Eu vou ser sincero com vocês:  estava sem ideias para a coluna deste mês, e quando não tenho ideias, eu recorro à tática celebrada, recomendada, admirável da reciclagem. E bem, no meu canal de YouTube eu atualmente estou fazendo uma série listando todas as diferenças de adaptação do anime de Shaman King de 2001, exibido por aqui pela Fox Kids e pelo Jetix (e, por um milésimo de segundo, pela Globo). Essa série está me fazendo revisitar a dublagem da série e… uau. Uau, dublagem de Shaman King, uau. OK, hora de reciclar!

Shaman King, para quem talvez não saiba, é um mangá de 1998 de Hiroyuki Takei originalmente publicado na Shonen Jump semanal – a mesma revista que circula/circulou Dragon Ball, Yu-Gi-Oh! e My Hero Academia – narrando as várias batalhas de jovens guerreiros capazes de usar fantasmas para lutarem uns contra os outros: os xamãs.

Uma adaptação moderna dele está estreando no Japão agora, uma que a Netflix talvez tenha licenciado para exibição internacional, e que pode ter influenciado na escolha de tema para esta matéria, cof cof; mas antes dele, em 2001, houve uma outra adaptação incompleta que foi exibida à exaustão na nossa TV paga, que está atualmente disponível em plataformas de streaming como Vix e Amazon Prime Video, e que, sim, foi dublada, naturalmente.


A dublagem desse animê ficou a cargo da finada Parisi Vídeo, de São Paulo, e contou com um elenco muito legal e músicas traduzidas e tudo mais, mas a tradução… foi especial. Diferente de praticamente todos os animes da época, Shaman King foi traduzido direto do japonês, e isso trouxe seus próprios desafios.

Imagem: Pôster de 'Shaman King'.

Divulgação: Xebec.

A adaptação eu só consigo descrever como uma enorme bagunça. Imagino que a produtora japonesa não tenha fornecido scripts ou uma “bíblia” com a terminologia da série, porque muitos erros claramente “de ouvido” acontecem em praticamente todos os episódios. E também imagino que o prazo tenha sido apertado porque, bem, sempre é.

Em certos episódios, especialmente no começo, qualquer frase complexa era simplificada ao extremo, “enxugada” para sua mensagem básica e sem nenhuma de suas nuances, e conversas muitas vezes pareciam desconexas, com um personagem falando de maçãs, o outro, de bananas.

Mas estou me adiantando: vamos começar com exemplos simples. Alguns erros da tradução são perfeitamente compreensíveis, como o modo como nos primeiros dois, três episódios da série, a dublagem parece tratar “xamã” não como um cargo ou uma classificação, mas sim como um título específico para o protagonista Yoh Asakura: ele não é “um” xamã, ele é “o” xamã.

Imagem: Yoh Asakura em 'Shaman King'.

Divulgação: Xebec.

Admitidamente, a própria obra também não ajuda, já que uma das primeiras coisas que o rival de Yoh (e segundo xamã a aparecer na série), Tao Ren, fala durante o embate dos dois é que “essa cidade não precisa de dois xamãs”, fazendo o escopo da série parecer bem menor do que é. É um aspecto de traduções como um todo: às vezes, a culpa é do cliente. Muitas vezes, na verdade.

Já outros erros são um pouco mais difíceis de explicar, como, por exemplo, as várias técnicas especiais dos personagens. Digo, que fique claro: eu não acho que todas as técnicas de luta em um animê shounen precisem ser traduções diretas do original, ainda mais quando elas incluem, digamos, cinco descritivos diferentes.

Uma boa técnica tem somente dois, como “Meteoro de Pégaso” ou “Ferida do Vento”, mas as de Shaman King são especiais, com níveis de inconsistência que dariam inveja a Sailor Moon. Praticamente nenhum ataque do Yoh tem uma tradução consistente: o Shinkuu Budda Giri (“Corte de Buda do Vácuo”, em tradução livre), por exemplo, alterna entre “corte buda”, “ataque buda”, “espada em ação” e, em uma vez bem específica… “Shinkuu Budda Giri”. O dublador do Yoh, Rodrigo Andreatto, até pronuncia “giri” direito!

Técnicas de outros personagens até conseguem ser consistentes, mas o “termo consistente” adotado é estranho. Por exemplo, a técnica principal do Ren se chama Chuuka Zanmai, ou “grande corte chinês” em tradução livre (admiro o patriotismo do garoto). Na dublagem… “torre dourada em ação”. Digo, o “dourada” eu entendo de onde saiu: de fato, uma variante da técnica é precedida por “Golden”. Mas por que “torre”?

O ataque é uma bateria de furos de lança – que parte disso remete a uma “torre”? Eu não sei exatamente de onde a dublagem tirou o “em ação” também, mas no decorrer da série ele acaba virando um termo oficial para todas as técnicas: “bloco de gelo em ação”, “pêndulo em ação”, “Amidamaru em ação”… uma listagem levaria o dia inteiro!

A confusão de nomes não é só nas técnicas, se estendendo aos personagens também. Eles me fazem ter certeza de que a tradução foi toda feita de ouvido, pois vários personagens têm nomes que são simples distorções da leitura japonesa deles.

Imagem: Lyserg em 'Shaman King'.

Reprodução: Xebec.

Alguns são compreensíveis simplesmente por serem legitimamente incomuns até em japonês: o personagem “Lyserg” (rizerugu), por exemplo, que virou “Rezelg”, uma forma compreensível de interpretar a leitura japonesa do nome.

Outros simplesmente foram escritos de formas estranhas: o pai do Yoh, Mikihisa, foi chamado de “Mikirisa” em sua primeira aparição, e o personagem Silva foi rebatizado como “Asa Prateada”, que é o nome de um dos seus cinco espíritos – cada um deles segue o molde “Silver (parte do corpo)” em japonês.

Ocasionalmente isso acontece até com nomes de pessoas reais. Em um ponto da série os heróis enfrentam um xamã chamado Boris Drácula, descendente de Vlad, o Empalador, o homem real que serviu de inspiração para o personagem literário Conde Drácula. Mas parece que o encarregado da adaptação do episódio não captou a referência, e traduziu “Vlad, o Empalador” (burado) como o hilário “Brado dos Espetos”.

Imagem: Bóris Drácula em 'Shaman King'.

Reprodução: Xebec.

Mas o mais estranho para mim é que vaza muito japonês na adaptação. Na primeira aparição do supracitado Mikihisa, por exemplo, a Anna, na voz de Letícia Quinto, explica que ele é “o oji-sama” – neste contexto, isso significaria “sogro”.

Na primeira aparição do vilão Hao, seus lacaios se referem a ele diversas vezes como “Hao-sama” (pronúncia: “Raussâma”), ou “mestre Hao”, em tradução livre. A maioria das piadas do personagem Chocolove, um aspirante a comediante, foi adaptada de forma bem competente, mas em um momento genuinamente sem nexo, um trocadilho que ele faz com “kokkuri” (um jogo japonês de conversa com os mortos, semelhante ao tabuleiro ouija) e “tokkuri” (gola de suéter) é literalmente dado assim, com essas palavras, sem nenhuma explicação dos significados delas.

E as confusões de termos! Em Shaman King, o “Deus” do mundo (que na verdade é uma fusão de inúmeras almas que guiam a natureza) é chamado “Great Spirit” (Grande Espírito, em tradução livre). No universo da série também existe o conceito de “Over Soul” (algo tipo “alma transbordante”), que, em suma, é a técnica através da qual os xamãs da série transformam seus fantasmas em armas poderosas.

Imagem: Outro pôster promocional da série.

Divulgação: Xebec.

Os dois conceitos são introduzidos no mesmo episódio, e a dublagem mistura os dois: nele, tanto “Over Soul” quanto “Great Spirit” são traduzidos como “Grande Espírito”, e em futuros episódios, quando a distinção dos dois fica mais clara, o Great Spirit vira o “Bom Espírito”. Anotaram? Vai cair na prova.

Um dos focos da série é a fictícia tribo nativo americana dos “Patch”, quem sedia o grande torneio xamã que serve como espinha dorsal da obra, e um grande bloco da história é dedicado aos heróis procurando por ela, escondida em algum ponto dos Estados Unidos.

A dublagem aparentemente não entendeu que “Patch” era o nome da tribo, achando que se referia a um membro da tribo em específico, então por inúmeros episódios os personagens saem por aí à procura da “Aldeia do Patchi”, seja lá quem esse “Patchi” for!

Se parece caótico… é porque era. Mas apesar disso, é muito raro achar gente que cresceu com Shaman King condenando a dublagem; todos têm forte carinho por ela porque o elenco era fortíssimo. Rodrigo Andreatto, Letícia Quinto, Fábio Lucindo e Thiago Longo podiam ter roteiros sem o menor sentido, mas eles os liam com convicção e coração, e foi isso que realmente ficou com as pessoas.

Se de fato o novo animê for lançado por aqui pela Netflix, só posso esperar que receba uma dublagem comparável no quesito carisma – mas que supere no quesito roteiro, por favor!

E você, tem boas lembranças da dublagem de Shaman King? Qual foi o seu erro favorito dela? E seu dublador favorito? Se a nova série for dublada, você gostaria de ver o elenco voltando, ou sangue novo nos papéis? Soltem a voz nos comentários e até a próxima!


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