Você tem uma vida minimamente estável. Ela não é regada a emoções, também não é tão boa quanto você, anos antes, achou que seria nessa idade. Não é milionário, não tem as melhores garotas ou rapazes ao lado, não pode viajar e conhecer lugares paradisíacos. E ela provavelmente não melhorará drasticamente dali em diante. Talvez tenha coisas bem ruins nela, como um chefe estúpido, colegas de trabalho irritantes.
Talvez você nem seja um trabalhador ainda. Pode ser um estudante, com essas mesmas estabilidades e fatores negativos aplicados a tal ambiente: professores perversos, colegas de classe chatos. Pode ser que nem estude e nem trabalhe, esteja vendo a vida passar, os seus pares ascenderem e sua própria vida se mantendo linear. Ou talvez tenha tudo para ser satisfatoriamente confortável, mas precise girar 180° para encontrar satisfação verdadeira.
Ou não, ou seja obrigado a passar por essa mudança. Aí, essa mudança ocorre de maneira repentina, sem seu controle, mas o levando pruma realidade diametralmente diferente, onde pontos em sua pessoa que, numa primeira oportunidade, não foram valorizados, serão úteis. Então, vem uma nova oportunidade de ser feliz, dessa vez com um tiquinho mais de poder para controlar como será seu destino. E num mundo de fantasia, pois isso é importante.
A febre dos isekais…
É mais ou menos esse o mote de uma porção de animês que têm saído recentemente, que atendem a um subgênero intitulado isekai. Há diferentes definições, mas gosto de explicar isekais como histórias onde, por algum motivo narrativo, personagens vão de um universo a outro, comumente fantasiosos, e em posse de super poderes, e passam a viver grandes aventuras por lá.
Esse conceito pode ser aplicado total ou parcialmente à uma porção de títulos. Tem os que há a mudança completa, como Youjo Senki (Tanya the Evil), em que um homem renasce no corpo de uma bruxa num mundo em guerra. Tem os que essa mudança é parcial, como na franquia Sword Art Online, onde os personagens sabem que estão presos em corpos num jogo de realidade virtual. E tem os que a mudança é ainda menor, como El-Hazard, no qual os protagonistas permanecem em seus corpos, mas ganham alguns poderes quando são enviados para a outra realidade.
Animês isekai hoje podem ser considerados uma febre. Para comprovar, é só olhar as listas de lançamentos a cada temporada japonesa, com mais e mais apostas nessa linha surgindo. É possível afirmar que essa febre recente começou no início da década passada, dentre outros motivos, com o sucesso de duas obras. Uma delas é o já citado animê de Sword Art Online. A outra é a novel Mushoku Tensei: Jobless Reincarnation, que inicialmente tinha sua publicação apenas online no site Shousetsuka ni Narou, mas logo ganhou vida em edições físicas, mangás e audiodramas.
Mushoku Tensei conta a história de um NEET (acrônimo para “Not in Education, Employment, or Training”, uma pessoa que não estuda e nem trabalha, aqui chamamos “nem-nem”) de 34 anos que, após um momento de introspecção, se sente mal por não ter conquistado nada em sua vida.
Em dado deslumbre, ele tenta salvar alguns adolescentes de serem atropelados por um caminhão e, nisso, é morto no acidente. Momentos depois, ele renasce como um bebê chamado Rudeus, consciente de seu passado, num mundo de Espada e Feitiçaria. Aí, acompanhamos sua trajetória crescendo como um mago e tentando alcançar um futuro mais significativo do que teve em sua vida passada.
Sword Art Online e Mushoku Tensei não são os primeiros isekais em todos os tempos. Aura Battler Dunbine já trazia conceitos do tipo lá em 1983, o primeiro OVA do mencionado El-Hazard é de 1995, o mangá de Inuyasha começou em 1996 e o primeiro animê de Digimon saiu em 1999. De certa forma, mesmo uma obra como Alice no País das Maravilhas (1865) cumpre a ideia de um isekai, ainda que não seja um animê, nem mesmo do Japão. Mas os dois parecem ter setado o formato que foi tão seguido a partir da década passada.
Esse início de Mushoku Tensei, por exemplo, foi “refeito” posteriormente com suas respectivas adaptações em obras como KonoSuba, Youjo Senki e That Time I Got Reincarnated as a Slime enquanto a abordagem “gamer” de Sword Art Online foi aplicada em Log Horizon, cuja novel é de 2011, Overlord, de 2012, e My Next Life as a Villainess: All Routes Lead to Doom!, 2015.
Mushoku Tensei: atrasado em sua própria festa…
Ocorre que, diferente de SAO, Mushoku não ganhou um animê logo ao início da mania que ajudou a propagar. Desse modo, ao público médio daqui, que não consome novels nos meios em que a sua foi publicada, é como se o template inicial, o padrão que foi seguido e tão refeito, fosse ultrapassado em meio a tantos outros que utilizaram dessa fórmula posteriormente.
Sua adaptação animada só chegou agora, em 2021, com 22 episódios feitos pelo estúdio Bind, escrita e dirigida por Manabu Okamoto e distribuída por aqui pela Funimation. A questão é: passado tanto tempo desde sua publicação original, ainda há o que Mushoku Tensei contar como animê dentro do cenário de isekais?
A resposta é… mais ou menos. Porque Mushoku Tensei me parece funcionar mais como ideia do que em execução.
Embora hoje essa essência de uma história sobre um “fracassado” enviado para outro mundo já seja batida, o roteiro aqui apresenta elementos um tiquinho mais adultos e “sujos” que são suficientes para diferenciar essa história de outras. Embora o NEET tenha tido um lapso de heroísmo em seus momentos finais, ao renascer como Rudeus, ele não opta por seguir com essas virtudes. Pelo contrário: o que acompanhamos aqui é um personagem tridimensional, com muito mais defeitos do que dignidade.
Como Rudeus, ele quer mais viver a vida sem arrependimentos do que deixar um legado de bondade em sua passagem. E para atingir isso, por vezes opta por deixar escrúpulos de lado. Além disso, mantém aqui traços condenáveis de sua personalidade na vida anterior, como machismo, agressividades e algumas perversões, aproveitando o quão do lado dele e desse tipo de comportamento esse novo mundo é.
Mundo esse que, aproveitando os conceitos medievais dentro de uma ambientação Espada e Feitiçaria (ou “dark fantasy“, escolha qual preferir), é bem ruim com mulheres, subjugadas, estupradas e violentadas de diferentes maneiras, com pessoas de raças consideradas inferiores e de classes mais humildes.
Mas o interessante disso é que o roteiro nos dá informações do quanto esses comportamentos são condenáveis, não “passa pano” aos atos ruins dos personagens nele. Em uma passagem no começo, o pai de Rudeus engravida a empregada da família, e a partir disso um lado escuso de sua personalidade é revelada, com ele se mostrando um garanhão que não respeita a esposa, dá em cima de outras mulheres, inclusive tem um histórico de abusos com outra personagem.
Rudeus sabe que isso é errado, mas diz entender o pai. Só que isso ocorre não por esse tipo de ato ser aceitável, sim por Rudeus ter um lado tão sombrio que aquele lugar, onde essas coisas ruins são aceitáveis, é o ideal pra ele. Isso é demonstrado mais pra frente, quando o próprio Rudeus abusa de uma personagem e quando ele presencia e toma como engraçado o nobre que comanda a casa onde ele está trabalhando estuprar uma empregada.
É como em Death Note: nós acompanhamos a história do ponto de vista de alguém ruim, mas as coisas ruins que esse protagonista faz continuam sendo… ruins. E essa mudança de perspectiva é bem-vinda dentro do gênero. Se o público interpretar isso errado, achar que o Rudeus é um herói, o problema é com este, não com série.
Tem também o outro lado, onde não prevalece a interpretação de texto e a liberdade artística: o animê tem gerado polêmicas internacionalmente e angariado comentários negativos por o protagonista ser retratado dessa forma pervertida. O próprio autor da novel original, Rifujin na Magonote, precisou vir a público justificar o porquê disso. Uma bobagem. Histórias de todos os tipos podem ser contadas, inclusive a de pessoas repugnantes.
O que estraga é outra coisa…
O problema real que Mushoku carrega é outro. Ao assisti-lo do início ao fim dos episódios já disponíveis, fica a impressão de que, por mais da metade deles, bem pouco aconteceu. O roteiro é repetitivo. Um mesmo plot ocorre três vezes: o do mestre ensinando o aprendiz. Primeiro, com o Rudeus aprendendo sobre magia e luta com espada. Depois, com o Rudeus ensinando uma amiguinha a utilizar seus poderes. E novamente, o Rudeus indo trabalhar como professor da filha de um nobre, aproveitando para tomar lições de espada, línguas e dança ali também.
É até interessante no início, mas essas repetições se esticam tanto que mais da metade do animê parece um preâmbulo para algo maior. E esse algo maior vem nos últimos episódios, onde parte do lore daquele mundo é apresentado, começamos a entender sobre os jogos políticos, o protagonista é jogado num país de demônios e, enfim, começam aventuras de verdade. Mas o caminho até lá pode ser bem cansativo.
Então, Mushoku Tensei: Jobless Reincarnation acaba sendo um animê mais importante do que interessante. Importante por, enfim, ser o desenho de uma obra que influenciou diretamente tantas outras num formato que ela ajudou a construir. Por ainda ter algo de diferente a abordar em isekais. Por trazer um enredo e roteiro com mais camadas e que exige mais do espectador para ser interpretado. Mas de que adianta tudo isso se, no fim, ele é só chato de assistir?
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Mushoku Tensei: Jobless Reincarnation está disponível na Funimation e a plataforma concede ao JBox um acesso de imprensa.
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