O prefácio da edição brasileira de Mais forte que a espada, publicado pela Pipoca & Nanquim, refere-se ao seu autor, Hiroshi Hirata, como o “mestre do jidaigeki“, uma forma de narrar japonesa que se caracteriza pelo debruçar-se sobre períodos antigos da história do país. Os “dramas de época” desse estilo são mesmo o carro-chefe de Hirata, mas neste mangá pode ser observada uma postura narrativa diversa das que se vê em Satsuma Gishiden e O preço da desonra — Kubidai Hikiukenin, tributários ao referido estilo, também lançados pela P&N.

Trata-se portanto do 3º trabalho do autor publicado no país, a despeito de sua prolífica obra no Japão. E a particularidade deste pode ser resumida de forma simples: em Mais forte que a espada, a ênfase recai sobre o desenvolvimento do que o mangá mais possui de ficcional, enquanto nos demais — sobretudo Satsuma Gishiden –, a narrativa se coloca a serviço dos elementos da história material.

imagem: páginas internas do volume 2 do mangá

Páginas internas. | Foto: Rafael Brito/JBox

Em Mais forte que a espada, o leitor é apresentado à Hisa, uma mulher dotada de uma força sobre-humana, que acaba de se casar com um senhor de castelo, Yasuhide Shimizu, nos idos dos anos de 1540. Ambientado no período Sengoku (1467–1573), o enredo acompanha Hisa em sua relação com os filhos, o marido e os habitantes da província de Izu, comandada por Yasuhide sob as ordens de Ujiyasu Hojo, grande líder de um dos clãs mais poderosos do período.

Reprodução.

Mas não é para que conheçamos os episódios que consagraram a figura de Oda Nobunaga (1534–1582) e de muitos outros daimiôs, como o próprio Ujiyasu Hojo (1515–1571), que Hirata escreveu Mais forte que a espada. Dessa vez, o autor explora mais as possibilidades da narrativa que criou, exercendo sua criatividade de forma mais livre do que nos lançamentos anteriores.

Ora, vale dizer que não interessa entrar na seara das diferenças entre ficção e realidade, literatura e história, ou qualquer coisa que o valha.

Tais polêmicas, atualmente, estão mais que superadas e sabemos que, no limite, toda criação no domínio das artes é mais ficcional que documental. O que se defende aqui, entretanto, é o fato de que neste mangá a preocupação com a história a ser contada é maior do que com a mera ilustração do período histórico em que a trama se passa.

Este aspecto talvez faça com que outros leitores se interessem pela obra de Hirata no Brasil. É verdade que Satsuma Gishiden agradou ao gosto geral do público, que não apenas comprou boa parte da tiragem lançada, como continuou a pedir por mais títulos do autor.

Ocorre que, no entanto, alguns leitores também se viram pouco atraídos pelo estilo narrativo das crônicas de samurai empregado por Hirata naquela obra, justamente pelo fato de não haver voltado, o autor, sua atenção para o desenvolvimento ficcional do quadro que pretendera compor com sua vasta pesquisa histórica e seu traço de aspiração realista.

Aqui, em Mais forte que a espada, a situação se inverte e os elementos da realidade trazidos pela narrativa não funcionam senão em função desta, o que corresponde às demandas desse tipo de leitor ao qual Hirata não consegue comunicar com as obras mais históricas. Veja: as questões históricas estão aí, são balizas para a narrativa, mas não exercem influência definitiva — são mais ou menos manuseadas pelo autor à medida em que surge a necessidade de dar estofo a uma determinada situação ficcional.

imagem: páginas internas do volume 2 do mangá

Páginas internas. | Foto: Rafael Brito/JBox

E o pulo do gato de Hirata neste mangá é sua capacidade, até então não muito explorada pelos lançamentos anteriores da Pipoca & Nanquim, de criar personagens. Hisa é uma mulher forte — não apenas fisicamente — com a qual não apenas os demais personagens têm algo a aprender, mas também o leitor. Sua relação com o marido é um dos pontos fortes do mangá e os diálogos entre eles, embora possam parecer piegas em uma cena ou outra, lançam luzes para os vícios das relações matrimoniais pautadas na vassalagem característica do período retratado (e que, não nos enganemos, permanece atém hoje, mesmo que em menor grau).

imagem: páginas internas do volume 2 do mangá

Páginas internas. | Foto: Rafael Brito/JBox

Relações viciadas, aliás, dão o tom da obra. As coisas não vão bem entre Shimizu e seus subalternos, que atribuem ao senhor de castelo a penúria em que são obrigados a viver. E não vão bem, sobretudo, dentro de casa, já que os filhos de Shimizu e Hisa não parecem afinados com as aspirações do pai.

Deste galho, nasce a flor mais bonita do mangá. Apesar da relevância de Hisa, cujo protagonismo é inconteste pela forma como a personagem assume relevância diante de todos os conflitos apresentados pela trama, uma outra figura desponta ao final do primeiro volume e passa a ser o centro da narrativa até o final do mangá. Matataro, o filho primogênito de Hisa e Shimizu, é certamente a parte mais cativante da obra.

página do mangá

Imagem: Reprodução

Diferente do que se pressupunha numa família de guerreiros espadachins de ascendência nobre, Matataro é marcado por uma recusa com relação ao campo de batalha.

Sua verdadeira inclinação é para a arte, dominando praticamente todas as suas linguagens: música, pintura, escrita, escultura… Justamente por se negar a fazer parte de um conjunto de práticas e preceitos que dizem respeito à ética dos samurais — dos quais, mesmo com sua postura contestadora, Hisa não consegue escapar efetivamente — é que Matataro se destaca como uma personagem especial naquela constelação de homens e mulheres cujas vidas são voltadas para a reprodução de um modo de sociabilidade que só produz desgraça.

As guerras do conturbado período Sengoku são o horizonte contra o qual Matataro se rebela.

E as cenas envolvendo sua figura e a de Hanshiro (personagem principal de O preço da desonra) são alguns dos momentos mais empolgantes de toda a história.

Os diálogos com o general que, em determinada altura, abriga Matataro em seu castelo em troca da composição de um mural constituem outro grande episódio.

É dessa relação, na verdade, que florescem as mais interessantes reflexões acerca da dedicação à arte como forma de resistir. As contradições da postura de Matataro, no entanto, também são colocadas em questão, pois o país está em guerra e recusá-la, ainda que por um ideal verdadeiramente nobre, não deixa de ser um privilégio reservado a poucos.

Mais forte que a espada é uma tradução adaptada de Kairiki no Haha (怪力の母), forma original japonesa que significa, literalmente, Mãe da Superforça. O título brasileiro se inspira no francês, Plus forte que le sabre, e, assim como este, é interpretativo. A escolha é feliz pois assinala a simpatia do autor por Matataro.

A princípio, a composição pitoresca dos quadros, com páginas e mais páginas de Hisa pondo em prática sua força sobre-humana — carregando rochas imensas, empurrando barcos e lutando contra inimigos de seu clã –, pode dar a entender que é ela quem se sobrepõe ao poder das armas, evocado o tempo todo pelo universo de Yasuhide Shimizu e dos demais generais expostos na trama.

Acontece que se trata de uma pista falsa: partindo do provérbio inglês a caneta é mais forte que a espada, o jogo metonímico entre Matataro e o pai, representante da classe dos bushis, está definitivamente posto pela escolha da tradução. É portanto a arte, obra mais alta da comunicação humana, que é capaz de vencer a guerra: ao menos, é claro, na visão de Hiroshi Hirata.

 

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E algumas fotos do volume 2:

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Ficha Técnica

Mais forte que a espada
Kairiki no Haha

Hiroshi Hirata
R$ 76,90

Editora Pipoca & Nanquim

Completo em 2 volumes

Capa cartão (com sobrecapas)
Formato: 22 x 15.8 x 4 cm
Páginas: 350 em papel pólen
Licenciante: Leed

Tradução: Drik Sada
Preparação de texto: Gabriela Kato
Letras e Diagramação: Arion Wu e Diego Rodeguero
Edição: Bruno Zago e Gabriela Kato
Assistentes: Rodrigo Guerrino e Luciane Yasawa
Logotipo: Arion Wu
Capa da edição nacional: Guilherme Barata e Bruno Zago
Impressão e acabamento: Ipsis Gráfica

 

Data de lançamento: abril de 2022

 


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Essa resenha foi feita com base em edições de Mais Forte que a Espada cedidas como material de divulgação para a imprensa pela editora Pipoca & Nanquim. Os preços de capa estão por R$76,90 cada.


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