônio histórico para os japoneses, pois foi lá que Ishinomori conviveu com outros jovens que viriam a se tornar mangakás renomados. Por lá estiveram Fujio Akatsuka (Osomatsu-kun), Hideko Mizuno (Honey Honey) e a dupla Fujiko Fujio (Hiroshi Fujimoto e Motoo Abiko, de Doraemon e Super Dínamo). Tezuka passou pouco tempo na pensão.

Diante de uma rotina intensa de criações, Ishinomori sofreu com a morte de sua irmã, que tinha asma. Certamente o amontoado de papel e poeira contribuiu para o problema respiratório da jovem de apenas 23 anos. Yoshie foi a pessoa que mais incentivou Shotaro a jamais desistir de seus sonhos. Segundo registros, ela era muito bonita, simpática e era também o amor platônico de vários moradores de Tokiwa.

Sem a presença de Yoshie, Shotaro Ishinomori criou clássicos como Cyborg 009, um dos seus trabalhos mais notáveis que teve várias versões em animê exibidas no Brasil (atualmente estão disponíveis as séries Cyborg 009 vs. Devilman e Cyborg 009: Call of Justice na Netflix).

Imagem: Rabiscos do Skull Man.

Skull Man, o projeto descartado pela Toei | Divulgação

Em parceria com o produtor Tohru Hirayama (1929~2013), da Toei Company, o mangaká seguiu o caminho contrário da receita feita pela Tsuburaya com Ultraman e definiu outro padrão para as séries tokusatsu.

Skull Man, herói-título do mangá de 1970, quase teve sua versão em live action e seu visual foi rejeitado pelos executivos da Toei. O conceito foi remodelado para Kamen Rider Hopperking e depois simplesmente para Kamen Rider.

Apesar de Hirayama ver aquela máscara de gafanhoto com desdém, e achar que a série de TV seria um fiasco, o resultado foi um sucesso.

Na realidade, Ishinomori se dedicou ao mangá de Kamen Rider, enquanto o enredo básico foi adaptado para a TV, onde Hirayama adaptou a trama para o formato de uma série com episódios semanais no horário nobre de sábado, pela NET (atual TV Asahi). Um digno rival de Spectreman e O Regresso de Ultraman.

Kamen Rider tinha uma pegada mais dramática, onde o herói foi transformado num ciborgue pela organização maligna Shocker, mas que renegou seu destino para lutar pela humanidade. Com baixo orçamento (que é o padrão desse tipo de produção), Kamen Rider rendeu 98 episódios com ação, drama e até mesmo terror.

O mangá original de Ishinomori teve quatro volumes (serão 3 pela NewPOP). Ele teve pouca participação na produção da série de TV. Aliás, seus editores não deixavam que ele ficasse muito tempo nos bastidores. Porém, chegou a co-roteirizar o episódio 84 de Kamen Rider. Nas demais séries da franquia, ele teve pouco envolvimento e estava presente em algumas reuniões e fazia esboços das histórias.

A parceria com a Toei fez com que o mangaká criasse o estúdio Ishimori Productions. Já Kamen Rider acabou se tornando uma franquia que está na ativa até hoje e prestes a completar 50 anos em abril deste ano. O sucesso do primeiro motoqueiro mascarado gerou o Henshin Boom, com um filão de heróis de tamanho humano que se transformavam com poses e coreografias.

Imagem: Kamen Rider na motoca.

O primeiro Kamen Rider por Ishinomori | Divulgação

Das mãos de Ishinomori surgiram Henshin Ninja Arashi, Kikaider, Kikaider 01, Robot Keiji, Inazuman e tantos outros heróis.

Criou Gorenger e JAKQ, que anos mais tarde foram canonizados como os pioneiros das séries Super Sentai, que deram origem aos Power Rangers.

Hirayama sempre discutia com Ishinomori sobre conceitos gerais destas séries – enredo e design de personagens. Basicamente, Ishinomori trabalhava nos mangás desses títulos, enquanto Hirayama produzia as versões para TV.

Ishinomori era tão importante para a Toei que ele conceitos de algumas séries tokusatsu. De 1981 a 1993, eassinava as séries da franquia Toei Fushigi Comedy Series, de onde surgiram títulos como Robot 8-chan, Batten Robomaru, Hard Gumi, Marin Gumi, Paipai!, Ipanema! e até a nossa famigerada Patrine.

Foi dele também a criação de Machineman (1984) e Bicrossers (1985), que foram tentativas de firmar uma linha de séries tokusatsu para a Nippon TV.

No começo dos anos 80, a Toei foi surpreendida quando Ishinomori anunciou que estava planejando a criação de Kamen Rider ZX (leia: Zê Cross). O herói foi o protagonista do telefilme Birth of the 10th! Kamen Riders All Together!!, que foi ao ar na manhã de 3 de janeiro de 1984, pela TBS.

Mas aquela distante década seria marcada pelo mangá Kamen Rider Black. Publicado pela revista Shonen Sunday, o mangá teve uma atmosfera muito mais sombria e carregada do que a série de TV que conhecemos na década de 90, pela saudosa Manchete. O primeiro episódio (que já descrevi aqui como a melhor estreia de uma série tokusatsu) tentou se aproximar da ideia de Ishinomori.

Na ocasião, Tohru Hirayama já não era mais produtor das séries Kamen Rider. Em seu lugar estava Susumu Yoshikawa (1935~2020), que foi responsável pelas séries Metal Hero, como JaspionJiraiya e Jiban.

Yoshikawa adotou uma linha bem diferente do mangá, algo que gerou dissidências nos bastidores e principalmente a saída de Shozo Uehara (1937~2020), roteirista principal de séries como O Regresso de Ultraman, Spideman, Gavan e Jaspion.

Imagem: O Kamen Rider Black.

Imagem promocional do mangá de Kamen Rider Black | Divulgação

Ishinomori não acreditava que o homem chegaria ao ano 2000, pois era adepto da profecia de Nostradamus que pregava a destruição do mundo nas vésperas do terceiro milênio – alguém aí  se lembra do eclipse solar de 11 de agosto de 1999, o dia do “fim do mundo” onde planetas do nosso sistema solar formaram uma cruz? Pois é.

Isso acabou influenciando em suas obras. O final do mangá de Black é um bom exemplo dessa tese niilista da qual era convicto, onde mostrava uma batalha mortal entre o Rider e seu irmão Shadow Moon, situada na virada do século.

Ironicamente, Ishinomori morreu antes do ano 2000, por problemas cardíacos. Mais precisamente em 28 de janeiro de 1998, três dias depois de completar 60 anos. A idade era a mesma de quando Osamu Tezuka faleceu em 1989. Aliás, se Tezuka é beatificado por muitos como o “Deus do Mangá”, Ishinomori foi coroado como o “Rei do Mangá”. Tezuka teve um recorde de 300 páginas em apenas um mês, enquanto Ishinomori produziu 500 páginas nesse mesmo período e atuando simultaneamente para várias revistas.

Tem mais: 770 títulos distribuídos em 500 volumes. Aproximadamente 128 mil páginas, segundo uma contagem oficial do Guiness Book. Ishinomori é recordista por ter o maior número de mangás produzidos em toda a carreira.

Imagem: Foto de Ishinomori com o Kamen Rider Black.

Criador e criatura! Ishinomori ao lado do Kamen Rider Black da TV japonesa | Divulgação

A polivalência do cabeludo (carinhosamente associado pelos fãs brasileiros à aparência do saudoso cantor Reginaldo Rossi) era a principal marca. Chegou a produzir uma versão em mangá de um dos primeiros super-heróis da TV japonesa, Kaiketsu Harimao. Fez sua própria versão do mascote italiano Toppo Gigio.

Fazia pontas em algumas produções (muito antes de Stan Lee nos filmes da Marvel). Assinava letras de temas de heróis, como “Le´s Go! Rider Kick” para a abertura do primeiro Kamen Rider e por aí vai. Isso sem contar que um de seus mangás, HOTEL, tinha os adultos como público-alvo e rendeu uma versão drama para a TV. Ainda está pra nascer alguém com uma versatilidade maior do que o Rei do Mangá.

Por tudo isso e tantas outras coisas que nem foram mencionadas nesse texto é que eu digo que está mais do que na hora de termos mais e mais obras de Ishinomori no Brasil. É claro que o que já foi anunciado ainda é pouco, mas pode ser uma ponta do iceberg. Sem dúvida, ele revolucionou o entretenimento japonês e merece o renome no fandom brasileiro.

Ishinomori é gênio! Por mais obras do Rei do Mangá no Brasil!!!

Assista o vídeo A História do Herói que criou Heróis, uma homenagem realizada pela Ishimori Pro em janeiro de 2018, época das comemorações dos 80 anos do mangaká:


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