Infelizmente, nós temos uma relação muito íntima com a América do Norte. Está em todos os aspectos do nosso dia-a-dia: desde os carros que dirigimos, passando pela tecnologia que utilizamos, as lojas que frequentamos, os memes que usamos e até as obras da cultura pop que consumimos. Digo, olha pra mim: eu estou escrevendo isso no Microsoft Word!

Naturalmente, isso se aplica aos animês também; como eu já disse em colunas anteriores, muitos deles chegam até nós após darem uma passadinha nos Estados Unidos ou no Canadá, que deixam sua… marca neles bem claramente. Pokémon, Yu-Gi-Oh!, Dinossauro Rei, ou até coisas mais antigas como Patrulha Estelar e Batalha dos Planetas – todos vieram para cá através de um jogo de telefone sem fio em que adaptamos a adaptação em prol da praticidade, sempre com vários efeitos… colaterais.

Imagem: Logo da 4Kids Entertainment, conhecida por editar e censurar animês nas localizações americanas.

Imagem meramente ilustrativa.

Mas esse não é o caso para todos os animês, pois existem vários casos chegando aqui através de rotas alternativas. Alguns diretos do Japão, outros através do resto da América Latina, outros através da Europa… e esses costumam sofrer bem menos na transição. É quase como se só a América do Norte tivesse problemas.

Eu acho super interessante os casos dos animês que também chegaram aos nossos vizinhos do norte, mas, diferente de nós, eles editaram pesadamente. Analisá-los sempre me traz aquela sensação de “e se…”, misturada com a sensação de “ufa, escapamos!”. Não sabe do que estou falando? Pois agora você saberá!


Imagem: Os personagens da primeira fase de 'Dragon Ball Z', com Goku de cabelo amarelo.

Divulgação: Animetopia, Toei Animation, Shueisha, Studio Bird | Via Jinzu Hikari.

O primeiro caso na minha listinha de exemplos tenho Dragon Ball – esse dispensa apresentações.

A nossa versão veio através da América Hispânica (e tivemos muita sorte, pois a versão europeia era cheia de problemas de adaptação), extremamente fiel ao original e contando somente com poucos cortes. Nem preciso dizer que lá em cima o caso foi diferente… BEM diferente.

Resumindo bastante a novela, porque a distribuição de Dragon Ball nos EUA/Canadá é extremamente complexa (daria até para render sua própria coluna… vocês teriam interesse?): a primeira versão de Dragon Ball Z a ser exibida por lá foi infame, e continua discutida até hoje.

Uma coprodução entre a (então recém-criada) Funimation e a Saban, essa versão de Dragon Ball Z contou com todo tipo de alteração: trilha sonora, diálogos, alguns nomes (como o complicado “Tenshinhan” sendo simplificado para “Tien”; o “Shinhan” seria revelado como sendo um tipo de sobrenome mais tarde), e inúmeros cortes.

Podemos dizer que seguia o nível de violência de Power Rangers: todo o sangue era apagado, golpes no rosto eram cortados ou encobertos com enormes “estrelas”, e nenhuma referência sexual passava. Mas a infâmia realmente veio da proibição de referências à morte, um elemento presente demais na obra de Akira Toriyama.

Imagem: Piccolo acertando Goku e Raditz na fase 'Z'.

Reprodução: Toei Animation.

Nos primeiros episódios não era tão ruim (a morte do Raditz não foi acobertada, por exemplo), mas a partir de um ponto a adaptação inventou o estranho conceito da “outra dimensão” para substituir o conceito de morte.

É bem simples, na verdade: sempre que um personagem morre na obra, é dito que ele é “mandado para outra dimensão” (no caso seria onde fica o Caminho da Serpente e o planeta do Sr. Kaioh e etc). Quando um personagem morria, mas deixava um cadáver (como o Yamcha), esse cadáver era digitalmente apagado para auxiliar a ilusão.

Como se pode imaginar, a coisa ficava bem ridícula bem rápido, mas essa versão perdurou por 53 episódios até entrar em hiato. Ela seria seguida por uma segunda versão (ainda pela Funimation, mas sem a Saban) exclusiva do Cartoon Network, pegando de onde a primeira parou, e afrouxando bastante todas essas limitações, se tornando o DBZ “oficial” dos americanos.

Como uma última curiosidade, essa versão também cortava bastante filler para reduzir o número de episódios (o 53º episódio americano equivalia ao 66º japonês), uma prática posteriormente repetida pela própria Toei ao fazer Dragon Ball Kai.

Por sinal, a nossa versão de Kai deriva da americana (dublamos do espanhol, mas essa versão foi feita em cima da americana), então, no fim, acabamos um pouco infectados pela versão deles também. Triste.

Imagem: Pôster de 'Digimon' com os digiescolhidos da primeira temporada e seus monstrinhos.

Divulgaçã: Akiyoshi Hongo, Toei Animation.

De um produto da Toei para outro, tivemos bastante sorte dos nossos distribuidores terem se apressado tanto para trazer Digimon Adventure para cá, porque isso provavelmente foi o que nos poupou da versão americana (os nomes são outro caso…).

Nos Estados Unidos, a adaptação ficou a cargo da Saban também, e foi mais tipicamente Saban.

Vários diálogos foram reescritos, inúmeras piadas extras foram acrescentadas, e, apesar de nem de longe tanto quanto Dragon Ball, e, ocasionalmente, conteúdo julgado como impróprio era editado.

Minha edição favorita é uma cena em que Wizardmon desvia a atenção de PicoDevimon com uma garrafa de bebida alcóolica. Na versão da Saban, o álcool virou, de todas as coisas, molho de tomate.

A trilha sonora também foi trocada, e ela tem um histórico interessante: boa parte das composições não foram feitas para Digimon, mas sim para Masked Rider, a adaptação americana de Kamen Rider Black RX – que passou por aqui… DEPOIS do Kamen Rider já ter passado, foi estranho.

Sem brincadeira, eu diria que ela é a melhor trilha original da Saban, é bem grandiosa e hollywoodiana… mas claro, nem chega aos pés das composições japonesas. Na minha opinião. Que é a certa.

Imagem: Angélica na frente de um Togemon na abertura de 'Digimon'.

Reprodução: Toei/Globo.

E nós tivemos um pouco do gostinho dessa versão; o Digimon: O Filme, aquela compilação dos três primeiros filmes japoneses de Digimon? Pois é, veio dos Estados Unidos, e tem os mesmos padrões de adaptação e a mesma trilha sonora que a série de TV teve por lá (fora as músicas pop licenciadas, como “All Star” do Smash Mouth… aquela loucura foi ESTRANHA).

Infelizmente nós acabaríamos recebendo uma série 100% via Estados Unidos vários anos depois, na forma de Digimon Fusion (Digimon Xros Wars, no Japão).

Ainda na Toei (gente, eu não consigo escapar da empresa do gato de botas), outro caso famosíssimo da época foi Sailor Moon. Apesar de inúmeros tropeços de tradução, a nossa versão latino-americana não trai muito o original, diferente do pessoal lá de cima.

Imagem: Pôster de 'Sailor Moon R'.

Divulgação: Toei Animation.

A versão norte-americana foi produzida pela francesa-estadunidense DIC (ei, pare de rir!) pelo primeiro bloco de episódios, e, naturalmente, contou com várias alterações.

Trilha sonora alterada (que os fãs americanos parecem adorar, porque eles não têm bom gosto), texto de adaptação raramente casando com o original japonês, referências ao Japão dribladas sempre que possível, e todas as personagens passando a falar mais como estereótipos de adolescentes americanas.

Mas o momento mais marcante dessa versão foram as edições em cima dos últimos dois episódios da primeira temporada, os episódios 45 e 46 (que foram fundidos em um só por lá).

Spoilers desse clássico de 30 anos atrás, mas neles, as guerreiras Sailors morrem em sua investida rumo ao covil da maligna Rainha Beryl até só sobrar a protagonista.

Eles também contam com uma violência acima do normal para a série, com o Príncipe Endymion (o galante Tuxedo Mask sob o feitiço maligno da Beryl) torturando e enforcando a Sailor Moon por várias cenas.

Naturalmente, tudo isso foi encurtado na versão americana, e ao invés de morrerem, as outras Sailors eram “capturadas” pela Rainha Beryl (sem explicação de como elas apareciam como fantasmas durante a batalha final). De acordo com relatos online, esse foi um dos trabalhos de edição mais infames da época, e fitas VHS com fansubs desses dois episódios eram altamente cobiçadas, até entre pessoas “fora do meio”.

Imagem: Sailor Venus morta entre espinhos.

Morta? Apenas cansada e capturada. | Reprodução: Toei.

Assim como Dragon Ball, Sailor Moon entrou em hiato depois disso, mas após ganhar um novo público no Cartoon Network, a Toei (através de sua subsidiária Cloverway) providenciou mais episódios, cobrindo o resto da temporada R, mais as temporadas S e SuperS. O texto dessa versão era um pouco (ênfase no “pouco”) mais próximo da versão original e a trilha sonora ficou inalterada… mas não quer dizer que não teve seus casos de infâmia.

Foi nesse bloco ocorreu a infame conversão de Haruka e Michiru (Sailor Urano e Sailor Netuno), o não-explícito (mas extremamente óbvio) casal lésbico da série, nas primas Amara e Michelle. Primas bastante íntimas, sabe? Que adoram acariciar carinhosamente as mãos uma da outra. Como bons primos fazem. Ai, anos 90…

Imagem: Haruka e Michiru de mãos dadas.

Primas. Primíssimas. | Reprodução: Toei.

Dito isso, após vários anos a VIZ Media redublou toda a série pro mercado americano, dessa vez sem corte nenhum e com diálogo bem próximo do japonês. Demorou, mas os fãs americanos (não presos à nostalgia) de Sailor Moon tiveram o que tanto queriam.

Nossa, essa matéria acabou ficando muito mais longa do que eu esperava! Melhor separá-la em duas partes. Ainda há mais casos de animês que vieram-intocados-para-cá-porém-manchados-para-os-norte-americanos, então, fique ligado para a próxima edição, em que nós falaremos do resto!

Sim, incluindo Knights of the Zodiac. E sim, incluindo esse outro em que você está pensando também.


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