Recentemente, a editora Veneta lançou Kanikosen: O Navio dos Homens, a versão em mangá do livro de Takiji Kobayashi, a principal referência da literatura proletária japonesa. O quadrinho foi produzido pelas mãos de Go Fujio.
Quando se fala em “literatura proletária”, a mim vêm dois sentimentos conflitantes: interesse e medo. Interesse pelas pautas e forma como um assunto será tratado. Medo de me deparar com um produção panfletária e simplista. Felizmente, Fujio e Kobayashi escapam do reducionismo e nos trazem uma trama interessante.
Mas o mangá não começa com a história. Ele começa mostrando o autor do livro, Takiji Kobayashi, em seu leito de morte – uma morte provocada por outros. Um assassinato. Porque Kobayashi escreveu coisas. Entre essas coisas, o Kanikosen.
O Kanikosen não fala sobre centros de estudos ou sedes de sindicatos. Não fala sobre uma pessoa especialmente engajada querendo incendiar uma revolução. Ele trata sobre um monte de japonês pobre que se enfiou em um navio-fábrica para pescar carangueijos nas águas da península de Kamchatka, quase no território russo.
O primeiro ponto interessante é o conceito de um “navio-fábrica” (ou barco-fábrica): esses são barcos de pesca industrial, de grandes dimensões, com capacidade para ficar meses sem voltar para o porto, mas ainda assim processar a pesca.
Mas, segundo a história, esses navios não era bem regulados, ao menos naquela época (a história se passa em torno das décadas de 1920-1930). Então os navios e seus trabalhadores não ficavam sob legislações para navios e nem sob legislações para fábricas – ou seja, não ficavam sob legislação alguma (e você não pode fazer uma analogia entre isso e os modelos de contratação fora de regulação hoje, como a pejotização, cof cof).
Então esse primeiro “drible” das classes dominantes na proteção dos trabalhadores é o palco da nossa história. A embarcação vai escoltada por um contratorpedeiro da Marinha japonesa – supostamente para proteger os pescadores dos russos –, algo já meio estranho.
O segundo ponto interessante é os personagens praticamente não terem nome. Apenas o antagonista tem um nome, os outros são identificados por suas posições (capitão, pescadores, etc) ou ocupações antes de subir no navio (estudantes, camponeses, etc). Essa é uma decisão proposital para valorizar o coletivo.
Isolados em alto-mar, nossos heróis, se pudermos assim chamá-los, passam a ser vítimas de constantes abusos, jornadas excessivas, torturas e todo tipo de crueldade laboral por um único superintendente, aparentemente um dos investidores da operação.
Esse é realmente um personagem detestável. É a representação da lógica capitalista, do “lucros acima de tudo”. Uma pessoa detestável. Mas ainda com um pé na realidade. É um personagem exagerado, mas a sensação ao longo da história é “é, eu acho que existem pessoas assim” (além de raiva).
É curioso como os personagens demoram para resolver enfrentá-lo, embora, um a um, provavelmente todo mundo naquele barco já odeie o “chefe” em menos de duas semanas de trabalho. E a morte é nua e crua nesta história. Dá realmente a sensação de “quando esses caras vão fazer alguma coisa?”.
O momento no qual os pescadores realmente se unem é um dos pontos altos da leitura. E toda a construção para isso é bem lenta e cuidadosa. Mas mesmo neste momento, a trama não cai em simplismos: não é fácil fazer uma greve.
Mesmo sendo a maioria, os poderosos têm meios de render os mais fracos. E os pescadores sentem isso na própria pele.
Vocês já devem ter percebido, há muitos spoilers nessa história. Mas, de verdade, isso não importa. No próprio mangá tem todo um prefácio contando tudo. Porque o interessante é como as coisas se constroem.
Todo percurso até o momento final de rebeldia dos trabalhadores do Kanikosen é fantástico.
Esse é um mangá sobre quem está em qual lado na nossa sociedade. Sobre a importância da união, mas da união organizada. Sobre processo de construção de consciência de classe. Sobre a mentira do pioneirismo e coragem da maioria dos grandes empresários, que crescem com um discurso produzido em cima do trabalho de quem nunca recebe créditos.
Sob o lema “não se meta a besta”, vemos um grupo de pessoas sem qualquer ligação com sindicatos – pois estas eram evitadas nesses trabalhos – perceberem quem realmente está do lados deles. E tudo isso é fruto de um trabalho esplêndido de muita pesquisa do autor do livro original, Takiji Kobayashi.
Kanikosen não é só um mangá incrível, mas nos dias de hoje, ele é necessário. Porque tem muito da situação desses jovens dos anos 1920 que ainda permanece mais verdadeiro do que nunca.
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Esta resenha foi produzida com base em edição promocional do mangá Kanikosen: O Navio dos Homens, enviado para o JBox pela editora Veneta. O texto presente é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.
Fiquei com vontade de ter.