Desgraças futuristas são sempre mais apetitosas. Não tem jeito, há algo em cenários que se passam muito tempo lá pra frente que torna a experiência de acompanhar obras mais políticas bem mais interessante, divertida e sufocante. Isso cola em séries, livros, gibis, jogos e filmes: o cyberpunk é um estilo legal demais.

E por “cyberpunk” eu me refiro ao termo (amplamente discutível) que define o subgênero da ficção-científica onde o foco está na combinação de alta tecnologia com baixa qualidade de vida, nos níveis de desintegração social causados por esse avanço tecnológico, e que geralmente destaca personagens marginalizados, oprimidos por um sistema.

Esse sistema costuma ser combatido por um ou mais personagens, e pela popularização de determinadas obras, alguns outros elementos costumam ser comuns, como a presença de uma “mulher fatal”, inspirações no cinema noir, luta da cultura contra a “máquina” opressora, e a ilustração de temas sociais sendo levados às últimas consequências (pensem em Blade Runner, filme do Ridley Scott como uma das maiores referências).

O animê mais recente a mergulhar nesse estilo leva, inclusive, ele no nome: Cyberpunk: Mercenários. O desenho tem como ponto de partida o cenário montado no jogo Cyberpunk 2077, de 2020, mas ele nos apresenta uma história inédita.

imagem: David causa problemas ao software de ensino da sua escola.

David causa problemas ao software de ensino da sua escola. | Netflix/Reprodução

Na trama, acompanhamos o protagonista David Martinez, um pobretão que, pelos esforços de sua mãe, uma enfermeira, consegue estudar numa escola de alto nível social. Porém, o moleque se sente deslocado ali, não consegue se adequar ao ambiente e sofre bullying de alunos mais ricos. As coisas mudam para pior quando sua mãe morre ao não ser atendida por um grupo médico depois de um acidente na estrada.

A perseguição em cima de David aumenta, os problemas de grana surgem. Contudo, ele descobre que sua mãe guardava um implante cibernético militar procurado que pertencia a um criminoso que provocou uma chacina noites antes. Ele o implanta em sua coluna, adquire habilidades físicas sobre-humanas e passa a fazer parte de um grupo de mercenários do mercado negro intitulados “Cyberpunks”. E daí, coisas começam a acontecer.

O estúdio Trigger é uma casa de obras acima do normal. De sua fundação, em 2011, até então, ele vem entregando filmes e séries que dosam corretamente um estilo de animação mais anárquico, despreocupado com “realismo”, com roteiros espertos, rápidos e que costumam explorar bem personagens ligeiramente inadequados em seus respectivos ambientes.

E é na figura de Hiroyuki Imaishi, um dos fundadores do estúdio, que se encontram dois de seus melhores animês: Kill la Kill (2013-2014) e Promare (2019). No primeiro, acompanhamos, com ares de paródia, a luta “shoujo magical girl” (dum jeito distorcido) de uma garota e seu uniforme escolar contra uma espécie de ditadura escolar comandada pela moda. No segundo, seguimos a luta de um grupo de bombeiros contra uma suposta célula terrorista incendiária, mas as coisas calham de não serem exatamente como imaginavam no início.

imagem: cena de Cyberpunk Mercenários

A animação do Trigger passa longe de emular qualquer realismo. | Netflix/Reprodução

Hiroyuki Imaishi tem um histórico muito bom antes mesmo da criação de seu estúdio. Seu dedo está em episódios de animações extremamente diferentes entre si, como Medabots (1999), Neon Genesis Evangelion (1995) e Fullmetal Alchemist (2003). Foi em Tengen Toppa Gurren Lagann (2007) que ele teve sua projeção ao grande público. Contudo, ainda sou apaixonado por Dead Leaves (2004), sua estreia na direção principal, um OVA esquisitíssimo, viajado e que faz questão de soar “errado” aos padrões.

Cyberpunk: Mercenários, então, é mais outra grande obra do Hiroyuki no Trigger. Soa como uma combinação perfeita de todos os envolvidos. A forma mais desprendida de convenções dele levar a história, junto do estilo mais “caricato” do estúdio, casam bem com as possibilidades exploráveis do universo do jogo. Fosse um diretor mais quadradão dentro de um estúdio mais convencional, o resultado poderia ser bem menos impactante.

O diretor entrega uma história ágil, sem barrigas, que impressiona nas cenas de ação (se preparem para vários tiroteios a cada episódio) e no quão deslumbrante pode ser uma fotografia futurista num animê. Mas ainda há espaço para desenvolvimento de personagens, com arcos completos de desgraça, glória e desgraça novamente. E isso para protagonistas e coadjuvantes.

David começa como um moleque que acredita ser “safo” por suas experiências nas ruas, mas logo descobre possuir uma inocência pra vida “real” que todo adolescente carrega. O roteiro opta por ir lapidando essa inocência em desesperança na medida em que ele modifica seu corpo com aprimoramentos mecânicos. Literalmente, perde sua humanidade a cada novo passo.

imagem: cena de Cyberpunk Mercenários

David e Lucy começar a se descobrir. | Netflix/Reprodução

Lucy, a “mulher fatal” da trama, apresenta os estereótipos desse arquétipo: linda, provocante, misteriosa, mas muito mais perigosa que os outros ao redor e sempre vários passos à frente. Poderia parar aí, mas o roteiro trabalha a relação dela e de David como uma alegoria ao mito grego de Orfeu e Eurídice. Ele como Eurídice, ela como Orfeu: após olhar e descobrir a “verdade” sobre seu amado, Lucy precisa observar ele evaporando na sua frente.

Também é muito interessante como as figuras paternas do David são trabalhadas aqui. O roteiro aproveita as ligações afetivas que ele possui com sua mãe e com o líder dos Cyberpunks, Maine, como engate para que o personagem cresça a partir de suas ausências.

As críticas ao capitalismo e às privatizações, algo basicamente inato às obras cyberpunk, são bem exploradas. Desde coisas mais simples, como o garoto que pratica bullying ter melhorias mecânicas no corpo e conseguir lutar melhor, já que tem dinheiro para pagar por isso, quanto nos momentos mais intensos. A cena deles não sendo atendidos após o acidente, pois não têm o plano de saúde devido, é de cortar o coração, de causar revolta.

Cyberpunk: Mercenários é um animê espetacular. Um possível novo clássico dentro do gênero. Não é à toa que Cyberpunk 2077 bateu 20 milhões de cópias vendidas após o lançamento da série na Netflix. Isso aqui é uma gema que vale ser vista e revisitada.


Cyberpunk: Mercenários está disponível exclusivamente via steraming pela Netflix. Os 10 episódios contam com opção de áudio original com legendas e também dublagem em português.


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