Com a notícia de que a análise da compra da Crunchyroll pela Funimation lá nos EUA pode levar uns bons meses e basicamente empacar o processo, eu me peguei pensando em qual seria o nosso espaço dentro do mercado de animês e mangás.

Uma coisa me chamou bastante a atenção no texto: os advogados das duas empresas interessadas no negócio (Sony e AT&T) argumentam ser este um serviço dentre diversos outros por meio dos quais os estúdios japoneses podem distribuir suas séries nos EUA, citando streamings como Hulu e Hidive, além dos conhecidos Amazon Prime Video e Netflix.

Bem, o Prime Video aqui no Brasil está quase morto em questão de oferta de animações japonesas novas. A Netflix tem feito um movimento de mercado. O Hidive é um concorrente direto das duas empresas de simulcast de animês, mas ele é quase inexistente para o nosso mercado – até dá para acessar, mas está tudo em inglês.

Em resumo, essa operação, aqui, causaria um monopólio dos streamings de animês. Há quem se questione se isso não seria assunto para cair no CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Eu confesso que não faço a menor ideia, uma vez que a forma como essas duas empresas estão presentes aqui, em questão jurídica, é meio nebulosa para mim – eu não sei como funcionam esses trâmites legais.

Mas, o curioso realmente é que uma operação que terá um impacto gigantesco no nosso mercado talvez nem ao menos passe por nós. É quase como o Brasil não importasse nesse cenário. Bem, na sinceridade, o único cenário no qual o Brasil importa atualmente para o mundo parece ser o potencial em disseminar a pior variante possível de COVID-19.

De qualquer modo, o público do nicho aqui sempre soube que pedir não adiantava muito, sempre tivemos mais dificuldades para ter os mangás e animês que gostaríamos de assistir (e eu ainda estou feliz por anunciarem Shadows House), por isso, a coluna Café & Matchá desta quinzena traz a pergunta: Quem somos nós nesse mercado?


A primeira coisa importante de deixar claro é que o “descaso” com o Brasil no cenário global não é um acidente e tem base em algo simples: nós somos pobres. Assim, talvez você especificamente não seja pobre, mas como nação nós somos pobres.

Vou dar um exemplo bem simples. Em um podcast do JBox, o editor Cassius Medauar disse que hoje um mangá vender umas 8 mil cópias é grande um sucesso por aqui. Vamos pensar então em um mangá hipotético de preço padrão da Panini (R$29,90), a editora que provavelmente mais anuncia e lança coisas no momento.

Imagem: Diversas capas de mangá de diversas editoras: 'Devilman' (NewPOP), Hunter x Hunter (JBC) e Naruto (Panini).

Vamos dizer que esse mangá teve vendas estratosféricas, pensando nesse número informado pelo Cassius: 20 mil exemplares. O faturamento bruto é de 598 mil reais, certo? Mas, em perspectiva global, quanto fica? Em torno de 100 mil dólares.

Em comparação, se o mesmo mangá vendeu 20 mil exemplares no Japão a 520 ienes, ele faz mais ou menos esse mesmo valor. Só que para revistas grandes, das quais licenciamos muita coisa, esse é um número de vendas extremamente baixo.

Ou seja, um pico que o nosso mercado leitor poderia chegar seria um fracasso para qualquer série famosa dentro do mercado japonês – e isso que 30 reais é um preço salgado para muitos de nós, forçando a escolha entre “comprar X ou Y”, já 520 ienes não fica tão custoso assim para um assalariado no Japão, que poderia comprar vários outros mangás ao mês.

Isso, claro, contando apenas o ganho bruto com essas vendas, sem tentar calcular, pelos custos, qual é a parcela líquida ganha e quanto disso vai para as mãos das editoras e autores. Falando em licenciamento de produto, o Angelotti disse uma vez em live que o autor fica com 10% do valor da venda ao varejo (e não ao consumidor), mas não sei se essa porcentagem também vale para o mercado de mangás.

Imagem: Página da MANGAPlus.

Reprodução: Shueisha.

Contudo, se você disser que somos expressivos numericamente e muitas pessoas não compram mangás por serem caros, está certo. Justamente por isso, se o boato do serviço MANGAPlus ganhar uma versão em português for verdade, significa que provavelmente somos mais interessantes como números para adsense do que como compradores de quadrinhos – é um tanto desesperador.

O mercado de animês talvez seja um pouco mais animado, afinal, nosso mercado geral leitor não é lá muito grande. Números de Netflix, Globoplay e de acesso a TV no país indicam que o público de entretenimento audiovisual, seja via streaming ou televisão, é bastante expressivo (97,8% das casas possuem ao menos uma TV e 20 milhões de pessoas assinam o Globoplay).

O mercado de animês é só um nicho desse público, certamente não é por causa do público brasileiro que a Netflix está investindo mais na área, mas também somos parte desse processo, mesmo sem saber qual o tamanho da nossa participação. Também somos uma parcela, desconhecida, dos 4 milhões de assinantes pagos da Crunchyroll – se for observar movimentação no site, o Brasil parece ser o segundo maior país/região, atrás dos EUA.

Alguma expressividade devemos ter para atrair a Funimation e agora, ao que tudo indica, a Aniplex, com mais investimentos neste mercado – talvez facilitados pelo dólar alto, uma vez que nos tornamos cada vez mais baratos para o mercado externo com os constantes aumentos do câmbio.

Mas, perceba, essas empresas são todas estrangeiras. Nossos players nacionais no momento, quem são? Sato Company, cujos lançamentos mais recentes eram todos animês licenciadas pela Funimation, e dois outros relativamente novos: Artworks Brasil, com Cardcaptor Sakura e uma versão dublada de Fairy Tail, e a Loading, que anunciou investimento em Gundam 00, séries de Ultraman (não é animê mas enfim) e em algumas dublagens em parceria com a Crunchyroll, indicando que mais coisa pode vir por aí.

Imagem: Os três pontos (literalmente "...") que compõe a identidade visual da marca Loading.

Divulgação: Loading.

São empresas, por enquanto, pequenas, que talvez possam ter algum crescimento, dependendo, claro, dos interesses dos japoneses também. Com a internacionalização dos streamings, fica parecendo que o licenciamento para o Brasil vai continuar na mão de empresas, num geral, norte-americanas.

Ou seja, assim como dependemos do mercado estrangeiro para comprar papel em dólar para os nossos mangás (porque nem papel jornal vai ser mais produzido aqui), mesmo sendo dos maiores exportadores e produtores de celulose do mundo, matéria-prima para a produção de papel, também dependemos do mercado estrangeiro não-japonês para animês (porque, claro, esse mercado vai ser sempre dependente do Japão).

Bem, essa dependência existe há anos, na verdade, nos anos 1990 e 2000, os animês vinham para cá por meio de sub-licenças de outros países. Hoje, esses donos das licenças, principalmente os dos EUA, já não precisam tanto de um agente nacional para “escoar” essas séries, podendo colocá-las direto aqui por meio de serviços de streaming.

Não é só no licenciamento de séries japonesas que o Brasil vai mal, nós sempre suamos muito para consolidar indústrias nacionais num geral e, para piorar, já vivemos há um tempo um processo de desindustrialização. Em um nicho tão específico, e tão pequeno, parece muito mais difícil estabelecer algum tipo de indústria “genuinamente” brasileira, seja trazendo entretenimento de fora ou criando entretenimento (e, sim, eu sei que existem quadrinhos e animações nacionais!).

Enfim, quem é o Brasil nesse mercado todo? Um país extremamente dependente de fluxos externos, parte da chamada “periferia do capital” (“países pobres”, de forma mais clara), com uma população que, apesar numerosa, não tem, na média, tantos recursos para participar de consumo em massa.

Para piorar, vivemos uma crise econômica, com desemprego alto, que apenas se agravou com a crise sanitária atual. Em resumo, somos um mercado que, potencialmente, é interessante. Apesar de não sermos a primeira prioridade de agentes externos, até poderíamos eventualmente ter mais presença, mas isso dependeria também de mudanças macroeconômicas no país… E, nesse ponto, também não estamos caminhando como quem quer ser.


O texto presente nesta coluna é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.