Chegamos ao fim da primeira parte de Mobile Suit Gundam: The Witch from Mercury (Kido Senshi Gundam Suisei no Majo), que começa com crime de guerra e termina com crime de guerra (se formos considerar o prólogo o começo), enquanto passa por um arco de escolinha entre isso.

Para quem estava pela primeira vez assistindo a um Gundam é uma experiência e tanto. A série passa por questões relacionadas à guerra (pelas quais a franquia é conhecida), mas também aprofunda no mundo empresarial, e sua ligação indissociável à guerra, ao menos dentro do sistema capitalista (o Delling e Prospera sintetizam isso muito bem).

Depois de uma carnificina no prólogo, somos apresentados a um mundo onde robôs gigantes Gundam são proibidos há mais de 20 anos e há “paz” — entre aspas, sim, porque está claro desde o começo que na periferia geopolítica, representada principalmente pela Terra, a guerra nunca acaba.

Nós poderíamos perfeitamente enquadrar “Espaço” e “Terra” como conceitos similares a “Ocidente” e “Oriente”, inclusive, dentro do mesmo tom da origem eugenista de tais conceitos: o Espaço representa o “avanço tecnológico e civilizatório” (e as elites sociais), como o Ocidente, e a Terra é uma mistura de “atraso social” com um grau de “coisa exótica” (evidenciada pela aparente idealização da personagem Miorine em sonhar em ir para a Terra), que é o que o Oriente originalmente representa (na verdade, de certa forma, até hoje o uso desses dois termos é associado a essas ideias).

O “tcham” é que essa comparação ainda cabe mesmo nas contradições dos termos: Mercúrio faz tecnicamente parte do Espaço, mas sociopoliticamente se enquadra em algo mais similar à Terra — assim como existem países que geograficamente se enquadrariam na porção ocidental mas não possuem o tal “desenvolvimento civilizatório” necessário para se encaixarem indiscutivelmente no termo “Ocidente”. E com isso quero dizer que Mercúrio parece uma espécie de América Latina.

imagem: suletta em witch from mercury.

Reprodução: Sunrise/CR.

Bom, vamos falar do pano de fundo geral: Suletta Mercury, que vem de Mercúrio, conseguiu uma bolsa (ou algo assim) numa escolinha — o colégio de tecnologia Asticassia — sendo o sonho da garota, que morava num “fim de mundo”, frequentar uma escola, fazer amigos, e coisas normais de adolescentes.

Nessa escola, estudam pessoas das elites, herdeiros dos maiores conglomerados de empresas. Miorine Rembran, filha do dono da maior corporação, irá se casar com o vencedor de um duelo entre mobile suits, por ordem de seu pai (e contra a vontade da menina). E Suletta, no meio de um monte de coisa, acaba caindo nesses duelos e virando a nova campeã, e o “noivo” de Miorine (a versão em japonês usa exclusivamente o termo noivo — hanamuko –, no masculino).

O problema é: Suletta pilota, sem saber, um Gundam. E isso acaba trazendo toda uma discussão da volta do uso de Gundam à tona, que resulta em Miorine criando uma empresa, GUND-ARM Inc, para pesquisar e desenvolver o GUND FORMAT, dando prioridade à “proteção das vidas” e respeitando as leis vigentes.

imagem: aerial, o gundam de suletta.

Reprodução: Sunrise/CR.

No meio disso, tem, claro, muito complô de diversos agentes, cada um seguindo seus interesses. A trama dessa parte pode ser pouco interessante para quem quer logo ver mais ação, mas um ponto muito alto da série é o desenvolvimento dos personagens.

Tem uma coisa em Witch from Mercury que é a forma como os personagens são marcados pelas suas posições sociais. Mesmo com personalidades das mais variadas, a série pincela como crenças, modos de agir, entre outros, são atravessados pela criação de cada um, levando em conta suas origens e marcas sociais.

Não estamos falando de uma forma estereotipada de mostrar ricos como mimados e pobres como revoltados, mas sim de como essas marcas se tornam evidentes, tanto de forma mais óbvia — como quando a terráquea Chuchu aponta diversos privilégios dos espacianos na escola e dá um soco na cara de uma espaciana (o ícone antifascista!) — quanto de forma mais sutil, com enquadramentos, e posições na tela, ou subtextos de diálogos e passagens.

Já que falamos em personagens, vamos comentar das duas protagonistas: a Suletta é uma pessoa com enorme dificuldade de contato social, mas a verdade é que sabemos muito pouco sobre seu passado (há teorias, no entanto). Não sabemos ainda praticamente nada sobre Mercúrio, que sequer apareceu de fato até agora (e gostaria muito de ver), mas algumas passagens apontam que a vida lá é pouco fácil. E Suletta é uma exímia duelista, o que dá a impressão que ela possui certa experiência com combates e uma formação “de soldado”.

Miorine é, sinceramente, insuportável no começo, mas ela se abre para o espectador e cresce na trama. Ainda tem seus poréns, que incluem a criação claramente hiperprotegida em certos aspectos, mas é atualmente a personagem com potencial de desenvolvimento mais interessante.

A relação entre Miorine e Suletta tem um começo bem complicado, mas vai se desenvolvendo de forma que é possível ver mudanças nas duas, embora as da Suletta talvez pareçam mais evidentes por enquanto. O penúltimo episódio é o que mais investe no ship, mas logo depois…

imagem: miorine envolta em sangue.

Reprodução: Sunrise/CR.

Também é justo mencionar Guel como um personagem que pode ainda mostrar muito. Ele entra na trama como boy lixo, mas tem uma trajetória em outro sentido. Não dá para saber, depois do último episódio, onde nosso Bob vai parar, no entanto — essa última dúvida vale ainda para a Nika. Aliás, praticamente todos os personagens que estão ao redor do círculo principal são bem trabalhados, é um grande mérito da animação.

A série segue de forma relativamente tranquila, mas o último episódio vira todas as mesas, principalmente a cena pós-créditos, que promete colocar a relação entre Miorine e Suletta em uma nova direção. E quem mais pode lucrar com isso é justamente quem está por trás do caos atual. Resta saber onde tudo vai dar, mas uma coisa parece certa: agora sim, é guerra — só falta saber exatamente de quem contra quem.


Gundam: Witch from Mercury foi exibido em modelo simultâneo à transmissão japonesa pela Crunchyroll, apenas com legendas — empresa fornece ao JBox um acesso à plataforma. A segunda temporada está prevista para abril.


O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.