Junho é o Mês do Orgulho LGBTQIA+, o que significa que tem bandeira de arco-íris por todos os lados e, consequentemente, está se falando mais ativamente de mídias em geral com personagens LGBT+. Considerando que a cultura pop japonesa possui nichos especificamente compostos por personagens da comunidade, trazemos também neste Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ uma pequena contribuição sobre o assunto.
Dizem por aí que o JBox hoje está mais para GayBox (não seria sem a benção da Madoka). Portanto, hoje vamos falar sobre uma obra que precede os nichos de cultura pop e, mais pro final, de algumas obras gays, pegando o termo como guarda-chuva, ou ao menos bastante LGBT-friendly.
O redemoinho voraz de Voragem
Durante 1928 e 1930, Junichirou Tanizaki publicou na revista Kaizou os capítulos de seu livro Voragem. No caso, Voragem é o título brasileiro, o nome original é Manji (o símbolo budista) e esse título foi escolhido pois “voragem” é uma palavra usada para descrever tudo aquilo que é capaz de tragar e destruir com violência.
O livro é narrado por Sonoko, uma mulher jovem e voluntariosa, que conta sobre seu envolvimento com Mitsuko, uma estudante de Artes, e como se deixou levar por uma voragem erótica que quase a levou à morte.
A narradora se deslumbra com a beleza de Mitsuko, sem se importar com os boatos ou as objeções de Koutaro, seu marido. Em um dado momento, as três personagens se veem envolvidas em um triângulo amoroso no qual tanto Sonoko quanto Koutaro são completamente seduzidos por Mitsuko.
Como é possível perceber por esse resumo bem enxugado da sinopse, Voragem retrata o relacionamento entre duas mulheres e esse foi o primeiro livro publicado no Japão a conter um relacionamento assim – ao menos considerando os registros históricos.
Contudo, não foi o primeiro livro a narrar relações homoafetivas, pois, em 1678 Ihara Saikaku publicou um livro de contos chamado Nanshaku Okagani retratando os sentimentos de fidelidade mútua e devoção entre a classe dos guerreiros japoneses, que resultavam em relações homoeróticas.
É importante situar neste momento, que apesar de Voragem tratar de um relacionamento sáfico e de esse texto estar sendo escrito por causa do Mês do Orgulho, a obra não nasce com um intuito de representatividade ou algo assim. Voragem é uma das obras mais famosas de Tanizaki, justamente, por ser uma narrativa que exala o estilo do autor.
Junichirou Tanizaki viveu de 1886 a 1965, do período Meiji ao período Showa, e publicou suas obras nesse intervalo de tempo. Algumas delas possuem um forte caráter sexual e erótico, enquanto outras abordam dramas familiares e a rapidez das mudanças na sociedade japonesa a partir do século XX. Muitas vezes, seus livros contrapõem os estilos americano/europeu e japonês em busca de uma definição de identidade cultural.
Não é raro Tanizaki abordar paixões avassaladoras, um pouco de perdição e corrupção através dos desejos e da sexualidade. E o relacionamento de Sonoko e Mitsuko não é o único tópico de homossexualidade a ser abordado por Tanizaki.
Em O Diário de um Velho Louco, o protagonista conta logo início do livro sobre a vez que teve uma relação sexual com um ator de Kabuki que interpretava o papel de onnagata (o papel feminino). A personagem diz que o ato aconteceu enquanto o ator estava de onnagata, mas o elemento homoerótico se mantém.
As obras de Tanizaki também abordam como as famílias vivem de aparência, demonstrando serem tradicionais e harmoniosas por fora, mas envoltas em vários dramas e relações turbulentas por dentro. Além disso, não é raro que as mulheres sejam figuras centrais nos livros de Tanizaki.
Há uma contraposição entre a mulher tradicional japonesa e a mulher de hábitos ocidentais, representações das Modan Gâru – as garotas modernas que assimilaram um jeito ocidental de se vestir e maquiar, conceito popularizado pelo livro Naomi do próprio Tanizaki (o termo vem de “modern girl”) –, que se opõem ao conceito de Boa Esposa, Mãe Sábia (ryousai kenbo), o ideal de mulher japonesa propagado a partir de Meiji.
Curiosamente, esse conceito de mulher japonesa ideal, ensinado nas escolas femininas, se relaciona com a criação de revistas femininas e/ou expressões de mulheres japonesas que acabaram desembocando nos mangás shoujo e em outros nichos que ramificaram dele, como BL (nascido como uma categoria dentro do shoujo), ou os romances classe S, que deram origem aos yuri.
Essa mulher ocidentalizada é, por vezes, alvo de um amor avassalador. Ela é envolta em sensualidade e faz as protagonistas perderem a cabeça.
Esses são aspectos importantes, pois, em Voragem a Mitsuko representa um pouco a perdição para Sonoko. A protagonista se apaixona perdidamente, é completamente envolvida por essa estudante de Artes que é falsa e chantagista.
Talvez essa carga de perdição da Mitsuko faça com que perca um pouco a graça dessa relação homoafetiva, afinal, mais uma história de mulheres se amando com um quê de sensualidade e fascínio.
Entretanto, essa sensualidade e fascínio se relacionam com os tipos de narrativas do Tanizaki, então, na realidade o relacionamento da Sonoko e da Mitsuko está justamente no mesmo patamar que os relacionamentos héteros retratados em outros livros do autor.
Por esse motivo, por mais que Voragem não seja uma obra escrita com o intuito de ser representativa para mulheres que amam mulheres ou algo assim, segue tendo um impacto histórico interessante.
Nesse livro, a gente tem uma mulher contando como ela se apaixonou perdidamente por uma outra mulher e afirmando em seu relato que “Quando penso em Mitsuko, não é ódio ou ressentimento o que sinto, mas saudade, tanta, tanta…”, numa obra canônica da Literatura Moderna Japonesa.
Voragem fala de uma paixão avassaladora, de uma protagonista completamente rendida à sua amante e também sobre aspectos íntimos dos matrimônios japoneses da época. É uma obra que representa muito bem o estilo e as temáticas de Tanizaki.
Falando de cultura pop…
Bom, se toda essa tagarelice sobre Voragem despertou seu interesse, vale lembrar que há algumas obras dos nichos yuri e BL disponíveis para consumo no Brasil. No lado das mocinhas que amam mocinhas, temos Bloom Into You sendo publicado pela Panini, bem como Citrus, Philosophia e a light novel Sunset Orange pela NewPOP. A mesma NewPOP também possui títulos BL como Given, Joy e vários outros.
No caso de você preferir assistir a ler coisas, os animês de Citrus, Given e Yes, No or Maybe? estão disponíveis na Crunchyroll. A plataforma também possui títulos como Vladlove, Miss Kobayashi’s Dragon Maid, Izetta: The Last Witch e outros que, se não são “canonicamente” LGBT, estão quase lá. Além de My Next Life as Villaness: All Routes Lead to Doom!, um animê muito bi friendly.
A Funimation por sua vez possui séries como Stars Align e trará em breve o filme BL Umibe no Étranger. Já a Netflix possui o live-action inspirado no yuri Gunjô, Tudo por Ela, e o clássico Madoka Magica, que é mais do que famoso entre círculos yuri no Japão embora não tenha relacionamentos homoafetivos consumados em tela.
Conhece mais a alguma obra com personagens LGBT+ que você acha que vale a pena ser citada? Deixa aqui nos comentários e feliz Mês do Orgulho!
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