Há um padrão estrutural narrativo em mangás e animês que gosto de chamar de “Padrão Naruto”, mas que também pode ser adaptado para outros títulos mais antigos ou, simplesmente, nomeado como um “Padrão Shonen Jump” de contar histórias de ação. Não é algo oficial, não é sério, e nem deve ser citado academicamente, mas me ajuda a elaborar minhas opiniões quando assisto a determinadas obras que seguem ele.
O Padrão Naruto consiste em uma história com um protagonista “Botchan” recheado de falhas, meio brincalhão, que não é “heroico” de uma maneira padrão, e carrega um grande poder dentro de si (o Naruto e a Raposa de Nove Caudas); Esse protagonista, por motivos de trama, adentra em um ambiente de aventuras como um iniciante (ser um genin no mundo ninja) e é acompanhado por outros dois principiantes e um mestre que irá guia-los (o Time 7).
É comum que um desses outros dois novatos que acompanham o protagonista seja uma figura mandona, forte, mas que compartilha uma veia cômica junto com ele (a Sakura), enquanto o outro do trio é o mais calado em comparação, visto como frio, desenvolvido para ser o misterioso do grupo (o Sasuke); já o mestre, ele calha de, naquele microverso, ser extremamente poderoso e bem mais importante do que aparenta no início (o Kakashi).
Esse padrão pode ser aplicado a outros títulos. O que o segue mais à risca na atualidade, talvez, seja Jujutsu Kaisen (tem crítica do animê aqui e do mangá aqui). Da mesma revista de Naruto, o mangá de Gege Akutami carrega algumas das mesmas batidas também desenvolvidas pelo Masashi Kishimoto em seu gibi. O Itadori com o Sukuna dentro dele é o Naruto, a Kugisaki a Sakura, o Megumi o Sasuke, e o Gojou é o Kakashi.
Repito: não é nada sério, nada oficial. E acrescento que isso não é nada que diminua uma obra. Mas serve para comparações. E tal como Jujutsu Kaisen, Chainsaw Man é uma outra história com essas batidas narrativas. E uma obra que, em sua adaptação animada, teve contra ela, justamente… Jujutsu Kaisen. Mas já chegamos nisso.
Antes, vale falar que Chainsaw Man é um animê produzido pelo estúdio MAPPA, com direção de Ryuu Nakayama, em 12 episódios exibidos na última temporada de outono. Essa é uma adaptação do mangá de mesmo nome, escrito por Tatsuki Fujimoto (de Fire Punch), publicado atualmente na Shonen Jump+, já com 13 volumes encadernados.
Na trama, num mundo onde demônios caminham no mundo humano, Denji (o Naruto da vez) é um órfão pobretão que precisa quitar a dívida que seu pai deixou com a máfia. O moleque vive na miséria e, para pagar os bandidos, ele trabalha exterminando demônios acompanhado de Pochita (sua Raposa de Nove Caudas), um demônio motosserra que ele cuida como animal de estimação.
Certo dia, após ser atacado por um exército de zumbis e ficar à beira da morte, Denji faz um pacto com Pochita, que passa a ser seu coração e o transforma num híbrido entre humano e demônio. Ele vira o Chainsaw Man (Homem Motosserra) do título.
A história desemboca em Denji sendo levado para uma organização governamental que lida com aparições de demônios. Lá, ele é colocado numa divisão experimental, onde operam não-humanos, e fica alocado numa equipe com a agressiva Power (uma Sakura às avessas) e o soturno e caladão Hayakawa (o Sasuke). Daí em diante, o grupo vive aventuras episódicas ao lado de outros integrantes dessa divisão, e tem como um mistério maior um inimigo poderosíssimo, o Demônio da Arma.
Mencionei acima que Chainsaw Man teve contra ele Jujutsu Kaisen. Explico. Ambas as obras foram adaptadas pelo mesmo estúdio, o MAPPA, e ambas têm premissas e universos parecidos nessa linha de lidar com figuras demoníacas aterrorizantes utilizando a ultraviolência. Ocorre que as escolhas estéticas do diretor Ryuu Nakayama na animação aqui foram — sem hipérboles — extremamente parecidas com as do Sunghoo Park em Jujutsu Kaisen.
Ambos os animês têm uma cara mais “realista” nos designs de personagens, nas proporções e na fotografia. Ambos parecem tentar emular filmes de ação mais estilizados nos enquadramentos. De início, é bem difícil desassociar um desenho do outro. Contudo, conforme os episódios passam, percebemos que Chainsaw Man é um biscoito diferente no pacote do MAPPA. Parte pelo material original já ser excelente, parte pelo investimento do estúdio aumentar ainda mais o passe desse material.
A opening da série, que referencia uma porção de filmes, é espetacular. Não à toa, conseguiu até mesmo furar a bolha de fãs de animê e atingir um publico maior. E em questão de produção, as coisas ficam ainda melhor quando olhamos para as endings: a cada episódio, uma nova animação de encerramento e uma nova música original.
Poderia ser só uma perfumaria para disfarçar algo, mas o animê é tão forte quanto. O Padrão Naruto segue lá, mas o roteiro consegue desvirtuar esses clichês dando camadas de, na falta de um termo melhor, escrotidão aos personagens. A maior ambição de Denji no início é… apertar seios. Power, uma demônia, de fato, age como uma, frequentemente colocando os companheiros em perigo.
A relação da dupla vai da amizade ao interesse próprio em questão de minutos. Uma das cenas mais divertidas da temporada é quando Denji e Power, em uma missão, ao abrirem a porta do elevador, percebem que o andar do prédio que pararam está cheio de zumbis. Ela sai para o ataque, achando que ele a cobrirá. Ele, percebendo que é uma missão suicida, fecha a porta do elevador e vai para outro andar.
Hayakawa também é carregado em seus defeitos. Suas primeiras interações com Denji são literalmente violentas. Makima, a Kakashi do grupo, ao recrutar Denji, literalmente o trata como um cachorro, e deixa claro que ele está ali, basicamente, como um escravo do Estado. Conforme a trama se desenvolve, percebemos como a personagem possui camadas cada vez mais sujas, mais inescrupulosas. Mas tudo em nome de um “bem maior”.
Essa direção mais imperfeita dos personagens, e da trama num geral, distancia Chainsaw Man de seus pares. E nessa, sobra espaço pro roteiro explorar temas diversos desse jeito meio torto. Há críticas ao capitalismo e às “maneiras japonesas” de levar a vida, como o Denji precisando vender até partes do corpo para quitar uma dívida (embora seja uma dívida extraoficial, já que é com a máfia, não com uma empresa privada ou com o governo) e com a Kobeni Higashiyama tendo que trabalhar para sustentar o irmão, pois ele, supostamente, é o inteligente e talentoso da família.
A direção consegue construir uma obra tensa e afiada através de cortes certeiros na cenas, de uma edição mais apurada e de plot twists bem colocados. A cena com a Himeno tentando fazer sexo com o Denji é de engolir seco. O segmento em que o Hayakawa finalmente desembainha sua espada, mas isso não é o suficiente para derrotar o vilão, é um baque forte que desvia a rota do que achávamos que sabíamos da trama até ali.
Tem também o momento em que a Kobeni entra na luta depois dos atentados e, só então, percebemos o quanto ela é perigosa, pois a reação de susto da inimiga desvirtua de todo o resto mostrado. E quando a Makima, enfim, usa seus poderes… é uma parte inteira de se espantar.
Óbvio, não é um animê perfeito. 12 episódios não foram o suficiente para cobrir com a profundidade necessária o tanto de coisas que aconteceram no enredo. Por exemplo, o arco de treinamento do Denji e da Power com o Kishibe (o Jiraya da história) é enxuto demais para que compremos a evolução dos dois. A ausência de um momento onde o Hayakawa usa a espada dele e isso dá certo contra o inimigo antes de, de fato, ele usá-la e isso dar errado, tira um pouco do impacto. Mas são pontos negativos que não chegam a ofuscar o brilho do produto final.
Pois Chainsaw Man é um produtão pop. É um exemplar que evidencia o quanto uma boa direção pode elevar ainda mais algo que, no original, já era legal. É aquele pipocão com um apuro artístico maior que a média. Que ótimo estar vivo num presente onde a principal animação voltada a um público grande traz esse nível de qualidade. E o futuro? O futuro é… ah, vocês já sabem!
E a “polêmica” da petição?
Recentemente, repercutiu nas redes sociais um abaixo-assinado que um fã japonês iniciou, mas que definhou em irrelevância ao sequer chegar em 3 mil participações, pedindo para que o MAPPA refizesse a primeira temporada do animê, só que com outro diretor encabeçando o projeto.
Isso reflete também comentários que vêm sendo feitos por fãs do mangá desde o início do animê, que apontam que a adaptação está “séria” demais e isso desvirtua a obra do conceito original do gibi. Entre sugestões levantadas, obras mais carregadas num traço cartunesco, como as do estúdio TRIGGER, ou com mais evidência em cores e expressões, como os animês de Jojo, abarcariam melhor Chainsaw Man em sua versão animada. Num lore criado na cabeça de alguns fãs, é claro.
O comentável dessa viagem toda é que… bom, não há o que comentar sobre como seria esse animê, porque tal obra imaginária que esses fãs desejam, simplesmente, não existe. Talvez valesse, então, uma elaboração sobre o quanto expectativas específicas em adaptações de propriedades intelectuais já enormes podem estragar a experiência do espectador? Mas propriedades intelectuais não são de fãs, não são trabalhadas de modo a atender às vontades individuais dos que as consomem, sim de modo a lucrarem com um grande público. Então, seria uma discussão vazia.
O que se tira disso, do ponto de vista do tiozinho jornalista aqui, é a oportunidade de jogar luz sobre um aspecto da crítica que deveria ser seguido um pouco mais à risca: a de que não devemos julgar uma obra por o que ela poderia ser.
Filmes, séries, animês, etc., devem ser analisados a partir do que são, do que foi entregue, da execução apresentada. Qualificar, profissionalmente, Chainsaw Man como ruim tomando como ponto de comparação uma ideia de adaptação diferente que não aconteceu, uma possibilidade, algo virtual, que não existe, não faz sentido. Críticas não são sobre o que poderia ter sido, sim sobre o que há.
▶️ Confira nossa matéria especial sobre Chainsaw Man
▶️ Confira nossa entrevista com os dubladores brasileiros de Denji e Makima
Chainsaw Man foi exibido em modelo simultâneo à transmissão japonesa pela Crunchyroll, possuindo também dublagem em português — empresa fornece ao JBox um acesso à plataforma.
O mangá que inspira a trama é publicado no Brasil pela editora Panini e tem seus novos capítulos postados oficialmente em modelo simultâneo em português na MANGA Plus.
O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.