Não tenho uma memória tão boa de coisas da infância, mas alguns eventos são bem claros em meu HD. Um deles é na 5ª série do Ensino Fundamental. A professora de Educação Artística, uma tiazinha boca suja legal de cabelo vermelho-caneta-BIC, passou um trabalho sobre o folclore nacional.

Era individual e poderíamos escolher entre uma porção de temas que se encaixam nesse guarda-chuva. Eu e mais da metade da turma preferimos pesquisar sobre lendas. Saci, mula sem cabeça, curupira, ameaça comunista, iara, boto rosa, essas coisas manjadas, sabe?

A escola era bem próxima de casa, então vários dos amiguinhos de turma eram meus vizinhos. Pra ficar mais divertido, nos iríamos à casa de uma das meninas (a de família em melhores condições financeiras, guarde essa informação) pra fazermos juntos.

Eu tinha uma revista Recreio velha com uma matéria de página dupla contendo uma ilustração caprichada de uma floresta onde estavam uns 15 personagens diferentes do folclore, sempre acompanhados de um balão de texto com informações sobre eles. A ideia era que cada um dos sei lá quantos pivetes escolhessem um ou dois desses, copiassem o desenho, pintassem e transcrevessem os textos.

E fomos nós pro quintal da vizinha, acompanhados de folhas almaço, canetinhas, lápis de cor. Minha mãe era (ainda é) professora infantil (mas nunca minha, Deus me livre!), então eu sempre tinha uns itens mais elaborados para momentos assim, como umas canetas coloridas purpurinadas com cheiro de bala, nanquim, tintas e cacarecos no estilo.

Meu desenho horroroso de um saci se escondendo em meio a bambus ficou pronto e precisava secar antes de eu colocar a parte escrita. E eu precisava lavar à mão, que estava grudenta e brilhosa. Enquanto os outros amiguinhos bagunçavam ao mesmo tempo que desenhavam, a menina me levou dentro da casa para eu me limpar.

E aí nos beijamos na boca? Não! Eu era otaku! Uma coisa bem melhor aconteceu: ao passar pela sala, a TV estava ligada e o irmão dela estava assistindo ao Cartoon Network (TV a cabo, tinham dinheiro, lembre disso). Por coincidência, estava para começar no bloco Toonami um episódio qualquer de InuYasha.

Imagem: Ilustração promocional do animê.

Divulgação: Sunrise.

O título não me era estranho, pois justamente essa menina levava para as aulas um caderno de desenhos e, nele, tinham alguns de personagens que ela copiava das telas do jogo A Feudal Fairy Tale, que ela rodava em seu PlayStation (rica, eu disse).

Os desenhos dela não eram muito bons, então ver como eram os personagens em tela foi maravilhoso. Tenho zero ideias de qual episódio era, mas isso não é importante no fim das contas. Tinham lutas, garras cortando, monstros, arco e flecha, umas partes com a Agome (“Kagome” era propício demais a piadas aqui no Brasil) tirando uma com a cara do Inuyasha.

Olhando hoje, com o distanciamento do tempo, dá pra traçar inclusive um paralelo entre InuYasha e o trabalho que fazíamos naquele dia. A história utiliza uma porção de criaturas, como onisyoukais, as raposas, e costumes, religiosos ou sociais, do que pode ser apontado como o folclore do Japão.

Vimos o episódio, voltamos para o quintal, terminamos todos o trabalho e aquele desenho ficou em minha cabeça. Mais tarde, a Globo até o exibiu, com vários cortes, durante um período de tempo curtíssimo na TV Globinho (houve problemas com a classificação indicativa), mas não pude assistir nem lá, já que estudava de manhã na época. Só fui conferir de verdade o animê anos depois, quando adquiri um DVD (pirata) com boa parte dos episódios legendados em qualidade bem baixa em algum evento de animês.

Imagem: Página de abertura do capítulo 2 do mangá.

Foto: Igor Lunei.

Corta para 2020. InuYasha volta a ser pauta por conta do animê Yashahime, que se passa no futuro da história original e acompanha os filhos dos protagonistas. Em 2021, o mangá de InuYasha volta a ser publicado no Brasil pela JBC. A editora já havia lançado o título por aqui, entre 2002 e 2009, mas num formato meio tanko, que dividia um volume da revista por dois, num total de 112 edições. Agora, o quadrinho chega em formato wideban, que compila em 30 volumes os 56 originais japoneses. Os gibis contam com uma sobrecapa e reaproveitam as traduções da década de 2000.

A história é um isekai que gira em torno de Kagome (aqui, com o nome correto), uma estudante do Ensino Médio que mora num santuário xintoísta tocado por sua família. Dado dia, ela cai num poço proibido em seu quintal e vai parar muitos anos no passado, num Japão feudal que ainda convive com criaturas que, no futuro, são vistas só como lendas, como folclore.

Ao ser atacada por um desses monstros, uma centopeia gigante, Kagome descobre portar a Joia das Quatro Almas, item mágico cobiçado por diferentes pessoas, que havia sido selado por uma sacerdotisa. Sacerdotisa essa, da qual, Kagome é a reencarnação.

imagem: páginas do mangá

Foto: Igor Lunei.

Para proteger o vilarejo onde ela apareceu e a si mesma, a menina corre para a floresta e acaba libertando Inuyasha, um rapaz meio humano, meio youkai, que trata de destruir a besta e salvar o dia. Porém, Inuyasha é imprevisível, e pretende atacar Kagome para conseguir a Joia das Quatro Almas.

Só que ele é preso com um colar que permite que Kagome o derrube (duma maneira hilária) sempre que ela quiser. Uma sucessão de eventos faz com que a Joia se despedace em uma porção de pedaços e se espalhe por vários locais. Nessa, Kagome e Inuyasha partem em busca dos fragmentos, que também são caçados pelas mais diferentes figuras atraídas pelo poder.

O primeiro volume do wideban traz os 17 primeiros capítulos da série. Então, dá para ter uma noção bacana de como é o seu clima, dos temas que são tratados, das habilidades narrativas da autora Rumiko Takahashi e do que virá pela frente. Rolam três segmentos de lutas completos e um cujo desfecho fica para o volume seguinte.

São introduzidos vários dos personagens mais importantes da série, como os já mencionados Kagome e Inuyasha, além do antagonista Sesshomaru, irmão malvado do Inuyasha, seu acompanhante bizarro Jaken, o pequenino Myouga, a velha Kaede, dentre outros.

Imagem: Páginas do mangá.

Foto: JBox

A trama de InuYasha é dessas que preenchem todos os requisitos de um shounen de ação excelente. As batalhas são legais, os mocinhos e vilões têm poderes únicos e criativos naquele universo, o senso de perigo é muito bem montado, os cenários e designs dos personagens mais fantasiosos contam bem o tipo de aventura amparada no folclore nipônico que ela é, o humor embutido nas cenas deixa tudo ainda mais divertido de acompanhar.

A Rumiko aqui executa a narrativa gráfica com maestria. Nenhuma página sequer chega perto do tédio. As crescentes narrativas grudam a atenção, os desfechos com os personagens utilizando novas habilidades e as mudanças de rumo, sempre com espaço para quebras de expectativas humorísticas, fazem da leitura um momento agradável que torcemos para não terminar.

Não que InuYasha seja muito diferente de outros gibis shounen de luta atuais, mas há um charme em ver como essas mesmas batidas atuais já eram executadas décadas atrás. Há empenho, energia e graciosidade nas linhas da Rumiko.

Ainda é uma história capaz de agradar criancinhas surpreendidas enquanto fazem um trabalho de escola e adultos um tiquinho mais preocupados com os elementos básicos que formam uma narrativa dentro de um mangá. Vale muito a olhada.

 

Confira na galeria abaixo algumas imagens da edição:

 

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Essa resenha foi feita com base no volume 1 de InuYasha cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora JBC.


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