Vergonha minha: nunca tinha lido nada do Junji Ito. Muita coisa do mangaká vem sendo publicada no Brasil nos últimos anos, e colegas aqui do site já haviam escrito sobre algumas delas, como Tomie, A Sala de Aula que Derreteu e a coletânea Calafrios. Só agora, com Sensor, tive o meu primeiro contato com sua obra. Talvez não retorne para mais, mas ao menos pude marcar esse “xis” em minha lista de “obrigações” como admirador de mangás.
Pois Sensor tem defeitos demais para ser gostável de verdade. O tema é interessante, as referências são boas, e as ideias de como utilizá-las são criativas. Só que tudo é mal explorado através de pequenas histórias que não se aprofundam o suficiente, que soam forçadas em suas conexões ao enredo principal e que parecem mal contadas pela narrativa fraca do autor.
Seriado entre 2018 e 2019 na revista shoujo Nemuki+, da editora Asahi Sonorama, Sensor chegou ao Brasil em volume único pela editora Pipoca e Nanquim em novembro de 2022. Na trama, majoritariamente contada pelo ponto de vista do jornalista Wataru Tsuchiyado, acompanhamos uma série de eventos que envolvem a misteriosa jovem de cabelos dourados Kyoko Byakuya, uma aldeia “abençoada” por fios expelidos por um vulcão, duas entidades cósmicas antiquíssimas, um culto criado a partir de tais acontecimentos e… cristianismo.
Evitarei entrar em mais detalhes para não estragar surpresas, mas basta saber que essa é uma história sobre obsessões. Por motivos distintos, Kyoko desperta a obsessão de Wataru e de outras pessoas que entram em contato com ela. E essas obsessões carregam os personagens — e a trama — numa espiral de loucura sobrenatural cada vez mais intensa.
O resultado poderia ser excelente, visto o talento irrefreável de Junji Ito com o lápis e a possível inspiração na escrita do autor H. P. Lovecraft que escorre na trama. Tal como Juan Giménez, Milo Manara e outros medalhões, Ito é desses artistas que conseguem espremer o máximo de intensidade em seus traços. É impossível sair incólume de seus desenhos. Há uma cena em especial, onde um grupo grande de personagens literalmente derrete após um ritual de meditação, que é de arrancar caretas em nojo.
Também é impossível não se lembrar do estilo “lovecraftiano” enquanto passamos as páginas. São vários os elementos em comum com os de histórias do autor norte-americano, que vão das temáticas abordadas ao modo como elas são contadas. Há aquilo de horror cósmico com criaturas muito antigas, que sempre estiveram lá, de poderes descomunais, praticamente indescritíveis, e que levam os humanos que têm contato com tamanha grandiosidade à loucura.
E parte do mangá é montado por relatos do Wataru, o que nos dá a entender que essa é uma história subjetiva, vista como um documentário a partir de seu ponto de vista. O que também nos remete a Lovecraft, que tem em seu repertório uma porção de contos onde o mote é, justamente, acompanharmos relatos de acontecimentos devastadores, indescritíveis em sua totalidade, já que são vivenciados por humanos, que não compreendem exatamente as criaturas com que tiveram contato.
Mas Junji Ito está longe de escrever como um H. P. Lovecraft, e é nessa distância de força narrativa que mora o maior defeito de Sensor. A história parece ligeiramente desleixada.
O jeito descritivo dela ser um jornalista narrando acontecimentos torna parte da experiência redundante, já que algumas das coisas escritas em quadros, literalmente, aparecem nos desenhos. Por exemplo, em dada passagem, Wataru descreve que a energia de um ritual que estava ocorrendo se transformou em fogo, que incendiou o local onde eles estavam. Desenhado nessa mesma página, vemos exatamente isso: um incêndio se formando e queimando o local.
Páginas depois, ele narra: “Quando me dei conta, estávamos andando por um túnel escuro”, se referindo à Kyoko e a ele mesmo. E nesse quadro, vemos ele e Kyoko andando num túnel escuro. Numa história mais para frente, o autor utiliza esse mesmo artifício, mas agora representado nos pensamentos de Wataru. A página abre com uma cena da Kyoko de suicidando ao pular de um penhasco. Nos balões de Wataru: “Foi um sonho… da Kyoko Byakuya cometendo suicídio…?”
A isso, se somam outros problemas. São só sete capítulos para compor uma história que, talvez, necessitasse de mais espaço para desenvolvimento. Quatro desses capítulos são “casos isolados” que, de alguma forma, se juntarão ao enredo principal no final. Cada um com “monstro da semana” próprio, que exige espaço para que suas regras sejam apresentadas e ocorra um arco de início, meio e fim. E em alguns dos capítulos, ainda é necessário retomar acontecimentos, o que ocupa ainda mais espaço.
Mas Ito não consegue, em tão poucas páginas, se aprofundar o suficiente para que essas histórias tenham um desfecho realmente marcante. Elas acabam quase que abruptamente. E a impressão que fica é que gastamos mais esforço de leitura em exposições iniciais do que, efetivamente, em acompanhar o desenrolar de uma trama. É difícil até mesmo se importar com os personagens secundários que são introduzidos, pois os arcos deles são pílulas de acontecimentos.
Fica pior quando descobrimos, mais pro final, que as tramas episódicas de horror nas quais esses personagens secundários estavam inseridos, na verdade, eram uma desculpa para que eles fossem usados no plot final da história. Os horrores que eles passaram não são serviram para tocar a história pra frente, apenas o contato que eles tiveram com a Kyoko no desenrolar de seus fios. São conexões narrativas que não soam tão orgânicas.
Ainda mais esquisito é acompanhar algumas “sacadas” que o autor tem dentro do corpo do texto. Num dos episódios, há uma “nuvem de conhecimento” que percorre o espaço e guarda informações de todo o universo. Ao se deparar com essa nuvem, Ito coloca na boca de Wataru o seguinte texto: “Imagine só, dados na nuvem, mas em vez de virtual, é real!”
Contudo, não é uma obra inteiramente ruim em questão de roteiro. O primeiro capítulo, que conta como Kyoko se tornou uma criatura mística, é bem escrito. Há textos expositivos, mas que passam por ser o começo da história. E apesar deles, a trama consegue ser bem tensa e esquisita na confusão na qual utilizam a personagem como um avatar para nós, leitores, nos deixarmos levar no enredo.
Além do primeiro, o último capítulo, que leva o ponto de vista para centenas de anos no passado, no Japão feudal proibitivo ao cristianismo, também capricha na tensão. Ele utiliza dum jeito interessante um contexto histórico como engate para uma situação de horror cósmico. É um começo ótimo e um final interessante. O problema é o caminho entre um e outro. Pelo menos é bem desenhado.
Me utilizando como cobaia, Sensor talvez não seja a melhor maneira de começar a se aventurar pela obra de Junji Ito. O estilo episódico dele de contar histórias, que já vi sendo elogiado em Tomie, Uzumaki e outros títulos, não me parece ser o ideal para o que é proposto aqui. As tramas paralelas não contribuem o suficiente com o fio narrativo principal para terem importância, e as escolhas narrativas redundantes mais atrapalham que atribuem estilo. Bola fora.
Talvez eu devesse ter começado por Frankenstein? Ou por Tomie? Digam pro Lucas me emprestar Tomie…
Fotos da edição brasileira
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Esta resenha foi feita com base em edição de Sensor cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora Pipoca & Nanquim.
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