Dando continuidade aos eventos que contribuíram para a formação do mercado de consumo da cultura pop japonesa no Brasil, falarei um pouco sobre o que chamo de Segundo Impacto dentro desse tema.

As produções tokusatsu viraram “carne de vaca” na TV brasileira no começo dos anos 1990 e já não tinham mais o mesmo apelo comercial. Roubando atenção dos heróis japoneses, uma turminha vinda do México incomodou até mesmo a campeã inabalável de audiência entre 1991 e 1992: estou me referindo à primeira versão da novela infantil Carrossel, que foi ao ar pelo SBT. Já entre 1992 e 1993 a coqueluche entre o público infantil atendia pelo nome de Família Dinossauro.

Chegamos em 1994 e uma lacuna existia para ser preenchida pela audiência infantil. Na Europa e no México, um desenho animado um tanto controverso (por conta da violência gráfica) gerava cifras milionárias no mercado de licenciamento, associadas a elevados índices de audiência.

Poster de divulgação do anos de 1986 de Saint Seiya / Os Cavaleiros do Zodíaco

Saint Seiya é violento sim, mas tem história afinal. | Imagem: Divulgação/Toei Animation

Após estrear em alguns países latino-americanos, a distribuidora Samtoy chega ao nosso país, ainda em 1993, com um clipe de 15 minutos de “Los Caballeros del Zodiaco” e oferece para as duas maiores emissoras do país na época — Globo e SBT. As notícias da crise financeira da Manchete já eram públicas desde meados de 1992, então mesmo já tendo tradição em apresentar desenhos e séries japonesas, não foi a primeira (ou segunda) escolha da Samtoy. Depois da recusa da Globo, SBT e de outras emissoras, restou o finado canal carioca como última opção mesmo.

O que se conta é que, após a rejeição ao material apresentado (o tal clipe de 15 minutos, que supostamente destacava as partes mais sanguinolentas da série), o chefe da divisão de cinema da emissora na época, Eduardo Miranda, solicitou uma fita com os 5 primeiros episódios do animê para reavaliar a decisão dos engravatados do canal. Em um momento no qual a emissora buscava algo para reerguer sua combalida audiência, Miranda fez uma “aposta” e, em troca de um lote de 52 episódios do programa, fechou um acordo para dar à Samtoy intervalos comerciais na programação como forma de “pagamento”.

E assim a Samtoy construiu talvez o case de maior sucesso da história da cultura pop japonesa em nosso país. Quando Cavaleiros estreou, em setembro de 1994, o Brasil experimentava um momento econômico ímpar que promoveu uma facilidade gigantesca para a importação do item mais desejável de um animê na história do país: uma miniatura com partes de metal (e plástico) que encaixavam no corpo do personagem.

imagem: Boneco do personagem Cisne, linha Diecast Bandai

Um dos cobiçados cavaleiros de bronze. A Samtoy nem se preocupou em traduzir a embalagem para nosso idioma… | Foto: CassianoKZ

O modelo do brinquedo, inédito em nosso mercado, rapidamente se esgotou nas lojas mesmo com o preço elevado. Nenhuma das empresas envolvidas esperava pelo sucesso na dimensão que ele se consolidou. A agência Alien Planetoys (que também atendia por Alien International), que cuidava do licenciamento da marca, não conseguia dar conta de tantos pedidos de licença (só lembrando, nessa época não tinha internet para colaborar com a velocidade das aprovações). Com a alta demanda de bonecos da Bandai não sendo atendida, o mercado brasileiro foi inundado por produtos piratas.

imagem: caixa de boneco original do aldebaran ao lado de boneco pirata.

À esquerda, original; à direita, o pirata. Qual você teve? | Foto: Reprodução

Um ponto a se comentar: a aprovação dos produtos não parecia se preocupar muito com o fator qualidade, da mesma forma que os licenciados de tokusatsu.

imagem: poster promocional com cinco crianças usando os bonés dos cavaleiros do zodíaco, cada um com um personagem diferente estampado, textos promocionais e o anúncio do preço (8,88 reais).

Divulgação: Bob’s & Cia de Talentos. | Via Cia de Talentos.

Entre os produtos mais emblemáticos, podemos apontar os bonés da rede de fast food Bob’s (sem qualquer padronização estabelecida para imagens); as máscaras da fabricante Estrela (que ignorou o Shun de Andrômeda por motivos desconhecidos…); as balas Zung (da Freegels), várias revistas da editora Quadrimix (de colorir, pôster, recorte, etc.), os álbuns de figurinhas e o LP com a “as músicas do seriado da TV” (aham…).

Não é exagero afirmar que o animê deu uma sobrevida para Rede Manchete, já que a emissora conseguiu um pouco mais de fôlego comercial. Até os tokusatsu se deram bem, ganhando um “último suspiro” — com direito ao retorno dos “pré-históricos” National Kid e Ultraman.

O epílogo deste tipo de seriado na TV ocorreu com um amadurecimento da forma de trabalhar por parte da distribuidora Tikara FIlms (ex-Everest Vídeo): o licenciamento era mais organizado e, apesar da aposta em Patrine ter sido falha, tivemos bons trabalhos realizados com Winspector, Solbrain e Kamen Rider Black RX.

O bom momento econômico colaborou para a Glasslite investir em coleções mais arrojadas para as séries, mas RX sofreu do mesmo “efeito” de barateamento de coleção, com a reciclagem de moldes de outros brinquedos — praticamente uma marca registrada da empresa. A Sato Company, por outro lado, corrigiu o erro histórico que cometeu com Cybercop anos antes, e ao trabalhar com a versão americanizada da série Gridman (o Super Human Samurai Syber Squad), licenciou produtos 100% importados que foram lançados pela Glasslite — que nem se deu o trabalho de traduzir 100% da embalagem.

Da mesma forma que Jaspion e Changeman, Cavaleiros do Zodíaco também promoveu uma “corrida” de empresários para outros produtos do gênero. Assim, durante 1995, contratos foram fechados para o lançamento de novos animês a partir do ano seguinte. Um ponto muito válido é a avalanche de lançamentos que o mercado de home video teve graças à “força astral” (risos) de “Seiya e os outros”. Entre 1995 e 1997, os animês dominaram o cenário como nunca se viu antes e, entre lançamentos com divulgação e os “perdidos”, é fácil afirmar que mais de 50 títulos chegaram ao nosso país.

imagem: capas de vhs de granzote, dragon slayer e lady oscar em a viagem da princesa.

Alguns dos muitos lançamentos do mercado de home video graças ao fenômeno CDZ | Scans: Papel Digital.

Na TV, o SBT acabou transmitindo — sem querer, diga-se de passagem — o animê Street Fighter II V já em 1995. A emissora havia adquirido junto à distribuidora Columbia TriStar International a série americana Street Fighter (rebatizada de Street Fighter Game no Brasil), mas como esta ainda estava em produção, a distribuidora enviou o animê, que tinha sido encerrado no Japão alguns meses antes da estreia em nosso país.

Sem qualquer plano de licenciamento, Street Fighter II V rendeu apenas algumas revistas e fitas VHS; curiosamente, a série hoje possui um status de cult.  No ano seguinte, a emissora do “homem do baú” levou ao ar 3 produções importadas pela Alien International: Guerreiras Mágicas de Rayearth, Fly – O Pequeno Guerreiro e Dragon Ball. Enquanto o SBT só tinha interesse em ter audiência, e com isso atrair anunciantes, a Alien esperava repetir com algum deles o fenômeno que foi Cavaleiros.

imagem: boneca de guerreira mágica da grow, boneco do anime fly da grow e boneco do goku da bandai (americano).

Os brinquedos dos animês do SBT lançados em 1996 e que não deram muito retorno financeiro aos envolvidos. O de Dragon Ball é raríssimo e nem propaganda teve na TV… | Fotos: Reprodução

Nenhuma das três séries conseguiu essa façanha, e o licenciamento de produtos também não foi muito entusiasmante. Rayearth e Fly se saíram melhor, com brinquedos importados lançados pela marca Grow, mas comenta-se que as vendas não foram das melhores, principalmente pelo SBT escalar as séries em sua programação de forma totalmente aleatória, prejudicando a continuidade da história — um fator importante para o sucesso de Cavaleiros na Manchete; animês são como novelas, afinal.

Falando na Manchete, o extinto canal também lançou 3 séries em 1996: Shurato, Samurai Warriors e Sailor Moon.

Shurato teve o licenciamento gerenciado pela Tikara Filmes e, das três produções lançadas em 1996 na emissora, foi a que teve, aparentemente, melhor desempenho — mesmo com a Glasslite “tapeando” o público com a boa e velha reciclagem de moldes, a exemplo do que já fazia no licenciamento de tokusatsu anos antes.

Caixa do "Baldar Robotech" da Glasslite (item de Shurato) e boneco do Cesar da Luz de Samurai Warrior

Uma “picaretagem clássica” da Glasslite: o Voltron do Shurato com o nome de outro animê! Ao lado, um dos Samurai Warriors, cuja embalagem e acabamento não chegavam aos pés dos Cavaleiros. | Reprodução via Mercado Livre.

Samurai Warriors teve quase todos os personagens lançados em duas linhas e se destacava pela parte de armadura removíveis, só que sem o mesmo “charme” que a coleção dos Cavaleiros (Shurato até teve bonecos desse tipo também, mas menos populares que os de vinil de armadura fixa).

Por fim, Sailor Moon teve vários produtos licenciados que encalharam tragicamente nas prateleiras — e que renderiam uma edição desta coluna dedicada para expor o caso.

De todos os eventos do ano de 1996, o auge do frenesi da cultura pop japonesa na TV ocorreu no mês de novembro, quando a Rede Manchete, em uma parceria com a distribuidora Premiere Films, lançou a sessão U.S Mangá Corps do Brasil.

A estratégia era simples: exibir os filmes e OVAs (produções lançadas diretamente no mercado de home video japonês) com edições e cortes na TV e lançar os mesmos títulos em home video na íntegra. Apenas 3 produções “rodaram na esteira de produção” do projeto. Motivos para a estratégia não ter dado certo? Que tal lançar algo com quase nenhuma propaganda? As poucas que foram publicadas saíram em revistas especializadas para videolocadoras e uma ou outra em “revistas especializadas” da época. Bola muito fora da finada distribuidora Mundial Filmes — a mesma que inundou o mercado com títulos hentai nas bancas em fitas VHS sob o selo SEX COMIX.

imagem: capa de várias revistas informativas de cultura pop dos anos 1990

Algumas das muitas revistas lançadas na época | Reprodução.

Abrindo um parêntese nessa fase noventista da formação do mercado pop japonês em nosso país, seria um crime não mencionar a importância de revistas informativas na “catequese” do público. Publicações como Herói, Japan Fury, Animax, Heróis do Futuro, Animação, Mangá Mania e muitas outras da época, ajudavam a “educar” o público para despertar o interesse em assistir cada vez mais produções. Paralelamente a isso, nasceu o mercado de distribuição ilegal de conteúdo, que também renderia uma outra coluna dedicada ao tema…

O ano de 1997 veio com Yu Yu Hakusho e alguns dificultadores. No setor econômico, o real já estava desvalorizado ante o dólar para investir em importados e a alíquota de importação de brinquedos foi aumentada para incentivar a indústria nacional. No comercial, a Tikara Films (ex-Everest Vídeo) de Toshi teve dificuldade de “linkar” a série com o público infantil, que sempre é o público que mais consome produtos licenciados.

O resultado disso foi apenas uma modesta coleção de brinquedos da maior fabricante do país (a Estrela) e alguns itens de papelaria e material escolar. Para compensar o investimento, o senhor Toshi apelou até para um negócio que estava na moda na época: um serviço de 0900, onde o custo (e o susto) vinha na conta de telefone. Criativo, né? O CD que talvez conseguisse vender bem naquela época ficou eternamente na gaveta já que o processo de negociação de músicas é diferente do de brinquedos.

coleção de bonecos yu yu hakusho da Estrela. Byako, Hiei, Yusuke, Kurama, Kuwabara e Genbu

Os bonecos de Yu Yu Hakusho da Estrela | Foto: ONOVENTISTA3

No segundo semestre de 1997, a última produção 100% nipônica que estreou na Rede Manchete, Supercampeões (Captain Tsubasa), foi importada pela Samtoy e pareceu não ter um plano de licenciamento muito elaborado. A própria escolha do título, ainda que bastante oportuna por conta da Copa do Mundo de 1998, não parece ter ido muito além do pensamento “fez sucesso em outros países latinos, logo, vai dar certo no Brasil”. Talvez a série até conseguisse render um licenciamento interessante para o setor de papelaria, mas só tivemos um obscuro CD com uma trilha sonora infantil.

A partir de 1998, a principal vitrine para produções japonesas em nosso país começou a perder retransmissoras e viu sua crise financeira ganhar proporções faraônicas. Sem condições de investir em novidades, algumas promessas como Ranma ½, Wedding Peach, Fuuma no Kojiro (com 4 episódios lançados em VHS como Guardiões do Universo) e até Raijin Oh (que chegou a ser anunciado em jornais e tudo!) ficaram nas gavetas de suas respectivas distribuidoras.

Mesmo com essa grande perda comercial, os movimentos para o 3º impacto transcorriam nos bastidores. Em uma pequena travessura do destino, em 10 de maio de 1999 a Rede Manchete chegou ao fim ao mesmo tempo que um novo momento para a cultura pop japonesa em nosso país nascia.

Esse texto continua daqui 15 dias, na próxima edição da coluna Back-End: o terceiro impacto! Confira todas as edições já publicadas da coluna aqui.


Na área de desenvolvimento de sistemas, chamamos de Back-End todos os processos que transcorrem por trás de uma aplicação. A partir desse conceito, tive a ideia dessa coluna para compartilhar não só um ponto de vista, mas também um pouco sobre o que aconteceu e acontece nos bastidores da cultura pop japonesa no Brasil.


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