E chegamos à terceira e última parte dessa longa introdução do cenário de formação do mercado da cultura pop japonesa no Brasil. Antes de prosseguir, acho relevante comentar que não mencionei, propositalmente, alguns momentos que se somam ao firmamento do interesse do brasileiro por entretenimento vindo do Japão.
São os momentos pontuais nos quais algum material conseguiu se destacar na mídia. AKIRA, por exemplo, foi uma animação japonesa que teve bastante buzz na mídia mundial no começo dos anos 1990 — o sucesso do nome foi tanto internacionalmente que o mangá até chegou a ser publicado por aqui, em um formato muito diferente do que estamos acostumados hoje, antes da estreia do filme.
O interesse pela cultura ninja nos filmes de artes marciais, o cinema de ficção científica japonês, os brinquedos e, claro, os videogames contribuíram para alimentar o nosso desejo de consumo da cultura pop de um país do outro lado do mundo. Lembro-me que, em idos de 1993, várias locadoras de bairro tinham fitas para Super Famicon (o Super Nintendo japonês) com jogos baseados em animê, em embalagens encantadoras.
Mas quando eu penso na formação de um mercado, o que eu chamo de primeiro impacto e segundo impacto possuem uma relevância comercial muito forte na história desse tema.
A partir da 2ª metade da década de 1990, a ampliação das telecomunicações foi aos poucos globalizando o acesso aos conteúdos. Um bom exemplo disso foi a coqueluche dos Tamagotchis que tomou nosso país (e o mundo) entre 1997 e 1999. Mesmo sem um animê para promover os “bichinhos virtuais”, o brinquedo deixou sua marca. Em 1998 tivemos um apagão de novidades na TV por conta da situação financeira da Rede Manchete, mas no mundo dos games uma febre chamada Pokémon começava a se alastrar — incluindo o Brasil.
A primeira vez que o mundo inteiro ouviu falar de Pocket Monsters foi no final de 1997: fatidicamente o episódio 38 da série clássica levou centenas de crianças japonesas ao hospital. Tudo por conta de uma sequência de luzes emitidas em determinado momento do episódio pelo Pikachu (e quem levou a má fama no fim das contas foi o pobre Pokémon Porygon) que serviu de gatilho para pessoas fotossensíveis apresentarem um quadro de epilepsia.
A partir desse momento na história dos animês, foram estabelecidos parâmetros de segurança em suas produções, a fim de que outro evento dessa natureza fosse evitado. Com isso, a maioria das animações japonesas passaram a apresentar um aviso recomendando que as luzes do ambiente estivessem ligadas, por exemplo (além de um filtro escuro em momentos de “pisca-pisca”).
Depois de um hiato de 4 meses, Pokémon voltou triunfante à TV japonesa e há quem diga que o episódio acabou servindo para as empresas nos bastidores (que formaram a The Pokémon Company) conquistassem uma promoção global da marca (!).Teorias da conspiração à parte, o animê estreou na TV americana em setembro de 1998 e deixou de cabelo em pé quem acreditou que tal série jamais seria exportada mundialmente.
No último trimestre de 98, os games de Pokémon desembarcaram por aqui e o animê já era negociado com emissoras. O “desenho que mata” (sim, isso chegou a ser veiculado pela imprensa brasileira) acabou sendo adquirido pela Record para reforçar a programação da sua recém-contratada apresentadora infantil, Eliana. E como todos sabemos, o que dá audiência no programa infantil são os desenhos e não as loiras ou morenas no comando.
A estreia de Pokémon se deu em 10 de maio de 1999 (antes a previsão era para março) no mesmo dia em que a Rede Manchete deixou de existir. A partir daqui, temos o 3º impacto da cultura pop japonesa no Brasil.
A estratégia com Pokémon não foi isolada e o animê passou por todo um trabalho de edição para “adequação a cultura ocidental” nos EUA. Gatilhos de consumo foram pontualmente aplicados para a coisa “viralizar” — como aquele maldito PokéRap com o seu “temos que pegar, temos que pegar” (gotta catch ‘em all em inglês, que inclusive foi mantido como uma espécie de subtítulo da série, adaptando o getto da ze da versão japonesa).
Na área de licenciamento, a eterna Glasslite, foi uma das primeiras empresas a apostar na marca e viu seus chaveiros gigantes emborrachados (!) venderem como Coca-Cola no deserto. Curiosamente, o modelo do Pikachu produzido gerou um item raro que os colecionadores apelidaram de “O Caso do Pikachu Palhaço”. A Estrela também não ficou de fora, mas foi a partir da estreia da série na TV paga que o licenciamento da marca deslanchou no Brasil. Por falar em TV paga…
Temos que pagar, temos que pagar…
O Brasil de 1999 estava passando por diversas transformações e na TV aberta, podemos dizer que nesta década muitos excessos foram cometidos, trazendo uma discussão sobre qualidade e limites do conteúdo apresentado. Com isso, a TV paga acabou ganhando um status de qualidade e se tornou um desejo de consumo para muitos. Sua “popularização” (bem entres aspas, pois era caro) em nosso país se deu a partir de 1996, com a chegada da DirecTV e suas anteninhas cinzas. A necessidade de entregar para os assinantes conteúdo (canais), provocou um aumento no line-up das empresas atuantes no país e assim os canais infantis segmentados foram se estabelecendo como um dos principais carros-chefe de vendas.
Por maior que fosse o acervo de animação de produtoras norte-americanas, eventualmente apresentar um ou outro “desenho diferente” na grade poderia chamar atenção do público da mídia e foi com esse “tempero oriental” que o Cartoon Network ganhou destaque a partir de junho de 1999 com Dragon Ball Z em sua programação. Em novembro do mesmo ano Pokémon se juntaria aos guerreiros Z, colaborando para consolidar o Cartoon como o canal favorito da TV paga no período.
Ainda que a versão latina da emissora apenas reproduzisse as estratégias da matriz americana, era nítido que os animês estavam com uma projeção diferente no momento. O mercado passou a enxergar esse conteúdo com um olhar agregador de audiência (e de vendas) e, nas grandes feiras televisivas internacionais, todos os desenhos com personagens de olhos grandes passaram a ter um destaque. Inclusive foi assim que Rurouni Kenshin foi parar nas mãos da Globo, sob o título internacional de Samurai X.
Seguindo essa tendência, o canal pago Locomotion encheu sua programação com inúmeras produções até então jamais sonhadas em se assistir com dublagem e que eram familiares aos leitores das revistas especializadas da época.
A TV por assinatura tornou-se um objeto de desejo dos fãs de animê, bastando desembolsar um valor mensal (e preencher requisitos para instalação, claro) para ter acesso a uma nova experiência do nicho no Brasil. Infelizmente esse produto ficou acessível apenas para poucos privilegiados por muitos anos e atualmente passa por uma crise por conta da concorrência com o streaming.
Da Apoteose ao Caos
Se por um lado na TV as coisas pareciam ter uma nova perspectiva, o mercado de home video insistia nos lançamentos oportunistas na base do “se vendeu, continua lançando; se não, cancela”. A título de comparação, desde a metade da década de 1990 os americanos possuíam empresas especializadas no nicho. A nossa “U.S Mangá Corps do Brasil” foi uma tentativa frustrada de emular o modelo de negócio da “U.S Mangá Corps” (leia mais em nossa matéria sobre Detonator Orgun). Só pra vocês terem noção, em 1997 Evangelion era lançado em VHS por lá enquanto por aqui a gente comemorava a estreia de Yu Yu Hakusho na TV — depois de muita polêmica envolvendo a violência do animê.
Reservarei edições futuras dessa coluna para tratar do mercado de home video, pois existe todo um passado interessante que promoveu sua auto-extinção.
No fim dos anos 1990, os primeiros eventos temáticos começaram a ocorrer pelo país e a visibilidade cada vez maior do nicho colaborou para o para o firmamento de um novo modelo de negócio. Tínhamos várias revistas informativas e até um mangá popular: Ranma ½!
Na aurora do anos 2000, Pokémon reinava absoluto na TV aberta e na TV paga (com Dragon Ball Z causando alvoroço em paralelo e a Locomotion começando a ter destaque). O mercado editorial estava bastante aquecido e os mangás começaram a ganhar mais notoriedade com os lançamentos de peso da editora Conrad — Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball. A revista Pokémon Club era um indicativo poderoso do sucesso do Pikachu por aqui (foram cerca de 300 mil exemplares vendidos da 1ª edição).
Foi então que o contra-ataque de Digimon foi desenhado, com o interesse da maior emissora de TV aberta do país nos bastidores. Na TV paga, a maior rival do Cartoon Network entraria em ação para conquistar o topo da preferência do público infantil no segmento usando os monstrinhos digitais. Só lembrando que na Fox Kids, animês e tokusatsu “transgênicos” (Power Rangers, Beetleborgs…) faziam parte da grade desde o lançamento.
O planejamento em torno de Digimon no país talvez represente o case mais evoluído para um animê em termos de licenciamento, com um dos nomes por trás do negócio se tornando referência no assunto em nosso país: Luiz Angelotti. Todavia, aqui surge um entendimento equivocado do público com relação ao papel de agente licenciador. Até hoje muitas pessoas pensam que ele foi/é responsável pelo “tratamento dispensado” para vários animês no país. Embora possa influenciar positivamente, as decisões sobre a versão a ser transmitida (se com cortes, se original, etc.) e a estratégia de exibição são de responsabilidade ou das produtoras japonesas ou dos canais de TV.
A partir dos anos 2000 os japoneses começaram a trabalhar com grandes distribuidoras internacionais e um certo caos se instaurou no quesito “fonte”. Um mesmo animê poderia ser adquirido, por exemplo, pela VIZ Media ou então pela Cloverway Inc., cabendo ao Japão a indicação de “onde você pegaria as fitas”.
Se você tivesse uma emissora de TV e quisesse adquirir um animê para transmitir você poderia ser indicado em buscar por algum em empresas como: Rose Entertainment; Televix; ShoPro Entertainment; Saban International; Sato Company (sim, ela mesma); Sony, além das já citadas VIZ e Cloverway e várias outras.
O mundo se viu invadido pelos animês numa celeridade nunca vista na história até então. Por aqui, a TV paga se estabeleceu como principal nicho para as produções com o Cartoon Network, Fox Kids e Locomotion promovendo um verdadeiro “tsunami nipônico”.
No período entre 2000 e 2005, na TV aberta você podia ver Pokémon na Record (que até ressuscitou o tokusatsu por um breve período, com Ultraman Tiga, e ainda tinha perdido em suas sessões de desenho os animês do Zorro, Robin Hood e da Branca de Neve); Dragon Ball Z, Tenchi Muyo, Bucky e El Hazard na Band (além do cult AKIRA e do pesado A Lenda do Demônio em sessões de filme) — que depois ainda traria de volta Os Cavaleiros do Zodíaco e Yu Yu Hakusho –; reprises de Dragon Ball e Fly no SBT (além do Pequeno Príncipe, claro); e muitos, mas muitos animês na Rede Globo.
O mercado brasileiro de licenciamento não estava preparado para tudo isso. A maioria dos animês era exibido em troca de audiência e o produto mais comum que algumas séries rendiam eram os clássicos álbum de figurinhas, servindo como uma espécie de termômetro informal do sucesso de alguns títulos. Como casos planejados na época podemos citar Hamtaro, Medabots e Beyblade.
Conclui-se que a apoteose do 3º impacto em nosso país se deu no dia 31 de julho de 2005: nesse dia, o Locomotion deixou de existir para dar lugar ao canal ANIMAX, um canal apresentando 24 horas de animê com sua programação 100% dublada.
Não. Não considero o Animax um 4º impacto pois a partir daqui testemunhamos como o Brasil falhou em estabelecer um mercado funcional e lucrativo, a exemplo do que existe nos EUA ou França.
Restrito a poucas operadoras e apenas nos pacotes mais caros, o canal não conseguiu ter o alcance que deveria e, com isso, não conseguia se sustentar comercialmente. Além de que parte do público, por incrível que pareça, criticava o conteúdo 100% dublado. Em 2005, a internet banda larga já não era tão inacessível para boa parte dos lares de classe média do país. Daí surgiu outro problema: a distribuição digital ilegal de conteúdos.
Se por um lado, os americanos tinham quase tudo que saía no Japão com uma relativamente janela curta de tempo, aqui no Brasil tudo parecia demorar uma eternidade pra chegar e os fansubs preenchiam essa lacuna. Tanto que quando Naruto chegou oficialmente por aqui, só em 2007 via Cartoon Network, o animê já possuía uma fanbase considerável — e que estranhamente rejeitou o animê dublado.
Por outro lado, os fansubs (e a pirataria) foram em parte um entrave para o desenvolvimento do nicho de animês em home video se estabelecer legalmente aqui, como ocorreu nos EUA. Para vocês terem noção, a distribuidora que investiu em Captain Tsubasa Road to 2002 e Vampire Princess Miyu desistiu do negócio pois viu seus títulos sendo comercializados completos (com legendas, claro) em um grande evento de animês.
Mas não dá pra “passar pano” para a mentalidade das distribuidoras de home video: os lançamentos custavam preços bem salgados e meses depois ficavam pela metade… ou até menos. Culpa da mentalidade comercial herdada dos tempos da videolocadoras — como já adiantei, merece um capítulo à parte.
A revisão da classificação indicativa e, um tempo depois, a regulação mais intensa sobre a publicidade infantil na TV aberta começaram a fazer dos animês um produto caro. Durante os 5 anos de existência do Animax, testemunhamos uma estranha retração do mercado no Brasil. Segundo algumas pessoas do meio, esse movimento é natural e esperado: após uma grande bolha de consumo, há uma explosão e declínio.
O único problema é que enquanto essa bolha estava cheia, não existia uma organização capaz de transformar o nicho da cultura pop japonesa em um negócio rentável e estável a exemplo de outros países. Eram eventos desorganizados e repetitivos; distribuidoras de home video com investimentos desprezando o valor do colecionismo; fãs que criticavam material dublado e os próprios japoneses cometendo equívocos — como a versão de One Piece da 4Kids enviada para cá…
Apenas o mercado editorial conseguiu redefinir o panorama das histórias em quadrinhos no país e provar que a cultura pop japonesa, quando bem trabalhada, é bastante lucrativa. Se lá atrás, na época do 1º e 2º impacto, os lançamentos eram obscuros e descaracterizados como um autêntico quadrinho japonês; ao longo do 3º impacto, editoras como JBC, Panini e Conrad deram uma aula de como gerenciar (e educar) o público para sua manutenção e crescimento (em parte, graças aos japoneses, que exigiram publicações nos sentidos originais de leitura).
O “grande sol nascente” foi se pondo para que um novo momento pudesse chegar, e estarmos em 2023 entrando em lojas de departamento e vendo dezenas de estampas de animês de sucesso — e ironicamente devemos agradecer aos “tokusatsu” do universo cinematográfico da Marvel, pois foram com esses filmes que o mercado passou a entender o universo nerd/geek e a olhar o potencial que sempre existiu, e que nunca foi explorado de maneira inteligente, quando o Japão estava com tudo e sem estar prosa.
A partir dos anos 2010, uma nova tecnologia chegou para revolucionar nosso hábito de consumir animês e tokusatsu. Estamos na era do streaming e este é o novo mundo para essa coluna de back-end explorar. Até a próxima, então!
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Na área de desenvolvimento de sistemas, chamamos de Back-End todos os processos que transcorrem por trás de uma aplicação. A partir desse conceito, tive a ideia dessa coluna para compartilhar não só um ponto de vista, mas também um pouco sobre o que aconteceu e acontece nos bastidores da cultura pop japonesa no Brasil.
O texto presente nesta coluna é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.
Essa matéria me lembrou que eu não tinha mais fitas (!) pra gravar o tanto de anime que passava na Globo, e ainda tinha que gravar Pokémon na Record, isso até tudo ficar praticamente restrito a tv fechada e eu não ter mais acesso; quando pude ter tv a cabo a Animax já tinha ido de ralo e eu já via muita coisa pela internet.
E concordo totalmente com a falta de visão comercial na época do boom dos animes: cansei de ver “lista de produtos” de Pokémon nas Pokémon Club que só eram vendidos no Japão ou trazidos importados pra uma única loja na Liberdade. E olha que Pokémon ainda teve coisas licenciadas aqui, Sakura Card Captors por exemplo que tinha tanto potencial nem viu a luz do dia do licenciamento. O que Naruto causou (e que eu fico feliz de ter ajudado de alguma forma, rs) e que resultou em material escolar e blusinha na Renner, era o que eu queria que tivesse acontecido com Sakura. Espero que tenham aprendido com os erros anteriores e que não percam mais chances assim.
Aqui também era vídeo cassete comendo solto a manhã inteira até o início dos anos 2000, mas quando a Globo estava no auge do número de anime tinha de gravar por cima do dia anterior se não não dava. Já gravava em SP pra ficar com a qualidade aceitável e programava ele para pular as tralhas, ainda assim dando mais de uma hora de gravação.
O chato é que quando trocavam coisa de horário sem avisar perdia um ou outro capítulo, ou então quando interrompiam pra plantão tipo o sequestro do Sílvio Santos e o atentado.
Muito boas as três partes da matéria, mas deixar o Toonami de fora delas me parece um equívoco enorme, visto que até o Invasão Animê (que eu amava) foi mencionado.
De fato eu poderia ter dedicado um parágrafo a mais pro Toonami. Mas não se preocupe. Essa introdução é apenas um apanhado geral. Depois eu penso em esmiuçar vários pontos e o Toonami terá sua vez =).