Você já deve ter ouvido por aí o termo “demografia”, correto? Essa é uma palavra muito utilizada com os animês. Naruto é shounen, Sailor Moon é shoujo. Mas, na verdade, essas categorias são produtos da indústria de mangás. As revistas japonesas (não só de quadrinhos), ou boa parte delas, definem em seu editorial quais as características do público que pretende atingir – isso é a tal “demografia”.
Essas características geralmente englobam gênero e idade do leitor ideal da revista e se enquadrariam, de maneira mais técnica, na expressão “perfil demográfico do público”. Esse assunto não é novo, mas hoje vamos abordá-lo de uma forma um pouco mais extensa no nosso primeiro de guia de uma série de textos introdutórios sobre a indústria de culturar pop japonesa para “iniciantes”. Este texto também é fruto de uma parceria com o Fora do Plástico, perfil especializado em quadrinhos.
De saída, são 4 as principais demografias de mangás:
- Shounen;
- Shoujo;
- Seinen;
- Josei ou Ladies’ comics.
As demografias definem qual o público-alvo de um mangá. Elas não são gêneros, uma vez que não definem clichês nem o tipo da história (ou pelo menos não deveriam, em alguns casos). São apenas categorias referente ao perfil do público ideal de uma revista, pois no Japão os mangás são geralmente seriados em espécies de “almanaques”, que trazem capítulos de várias obras.
Por esse motivo, tais termos também se referem especificamente à mídia mangá, ou seja, levando ao pé da letra não existe animê shounen. Ocorre que essas nomenclaturas acabam sendo tomadas de empréstimo pelas animações uma vez que boa parte das séries na TV são adaptações de histórias que surgiram como mangá.
Vejamos pelo que se caracterizam cada demografia.
Shounen
Mangás cujo público-alvo são os garotos são denominados “shounen”, literalmente “menino” em japonês. Essa é a demografia mais conhecida, uma vez que a revista com maior circulação dentre todas é a Shounen Jump, da editora Shueisha (a maior da indústria).
Como compreende uma faixa etária bastante grande, que vai dos 7 aos 18 anos, há algumas revistas focadas no público infantil, como a CoroCoro (Shogakukan), de Pokémon, e outras voltadas para os adolescentes, como a Bessatsu Shonen Magazine (Kodansha), de Ataque dos Titãs. Basicamente, corresponde ao que conhecemos aqui por “infanto-juvenil”.
Por conta da popularidade, as editoras japonesas geralmente possuem alguma revista shounen como “carro-chefe”. Dessa forma, sua periodicidade costuma ser menos espaçada e a circulação tende a ser incrivelmente grande. A título de exemplo, a já mencionada Shonen Jump possui uma tiragem de cerca de 1,5 milhão de cópias por semana – e esses números eram maiores até 2017, quando o periódico registrou queda e passou a ter menos de 2 mi de exemplares por volume.
No Brasil, esta também é a demografia mais popular, ocupando a imensa maioria dos lugares nas prateleiras das livrarias e lojas especializadas. Exemplos de mangás shounen por aqui são muitos e, atualmente, a Panini é a principal referência no assunto: publica One Piece, Demon Slayer, Jujutsu Kaisen, Spy x Family e muitos outros hits do momento, além de já ter trazido dois dos mangás mais populares do país, Dragon Ball e Naruto. A JBC também é forte no segmento e lança, Blue Exorcist, Fullmetal Alchemist, Hunter x Hunter e My Hero Academia, todos bastante aclamados, além do fenômeno Cavaleiros do Zodíaco.
A NewPOP, por sua vez, tem Great Teacher Onizuka, A Voz do Silêncio, Hapiness e o clássico Devilman, além de muitos outros que chegarão em breve, como Uma Vida Imortal (Fumetsu no Anata E).
A Devir, mais nova no ramo, também tem os seus: Astra Lost in Space e The Ancient Magus Bride, ambos publicados em revistas shounen no Japão. A Pipoca & Nanquim, outra que chegou mais recentemente ao mercado dos mangás, publicará o seu primeiro shounen – Spectreman – no fim deste ano.
Shoujo
Mangás “shoujo” são voltados para garotas de 7 a 18 anos. As revistas mais famosas geralmente possuem circulação mais baixa em comparação às shounens de sucesso, e a periodicidade também costuma ser mais espaçada, com periódicos quinzenais ou mensais.
Assim como ocorre com shounens, há revistas focadas para crianças e pré-adolescentes, como a Ciao (Shogakukan), de Utena, e algumas mais voltadas para adolescentes, como a Bessatsu Magareth (Shueisha), de Ore Monogatari.
Por aqui, os shoujos costumam aparecer com bem menos frequência do que o seu correlato para meninos, o que chega a gerar inclusive a promoção de campanhas por parte do público consumidor – em 2014, um grande movimento nomeado “Por Mais Shoujos No Brasil” foi levantado nas redes sociais, resultando em resposta imediata de editoras, que por um momento passaram a olhar com mais atenção para esta demografia (o anúncio de Ao Haru Hide, grande sensação da época, pela Panini foi um dos marcos da campanha).
Embora seja bem menos prestigiada, portanto, a demografia conseguiu chegar aqui com os seus principais títulos. JBC é uma referência no assunto, tendo publicado Sailor Moon (uma nova edição especial está prometida para breve), CardCaptor Sakura, Rosa de Versalhes, Fruits Basket, Orange e diversos outros.
A Panini também possui obras de expressão, como o referido Ao Haru Hide, outros medalhões como Kimi ni Todoke, Ore Monogatari, Lovely Complex e Banana Fish. A NewPOP trouxe Os Filhos de Safiri, de Osamu Tezuka, continuação do clássico A Princesa e o Cavaleiro, publicado pela JBC, e No Café Kichijouji.
Pela Pipoca & Nanquim, Tomie, de Junji Ito, estreou recentemente como o primeiro shoujo da editora.
Seinen
Quando as revistas de mangá começaram, elas eram “derivadas” de revistas literárias para garotos ou garotas. Com a expansão do público, começaram a surgir algumas revistas voltadas ao público mais velho. Assim, surge o conceito de mangá seinen (também usam o termo “dansei”), voltado para homens adultos – geralmente maiores de idade (mas as histórias não necessariamente contém cenas sexo ou de violência gráfica mais pesada, digamos).
Algumas obras, como o O Preço da Desonra ou Satsuma Gishiden não foram seriadas em revistas, por isso fica um pouco difícil colocá-las exatamente como seinen. Mas esses são mangás no estilo gegiká, que foram dos primeiros nesse movimento de criar quadrinhos mais adultos, com foco no público masculino, mas quando esse mercado ainda estava começando e poucas (ou nenhuma) revista existiam, por isso muitos acabam colocando eles nesse “selo”.
Curiosamente, algumas dessas revistas têm boa circulação hoje, acima dos shoujo, mas abaixo dos shounen. A Young Jump, por exemplo, é a segunda maior revista de mangá da Shueisha, ficando apenas atrás da Shounen Jump – embora a diferença seja de um milhão de exemplares entre uma e outra. Se pensamos no shounen como o grande chamariz das editoras, o seinen vem logo atrás.
No Brasil, é o segundo gênero mais popular. Diferente dos shoujos, os seinens estão no catálogo da maioria das editoras que publicam mangá. A Devir tem Tekkon Kinkreet, Sunny e muitos outros. Na Pipoca & Nanquim, de Recado a Adolf e O Último Voo das Borboletas, os seinens são o grande foco – Hokusai, As Crônicas da Era do Gelo e A Lanterna de Nyx chegam em breve para se somar à demografia preferida da editora.
A NewPOP também tem uma boa gama de títulos seinen, como Madoka Magica (não, não é um shoujo), Made in Abyss, K-On, além de ter Shuumatsu no Valkyrie, Saint Onii-San: Jovens Sagrados e outros programados para este ano. Os dois mangás publicados pela Veneta, O Homem Sem Talento e Ayako são ambos seinen. A JBC tem nada menos que Akira, Eden e Blade – A Lâmina do Imortal em seu catálogo.
E a Panini detém diversos títulos de muita expressão, como Monster, Lobo Solitário, Vagabond. Um detalhe curioso é que Vinland Saga, publicado pela editora, nasceu como shounen, na Shonen Magazine, mas acabou sendo remanejado para a revista Afternoon, da linha seinen da Kodansha.
Josei
Assim como ocorre com os seinens, muitas mulheres também começaram (ou continuaram) a ler mangás depois de adultas. As revistas josei são voltadas para elas. Segundo os números da associação japonesa de editoras de revistas, a JMPA [1], são as revistas de circulação mais baixa no mercado, apresentando tendencialmente um periodicidade bem baixa, com almanaques mensais e bimestrais.
No Brasil, temos Honey & Clover e The Wedding Eve – A Véspera do Casamento & outras, pela Panini, além de Paradise Kiss que chega pela editora em junho (e já havia sido publicado pela Conrad); Helter Skelter e Usagi Drop, pela NewPOP; Socrates in Love, pela JBC.
É de longe a demografia menos presente no mercado nacional, exigindo inclusive um esforço maior para se enumerar os poucos títulos que aqui chegaram.
E o “kodomo”?
Em alguns lugares, encontramos também o kodomo (literalmente, “criança”) ser classificado como uma categoria demográfica, em teoria voltada ao público infantil no geral, sem separação por gênero.
Contudo, quando checamos todas revistas na categoria “infantil” na JMPA, nos deparamos com apenas 3 editoras que trabalham com essa divisão: Kodansha, Shogakukan e Gakken Plus. Uma olhada na linha kodomo da Kodansha permite perceber que as revistas relacionadas não possuem o mangá como foco. Vez ou outra até se encontra um quadrinho aqui ou ali, mas dentro de páginas sobre diversos outros, como numa Recreio. Uma das revistas da Shogakukan também parece seguir essa linha.
A JMPA não utiliza a categoria “revistas de quadrinhos infantis”, apenas revistas de quadrinho para garotos, garotas, homens e mulheres. É um sinal que essa classificação não é muito utilizada dentro do universo das revistas de mangá.
Quando procuramos nas fontes que citam a tal kodomo – a maioria em inglês –, um exemplo é Doraemon. Este surgiu em revistas infantis gerais no final dos anos 1960, em tirinhas. Ao final dos anos 1970, o mangá de Fujio Fujiko ganha uma publicação na CoroCoro, que como vimos é uma revista shounen, tendo passagem também em diversos outros periódicos para garotos da Shogakukan.
Enfim, o Doraemon é um evento muito complexo e particular dentro da indústria. O outro exemplo citado à exaustão é a Hello Kitty. No entanto, a bonequinha não é uma personagem originária dos quadrinhos, mas um mascote da Sanrio que ganhou espaço em diversas mídias.
Sendo assim, optamos por não considerar, neste texto, o kodomo como parte das demografias, visto que sua utilização não se dá especificamente para o universo dos mangás.
O que tudo isso quer dizer?
Como é perceptível, o mercado, por questões históricas e culturais, segmenta o público-alvo das revistas de mangá entre idade e gênero. Esse público, no entanto, não necessariamente é o público consumidor. Poderíamos imaginar, inclusive, que revistas de maior circulação consigam esses números atingindo públicos além do alvo.
Alguns pesquisadores tentam, por exemplo, estimar o público leitor de One Piece, uma das maiores séries da Shonen Jump, e os números geralmente trazem algo perto de 50/50 entre homens e mulheres. Isso atestaria que nada impede que uma revista – para garotos – tenha um público feminino bem expressivo (cabe dizer, no entanto, que não temos qualquer informação oficial para cravar esses números).
Alguns outros dados já indicam que revistas menores parecem permanecer com leitores mais dentro do segmento-alvo, ao menos se tivermos como base os números da Shueisha.
O problema mesmo é que nem sempre esse público é tão claro. Por exemplo, é difícil encontrar nas redes da V-Jump alguma menção ao fato da revista ser shounen – na própria JMPA, ela não aparece nessa categoria, sendo uma “revista de games”. Por falar de games de mangás shounen da editora, pode-se imaginar que foque nesse público, mas a revista só aparece abertamente nesse categoria em documentos da Shueisha destinados ao mercado publicitário.
Uma outra revista que se vê em situação semelhante é a G-Fantasy, da Square Enix, a casa de Hanako-kun. A revista não parece se definir em nenhuma das demografias e, no caso dela, isso faz certo sentido. Muitas das séries de G-Fantasy são adaptações em mangá de jogos que aqui teriam classificação +12 – diferente da V-Jump, que tende a falar de mangás que se tornaram jogos, ou seja, fazendo o caminho contrário.
Esses jogos são parte de um universo menos marcado por “para homem” e “para mulher”, então, comercialmente, talvez faça menos sentido delimitar uma demografia para essa revista, que pretende atingir bases de fãs já existentes.
Mas não é só a G-Fantasy: há muitas outras revistas que não possuem uma demografia bem definida. Um bom exemplo é Comic Alive, de Non Non Biyori e Re:ZERO – comumente se atribui a ela a classificação seinen, mas não há dado oficial que afirme isso (ou se há, é fácil de achar).
Por vezes, podemos encontrar essas revistas “sem demografia” dentro de algum setor demográfico em lojas japonesas de e-commerce, mas não é possível garantir se a categorização foi feita pela própria loja, que utilizou algum parâmetro particular, ou se houve alguma recomendação por parte da editora detentora dos direitos.
Sabemos que Wikipédia não é a melhor das fontes, mas geralmente se a página japonesa da revista não inclui uma categorização por lá é porque é difícil de provar.
Há também alguns casos curiosos. A Cookie, da Shueisha, por exemplo, se autodenomina um revista shoujo, mas admite focar em mulheres de 20 a 40 anos em documentos para anunciantes, o que a colocaria na categoria josei, segundo a JMPA. Podemos supor, portanto, que a revista busca “vender mangá shoujo para mulheres adultas”. Mas provavelmente nada supera a Comic Gene, autoproclamada “revista shounen para garotas”.
Essas são algumas pistas de que mesmo no Japão essas categorias já não são mais tão significativas assim. Certamente, elas ainda possuem algum peso, provavelmente dentro do mercado publicitário e de algumas escolhas editoriais por parte de cada empresa, mas atualmente as demografias estão longe de serem caixinhas bem definidas, daí a natural confusão dos leitores fora do Japão (e inclusive de profissionais do meio).
Boys’ love e Yuri
Muitas vezes, também vemos Boys’ love e Yuri (às vezes chamado de Girls’ Love até mesmo no Japão, mas esse termo geralmente é usado no exterior) sendo enquadrados como demografia. Esses termos, no entanto, na verdade se referem a “temáticas” dentro da história: uma história BL contém tensões de cunho romântico-sexual entre dois homens, enquanto um yuri aborda a mesma tensão, mas entre mulheres.
Importante notar, no entanto, que essas categorias exercem um papel como “termo de marketing”: é BL ou GL tudo aquilo que é definido por uma editora como BL ou GL e há revistas especializadas nesse tipo de obra – e, nesse ponto, são similares a uma demografia (temos um podcast sobre BL aqui para entender mais).
Ao menos no caso do BL, podem existir histórias com tensões homossexuais enquadradas fora desse termo. Por exemplo, Banana Fish traz um relacionamento entre os protagonistas Ash e Eiji, mas não é definido como um BL pela editora. Yuri on Ice é frequentemente tratado como um BL por fãs por diversas cenas sugestivas entre Yuri e Viktor, mas a série também não é oficialmente classificada como boys’ love.
Já o termo yuri é um termo guarda-chuva aplicado a séries com foco em personagens lésbicas, embora nem sempre haja a consolidação de um romance.
Apesar de terem traços semelhantes com o que define uma demografia, essas categorias em si não dizem nada sobre perfil de público pretendido (embora historicamente tenham nascido dentro de certos perfis demográficos), logo não se referem ao que se entende por demografia.
Elas funcionam, na verdade, como um informativo sobre uma das principais linhas temáticas que se encontrará no interior de determinada história. A Netflix faz algo parecido hoje ao classificar séries e filmes com a tag “LGBTQ+”. Enfim, esses termos também não são gêneros, uma vez que essas histórias podem ser de qualquer gênero (ação, romance, comédia, horror, etc.).
[1] JMPA é uma associação fundada em 1956 para proteger os interesses comuns das revistas dentro do Japão, estabelecendo também parâmetros éticos no meio editorial. Atualmente, 85 editoras participam da associação, que abrange então 80% das revistas (de quaisquer temáticas) do mercado japonês.