Jiro Taniguchi é desses autores cujo nome é capaz de evocar uma imagem. O mangaká possui uma poética que dificilmente passa despercebida por quem quer que seja. Seus trabalhos, retratos singelos do cotidiano de homens e mulheres comuns, são dignos de um mestre do gênero slice-of-life. Exemplo bem acabado dessa forma de contar histórias, Um bairro distante (Haruka na Machi e), lançado no ano passado pela Pipoca & Nanquim, é decerto um dos momentos altos de sua vasta obra.

O enredo acompanha Hiroshi Nakahara, que retorna por engano para sua cidade natal após uma viagem de negócios. Num ímpeto de curiosidade e nostalgia, o rapaz decide dar um passeio pelas ruas do bairro em que morava, aproveitando também para visitar o túmulo da mãe. No cemitério, um evento sobrenatural: Hiroshi é tomado por um momento de perda de consciência e, de repente, percebe que seu corpo rejuvenesceu alguns anos, embora tenha preservado todas as suas memórias de adulto. Incrédulo com o ocorrido, o — agora — garoto nota que não apenas ele, mas o ambiente ao seu redor também mudou.

Hiroshi decide então dar outra volta pelo bairro em que vivia, e vem enfim a constatação: não somente o seu corpo voltou à infância, mas o próprio tempo regrediu com ele.

Dessa forma, o protagonista passa a reviver momentos de sua infância com personagens que fizeram parte dela. A mãe ainda viva, o pai ainda presente e os irmãos, colegas de escola, todos estavam ali do mesmo jeito em que estiveram no passado. A narrativa, portanto, persegue um topos bastante comum em histórias de diversos gêneros: o regresso ao passado e a consequente oportunidade de alterar o futuro.

Imagem: Páginas coloridas de Um Bairro Distante

Páginas coloridas. | Foto: Rafael Brito/JBox

Essa é a interrogação que ocupa a mente de Hiroshi durante toda a trama. Ela é quem ora motiva, ora desmotiva algumas de suas ações. E sua pertinência está diretamente associada ao abandono do pai, que larga a mulher e os filhos e parte sem deixar notícia. Cabia a Hiroshi, sabendo que isso iria acontecer, pensar numa maneira de evitar isso.

O maior mérito de Taniguchi neste quadrinho é a maneira como esse enredo, de tom profundamente triste, é trabalhado. As páginas de Um bairro distante contrapõem à presente atmosfera de melancolia cenas de verdadeira leveza, dando forma a uma narrativa equilibrada. Se pudesse resumir com um adjetivo, diria que este é um mangá bonito.

A beleza reside sobretudo nos diálogos, sempre carregados de reflexão — para os personagens e para o leitor — , mas sem nenhum espaço para pieguice. A dosagem, como disse, é perfeita, de modo que não há exacerbação em nenhuma cena. No capítulo em que Hiroshi vai à praia com amigos da escola não esquecemos a sua inquietação principal. Nos jantares com a família, a preocupação com o futuro sumiço do pai persiste no fundo da alma do garoto.

Apesar de contar com outros personagens bastante interessantes, como a Nagase, com quem Hiroshi acaba vivendo um idílio amoroso, e o aspirante a mangaká Shimada, é em Hiroshi que se concentra a potência da narrativa. E aqui vale ressaltar o trabalho de Taniguchi na expressão de seus personagens. É no rosto do protagonista que está estampado todo o drama que envolve a obra.

Imagem: Páginas coloridas de Um Bairro Distante

Páginas coloridas. | Foto: Rafael Brito/JBox

O fato da narrativa ser bastante centrada no protagonista não é um problema. Traz, na verdade, um ganho de profundidade que seria pouco provável num mangá curto caso o autor optasse por tentar desenvolver, em pouco tempo, todas as personagens. Taniguchi trabalha essencialmente em torno de Hiroshi, de Nagase e do chefe da família Nakahara. A mãe do protagonista também ganha alguma atenção, mas como refração do que será necessário para explicar a condição do pai.

Para não cair em spoiler, evitarei dar detalhes do que acontece na história, mas permito-me dizer que o final é totalmente satisfatório. Não poderia imaginar cenas tão potentes quanto às que Taniguchi nos reserva no momento chave da narrativa, quando é chegado o dia em que o pai de Hiroshi iria partir. Como em todo o mangá, os diálogos aparecem como forma de mobilizar e amadurecer as personagens envolvidas, e o diálogo que o protagonista trava com o pai traz algo que o leitor talvez não esperasse, mas precisava perceber.

Nesse ponto, há o que eu diria ser um pequeno excesso. Há, ao final, um certo didatismo que impede o leitor de fazer por si mesmo o movimento de interpretação da história, quando é dada de bandeja uma comparação entre a situação do pai de Hiroshi e outra que vem à tona no final. Não traz prejuízo para a leitura, mas honestamente preferiria que esse salto interpretativo estivesse ali, para ser feito, mas como tarefa do leitor.

Imagem: Páginas internas de Um Bairro Distante

Páginas internas. | Foto: Rafael Brito/JBox

A edição da Pipoca & Nanquim é não menos que primorosa. O trabalho editorial é impecável e potencializa a arte de Jiro Taniguchi, uma das minhas preferidas dentre todos os mangakás. O tom do papel utilizado casa perfeitamente com a precisão do traço cujos cenários, pra mim o grande diferencial da obra de Taniguchi, são ao mesmo tempo bastante detalhados e nada agressivos, feito que poucos têm a felicidade de produzir.

A tradução de Drik Sada traz a fluidez elogiada de sempre, mas o posfácio da tradutora me causou uma curiosidade. Segundo ela, o mangá é escrito de forma a apresentar uma contraposição no âmbito da linguagem, algo bastante interessante. Hiroshi, como volta ao passado mas permanece com as memórias do presente, é falante de um dialeto japonês padrão, enquanto as personagens de Tottori, o bairro distante, compartilham uma outra forma de se falar o idioma. Essa diferença, de acordo com Drik Sada, é impossível de traduzir, o que produz certo ruído em cenas em que o jeito de falar de Hiroshi é colocado em questão por seus interlocutores, já que na tradução não dá pra notar esse estranhamento.

Imagem: Páginas com nota de Drik Sada de Um Bairro Distante

Nota da tradutora. | Foto: Rafael Brito/JBox

A alternativa encontrada pela editora foi utilizar uma fonte diferente para cada um dos dialetos, mas elas são tão parecidas que, depois de um tempo, mal dá para perceber. Como não entendo japonês, não tenho como dizer se haveria outra solução possível, mas reitero o fato de ter ficado curioso com esse quebra-cabeças linguístico feito pelo Taniguchi.

Em linhas gerais, Um bairro distante é uma obra que funciona tanto para aqueles que já são fãs do autor, quanto para quem por ventura não se convenceu ao ler trabalhos mais contemplativos como O homem que passeia. Nela Taniguchi entrega não apenas seu imenso talento de paisagista, visto nele como em nenhum outro artista do gênero, mas também uma rara sensibilidade para contar histórias — não à toa foi o trabalho responsável por inserir o autor na seleta galeria de mangakás a receber um Angoulême. Possivelmente o meu mangá favorito de 2022.


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Volume Único


Ficha Técnica

imagem: capa nacional de um bairro distante.Um bairro distante
Haruka no Machi e

Jiro Taniguchi
R$ 82,90

Editora Pipoca & Nanquim

Volume único

Capa cartão (com sobrecapas)
Formato: 15.5 x 5 x 22.7 cm
Páginas: 412 em papel pólen bold
Licenciante: Leed

Tradução: Drik Sada
Preparação de texto: Gabriela Kato
Letras e Diagramação: Danilo de Assis
Edição: Bruno Zago e Gabriela Kato
Assistentes: Rodrigo Guerrino e Luciane Yasawa
Capa da edição nacional: Guilherme Barata e Bruno Zago
Impressão e acabamento: Ipsis Gráfica

 

Data de lançamento: junho de 2022


Esta resenha foi feita com base em edição de Um Bairro Distante cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora Pipoca & Nanquim.


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