Durante uma viagem ao Japão, tive a oportunidade de assistir ao kabuki de Final Fantasy X, em cartaz por lá de 4 de março até 12 de abril de 2023. Nunca tinha visto uma peça de kabuki, apenas alguns trechos soltos no YouTube e, do que já havia visto, não entendia muita coisa.

imagem: foto de poster da peça no teatro.

Foto: Laura Gassert/JBox.

Antes de mais nada… vamos falar o que é Final Fantasy X, talvez a parte mais difícil do texto porque explicar FF X é difícil. Esse jogo de 2001 traz Tidus, o grande jogador de Blitzball (esporte fictício) de Zanarkand, o Messi de sua época.

Porém um dia, logo após uma partida, ele é atacado por um monstrengo chamado Sin e acorda em um outro mundo, Spira… ou quase isso. Tidus logo descobre que acabou viajando mil anos para futuro, onde Sin é um grande perigo que assola a humanidade e todos os seres vivos, causando desastres aqui e ali.

Ele acaba embarcando numa viagem com Yuna, uma sacerdotisa que pretende destruir Sin e trazer paz ao povo, e os guardiões de Yuna — e vira ele mesmo um guardião na peregrinação dela (tem mais detalhes do jogo ao fim do post). Se você sentiu uma pitada de romance no ar, esse é um elemento essencial do game: além de um RPG de batalhas e aventura, é uma grande novela de romance dramático adolescente, que compensa até os momentos nos quais a narrativa não faz muito sentido lógico.

E é esse melodrama que foi levado para o kabuki. Uma peça de Final Fantasy X deve ter muitas diferenças em relação a uma peça tradicional de kabuki, e uma já estava bem clara: a linguagem. No teatro kabuki, muitas peças utilizam uma linguagem mais antiga, mais, digamos, “histórica” (?), então mesmo falantes fluentes de japonês por vezes têm dificuldade de compreender o que está sendo dito.

Isso não ocorre na peça de FF-X, o vocabulário usado segue a forma que os personagens falam no jogo, então é bem parecido com o japonês que ouvimos em mídias mais populares, como animês e doramas. Sendo assim, uma pessoa com alguma fluência consegue entender a peça — e suponho que mesmo quem não tem fluência mas conhece a trama do jogo também seja capaz de se localizar bem.

A adaptação é linda, muito acima de qualquer expectativa, e está todo o coração do jogo lá, desde a narrativa até à trilha sonora. Confesso, no entanto, que como alguém que nunca viu kabuki antes, não sabia bem o que esperar. Mas foi, definitivamente, incrível.

O teatro — IHI Stage Around Tokyo — é sensacional. A plateia se move e isso acrescenta muito à experiência. Além do palco (ou plateia) móvel, por vezes a peça abusava de outros recursos, como um telão, no qual são mostrados alguns flashbacks e outras cenas.

imagem: foto do teatro da peça.

Foto: Laura Gassert/JBox.

A expressividade corporal dos atores no kabuki é muito bacana — ver pessoalmente é muito diferente da experiência em vídeo. O mesmo vale para a “trilha sonora”, digamos assim, os sons e instrumentos que aparecem ao longo da peça. Estar ali assistindo é uma sensação indescritível.

Com umas 7 horas (!) de peça (e mais os intervalos!), a adaptação consegue abarcar todo o grosso da narrativa principal, se preocupando em fazer apresentações dos conceitos básicos para quem não conhece o jogo, sendo uma atração para todas as idades.

Fica claro que o roteiro foi escrito com muito cuidado, se esforçando ao máximo para trazer a série para um novo formato, mas sem esquecer que um teatro não consegue mostrar as coisas da mesma forma que um jogo — houve certamente muito estudo do ator Kikunosuke Onoe V, que também interpreta Tidus na peça, para escrever algo tão satisfatório.

Também destaco Yonekichi Nakamura V, que encarna Yuna nesta adaptação. Vale pontuar que apenas homens atuam em kabuki, ao menos desde o período Edo, de 1603 a 1867.

Um dos detalhes mais divertidos é o de que, quando havia uma cena com vários personagens no palco, mas apenas dois ou três interagindo, os outros ficavam se movimentando, ou “conversando” de forma que lembrava muito os NPCs do jogo. São essas coisas bobas que trazem um toque de magia à apresentação.

É uma experiência imersiva, capaz de fazer mesmo os mais fanáticos reviverem a história de uma forma nova, e se emocionarem com ela como se fosse a primeira vez.  Além das atuações em palco, havia algumas cenas mostradas num telão, muitas vezes feitas em CG, ao estilo do jogo, mas com o “bonecos” tendo os rostos dos atores. Enfim, foi um espetáculo, sem tirar nem pôr.

Final Fantasy X é uma história muito intensa, que só poderia caber num espetáculo de horas e horas, e é uma pena que no Brasil esse tipo de oportunidade, de experienciar alguma série querida no formato de teatro, seja tão rara para as mídias japonesas (mas tivemos a peça de Death Note!), porque é só ao entrar num teatro e ver um jogo sendo recontado de maneira inusitada, mas belíssima, que dá para perceber o quanto esse tipo de experiência faz falta.

A última observação a ser feita é a de que a Yuna segue sendo o maior ícone da história, seja qual for o formato. Torcemos pelo kabuki do FF X-2.

PS: Se um dia a improvável probabilidade dessa peça ser exibida de alguma forma oficial por aqui se concretizar, vou ficar mais que feliz em estar errada.


O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.