Quando olhamos em retrocesso para qualquer forma de arte, é comum que existam grandes nomes na história de cada uma. Quando se fala em artes plásticas, é fácil lembrar de nomes como Van Gogh ou Picasso. Quando se fala de cinema, Kubrick é um que facilmente vem à mente. Quando se fala de mangás, inegavelmente Osamu Tezuka está lá no topo.
Mas, também em todas as formas de artes, existem aqueles nomes que, apesar de terem sido extremamente importantes, acabam sendo esquecidos (ou talvez forçados a serem esquecidos). Na literatura brasileira existe um grande exemplo disso quando se pensa na obra de Carolina de Jesus, uma autora negra que apenas recentemente começou a ser resgatada. De forma parecida, nos mangás temos Kuniko Tsurita, autora que, por muito tempo, acabou sendo ignorada pelo cânone da mídia.
No Brasil, a variedade de mangás que temos no mercado bem estreita, mas a Veneta se dedicou ao trabalho de trazer a obra de Tsurita, com A Tragédia da Princesa Rokunomiya (na verdade, trata-se da coletânea conhecida no Japão como FLIGHT), uma coleção de quase 30 histórias de toda a carreira da autora.
A Tragédia da Princesa Rokunomiya mostra não só um retrato do Japão durante os anos 60, mas também da própria vida da autora. Uma parte considerável dos contos da coletânea tem teor autobiográfico, mostrando as dificuldades da vida como mangaká, passando pelos momentos boêmios e, por fim, chegando nos momentos finais da sua vida, quando a autora, hospitalizada com lúpus, ainda continuava a produzir mangás.
Em contos como “Esta História, Vida é Luta?” e “Crise”, Tsurita mostra um pouco das dificuldades de ser artista, além de dialogar diretamente com mangakás da época, fazendo referências diretas à nomes como Shigeru Mizuki e Sanpei Shirato. Esses retratos eram apenas uma pequena amostra do tipo de história que a artista desejava fazer, para um público mais adulto.
Em um período em que, se tivessem a oportunidade, as mulheres eram normalmente empurradas para produzir para revistas shoujo — algo que Tsurita até tentou, mas considerou insuportável —, a autora visava trabalhar no gekigá e, por mais que tenha passado por dificuldades, conseguiu ser um dos nomes importantes da revista Garo, considerada a casa mais importante de histórias desse tipo por muito tempo.
Lembrando que revistas shoujo alcançaram, sim, temáticas mais maduras eventualmente, contudo, na época de Tsurita, ainda não existia uma amplitude editorial maior na demografia, sem falar que até pouco tempo antes, mesmo os shoujo eram produzidos majoritariamente por homens.
Entre “A Tragédia da Princesa Rokunomiya” e “Madame Haruko”, Tsurita, além de mostrar um pouco de sua vida boêmia, mostra também um pouco da juventudade marginalizada japonesa, dentro e fora da classe artística. Nessas histórias, nas quais pesa bastante a mão no humor, ela traz os perrengues do início da vida adulta, mostrando personagens buscando bicos diferentes para conseguir dinheiro, além de fazer uma ótima caricatura de que sonhar em ter uma carreira como artista era, meio que literalmente, uma coisa de louco.
No entanto, as críticas à sociedade japonesa não foram apenas humorísticas. Em “65121320262719” e “Calamidade”, Tsurita pincela de forma mais séria sobre os movimentos estudantis de esquerda durante os anos 60, quando aconteceram manifestações e ocupações antiguerra que foram fortemente reprimidas pela polícia japonesa. Os contos de Tsurita mostram justamente essa repressão policial, revelando um aspecto quase ditatorial de punição, algo que, de fato, tinha reflexo na realidade, já que a própria autora abrigou manifestantes durante o período e participou das conspirações das manifestações.
Nos anos finais de sua obra, Tsurita voltou a abraçar o aspecto mais surrealista que tentava produzir bem no início de sua carreira. Usando o acúmulo de conhecimento que conseguiu, ela usou o absurdo para retratar histórias que não fugiam de outras produções anteriores, com críticas políticas enquanto pincelava também sobre sua vida, porém tudo apresentado de forma mais requintada.
A própria vida da autora, inclusive, passou a ser uma temática cada vez mais recorrente. Desde o início de sua carreira, ela falava de sua amizade vitalícia com Takako Fujino, porém começou a dar espaço também para Naoyuki Takahashi, pessoa com quem casou e fazia questão demonstrar dentro de sua obra como amava. Histórias como “Max”, “Toc, Toc, Irmã…” e “Flight” são grandes exemplos dessa conexão de Tsurita com sua amiga e seu marido.
Tsurita também falou sobre sua convivência com a lúpus, algo que se sobressaiu em “A Jornada de Yuko” e “Frio Polar”, histórias que mostram de forma vívida o sofrimento que a doença pode proporcionar, sem deixar de mostrar a importância que foi ter alguém em sua vida nos momentos de dor que, infelizmente, levaram à morte da autora com apenas 37 anos.
A obra de Tsurita, além da variedade temática, contou também com uma variedade de estilos de arte. A autora viveu entre uma balança entre o experimental e o cartunesco, cada um se sobressaindo em momentos diferentes de sua vida.
Em certo momento, ela usa uma arte um tanto mais “madura” e tradicional e, nas suas produções finais, ela aproveita para experimentar novamente dentro do surrealismo. Outro ponto de destaque em sua carreira foi quando estava desistindo dos quadrinhos e tentou investir nos livros ilustrados, retratos que foram adaptados para mangá em “A Serpente Marinha e as Sete Estrelas da Ursa Maior” e “R”.
Além da coletânea de histórias de toda a carreira de Tsurita, a edição brasileira de A Tragédia da Princesa Rokunomiya acompanha um posfácio extremamente informativo que não só fala da vida da autora, mas também de como ela foi recebida pelo público e crítica da época, mostrando como ela precisou lidar com as duras críticas e dificuldades para publicar mangás em um meio majoritariamente tomado por homens.
A edição da Veneta conta também com uma nota especial escrita por Naoyuki Takahashi, viúvo de Tsurita. Na curta mensagem, Takahashi fala que a esposa tinha várias fotos de Brasília e sempre a admirava como uma cidade futurista. Ele também fala sobre a vontade que Tsurita tinha de visitar o Mato Grosso e diz estar feliz pelo público brasileiro finalmente poder ter contato com a obra de sua falecida esposa.
Toda a coletânea de A Tragédia da Princesa Rokunomiya transborda bastante humanidade. Não são histórias feitas para se debulhar em lágrimas e, mesmo as de comédia, não são feitas para rir. São retratos simples sobre a vida em vários aspectos, produzidos pela própria pessoa que viveu essa variedade. É uma crítica importante ao mundo e um retrato de como alguém lutou para viver e sobreviver. É uma obra que transborda pluralidade. É uma carreira que não pode ser perdida e tem obrigatoriedade de ser observada por qualquer fã de quadrinhos como um todo.
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Essa resenha foi feita com base na edição cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora Veneta.
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