Banana Yoshimoto é, hoje em dia, um nome conhecido da literatura japonesa. Muito lida dentro e fora do Japão, ela acabou por se tornar uma das grandes representantes da literatura de autoria feminina contemporânea. Por esse motivo, seu romance de estreia é uma ótima obra para se relembrar em pleno 8 de Março.

imagem: capa do livro Kitchen

Edição brasileira de ‘Kitchen’. | Imagem: Divulgação

Publicado no Japão em 1989, Kitchen é o primeiro romance de Banana Yoshimoto. O livro ficou muito popular e logo ganhou o mundo, sendo traduzido em mais de vinte países. O romance chegou a ser publicado no Brasil pela editora Nova Fronteira, mas, infelizmente, hoje já não é mais editado.

Narrado em primeira pessoa, Kitchen conta a história de Mikage, uma jovem órfã que têm uma relação muito especial com cozinhas. Migake perdeu os pais muito pequena, tendo sido criada pelos avós. Quando ela entra no colegial seu avô morre e, anos depois, já na idade universitária, chega a vez de sua avó falecer. Assim, Mikage se vê órfã uma segunda vez. No livro, a protagonista aprende como superar o luto e, no processo, acaba criando outros laços familiares.

O romance de Banana começa com uma frase um tanto inusitada, mas que apresenta muito bem a importante relação que Mikage terá com um cômodo específico das casas: “O lugar que eu mais gosto neste mundo é a cozinha”.

Talvez pareça um pouco estranho um livro escrito por uma mulher e que acompanha uma jovem protagonista feminina começar justamente com a personagem declarando seu apreço pela cozinha.

Se você pensar que durante muitos anos a sociedade japonesa teve papéis de gênero bem definidos e que, de acordo com o modelo de família nuclear, a mulher deveria ficar em casa cuidando dos filhos enquanto o marido se encarregava do trabalho e da política, o início do livro parece ainda mais inusitado.

Entretanto, Kitchen não está aí para associar mulheres a cozinhas a fim de reforçar alguma lógica patriarcal: o que a Banana Yoshimoto faz é enxergar a cozinha como um local onde se prepara a comida e expandir o significado desse cômodo da casa, pois o ato de cozinhar e comer pode estar envolto em um profundo sentimento de afeto.

imagem: pôster do filme chinês Kitchen

Pôster da adaptação cinematográfica de 1997, dirigida por Yim Ho e produzida em Hong Kong. | Imagem: Reprodução

Normalmente, nós não pensamos muito sobre a relação entre comida e afeto, mas é inegável que essas duas coisas podem ser facilmente associadas. O gosto da comida, seu cheiro e seu preparo são por vezes verdadeiras formas de constituição de memória. Muitos de nós nos lembramos de uma comida específica da avó ou do tempero do feijão da mãe, e ao nos depararmos com algo que associemos a essas lembranças, somos rapidamente transportados para essas memórias ou atingidos por sentimentos em relação a elas.

A comida é também uma importante marca cultural, por isso famílias de imigrantes conservam certos modos de cozinhar alguns alimentos ou preparam especificamente certas comidas, nem que seja só em datas comemorativas. O alimento e próprio preparo dele trazem em si essa sensação de familiaridade e aconchego, em outras palavras, afeto.

E é na cozinha onde tudo isso acontece. É na cozinha que as comidas são preparadas. É na cozinha que nós comemos. É, portanto, a cozinha o espaço no qual essas relações de afeto são construídas. Mikage tem uma relação muito especial com a cozinha e é graças também à cozinha que ela e irá construir uma relação muito especial com outras duas personagens.

Sozinha após a morte dos avós, Mikage acaba indo morar com um amigo de sua recém falecida avó. Yuichi mora sozinho com sua mãe Eriko e é ele próprio quem convida Mikage para morar com eles. Juntos, os três desenvolvem lentamente uma relação de carinho mútuo, se tornando uma verdadeira família. O que os une não são laços de sangue, mas laços de afeto.

É durante o processo de construção dessa relação que Mikage descobre que Eriko é uma mulher trans. A informação vem à tona em uma conversa entre Mikage e Yuichi, no qual ele conta sobre a transição de sua mãe. Esse é o único momento do livro que se discute e identidade de gênero da personagem. Antes e depois dessa conversa Eriko é tratada simplesmente pelo que ela é: uma mãe, uma mulher.

imagem: capa americana do livro

Capa de uma publicação americana de ‘Kitchen’. | Imagem: Divulgação

Kitchen é o primeiro romance publicado no Japão a ter uma mulher transgênero. A personagem é apresentada de maneira sensível e respeitosa. Eriko é descrita como uma mulher muito bonita, uma característica que zilhões de vezes foi atribuída a mulheres cis. Desse modo, a narrativa não cria nenhum tipo de diferenciação na forma como Eriko é retratada. Ela é uma mulher, ponto.

Além disso, sua existência não está deliberadamente atrelada ao sofrimento ou a ser uma personagem vítima de transfobia. Ao decorrer da narrativa ela até passa por uma situação de violência, mas a função de Eriko na história não é só ser alvo desse tipo de ação.

A presença de Eriko no romance, bem como a própria protagonista, dão uma camada a mais para Kitchen. A obra da Banana Yoshimoto trata de luto, de afeto e de família, mas ela também tem um impacto específico no que podemos chamar de “representação de mulheres”. A história de Mikage não gira em torno de encontrar um namorado, viver um romance ou se casar.

O foco da narrativa é a superação do luto e a construção de uma família com uma configuração não necessariamente tradicional. Hoje em dia isso pode parecer trivial, mas em 1989 não era todo dia que uma mulher não se casava numa história. Não abordar romance é, nesse sentido, uma quebra de padrão.

imagem: foto de Banana Yoshimoto

Banana Yoshimoto. | Foto: Reprodução

Ao mesmo tempo, Eriko representa uma outra forma de viver a mulheridade. Ela não foi designada como mulher quando nasceu, mas ela é uma mulher. Esse fato nos permite pensar que existem várias formas de ser mulher.

Talvez seja isso que torne as histórias da Banana tão populares e principalmente tão populares com mulheres. Kitchen fala sobre luto, perda e família, mas ele também traz mulheres representadas de uma maneira que dialoga muito com os debates contemporâneos sobre mulheridade e, mais do que isso, de uma forma que o tema não fique restrito apenas ao Japão.

Se você é uma garota é muito possível que você se identifique em algum nível com essa história, ainda que você não seja uma mulher japonesa.

Há quem diga que a literatura tem um potencial universalizante. E também há quem discorde. De qualquer forma, o fato é que a literatura japonesa contemporânea tem o intuito de romper fronteiras: falar de Japão e ao mesmo tempo falar de temas que perpassam as sociedades atuais.

Portanto, neste 8 de Março somos todos convidados a adentrar a cozinha de Banana Yoshimoto e nos sentarmos à mesa com ela.


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