“Shin” é uma palavra curiosa dentro do vocabulário japonês. A língua nipônica possui diferentes maneiras de escrita — e diferentes maneiras de leitura. São utilizados hiragana (ひらがな), katakana (カタカナ), kanji (漢字) e caracteres românicos em casos específicos. E shin tem sentidos diferentes de leitura conforme as escolhas de escrita.
A maneira que talvez mais sirva a esse texto seja a do kanji 新, um prefixo que significa “novo”, só que novo num sentido de “neo”, de uma coisa que já existia e agora há uma nova dela. Porém, há outros kanji lidos como shin: por exemplo, 真, de “verdadeiro”, ou 信, de “honestidade”, “fidelidade”, 親, de “intimidade”, 心, uma leitura para “coração” e “mente”, e 芯, que também significa “coração”, só que no sentido físico, do órgão mesmo, ou “fraqueza”.
E caso seja escrita em katakana, シン, ela pode ganhar um sentido bem curioso: “magro”, “fino”.
Há alguns anos, os diretores Hideaki Anno (de Evangelion) e Shinji Higuchi uniram-se para encabeçar alguns projetos cinematográficos que pegam propriedades intelectuais de diferentes empresas, já consagradas dentro do imaginário pop nipônico, e as reimaginam às suas próprias maneiras em filmes que possuem “shin” como um prefixo de seus títulos.
Começou em 2016 com Shin Godzilla, da Toho, em que eles dividem a direção e Anno foi responsável pelo roteiro. O filme é péssimo, mas não é esse o ponto. Nele, o kaijuu aparece no Japão contemporâneo e observamos como seria a reação do governo ao caso e o quanto a burocracia é parte da espinha cultural dessa sociedade. A “sequência”, sem Higuchi, veio em Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time, que no original se chama Shin Evangerion Gekijouban, de 2021 e encerra a história de Rebuild of Evangelion. Ambos os filmes fecharam seus anos de lançamento em segundo lugar nas bilheterias japonesas.
Então, em 2022, foi anunciado oficialmente o Shin Japan Heroes Universe, uma colaboração entre Toho, Khara, Tsuburaya Productions e Toei, assistida pelo Hideaki Anno.
Na esteira disso, tivemos o terceiro longa (e melhor de todos) desse universo, Shin Ultraman, da Tsuburaya Productions, lançado no ano passado, em que Higuchi está na direção e Anno no roteiro. Shin Ultraman é como se as ideias em Shin Godzilla fossem melhor cuidadas. A premissa é basicamente ser uma releitura da série clássica de 1966, mas se passando nos dias de hoje e com o mesma inclinação crítica à burocracia. Contudo, o roteiro e a direção aqui funcionam melhor em entregar um filme que respeita as convenções teatrais do tokusatsu (já chego nisso) e engaja a audiência do início ao fim.
E aí, vem Shin Kamen Rider (ou Shin Masked Rider), da Toei, dirigido e escrito por Hideaki Anno. Tal como Shin Ultraman, é uma pérola cinematográfica e um exemplo de como um bom diretor, que entende o material que tem em mãos, consegue levar um conceito ao máximo. Conceito esse que é… bom… “tokusatsu”. Mas também já chego nisso.
E também como Shin Ultraman, Shin Kamen Rider tem como ideia, de certa forma, recontar o grosso de eventos da série clássica de 1971. Série essa que é uma criação do mangaká Shotaro Ishinomori, encomendada pela Toei. Resumidamente, Ishinomori elaborou os conceitos principais para TV e tocou um mangá de mesmo título em paralelo ao projeto — isso se repetiu em séries seguintes.
Na trama, Takeshi Hongo (Sosuke Ikematsu), um agente da SHOCKER (uma organização de dominação mundial que visa extinguir a humanidade), passa por um procedimento que o torna um “Aum”, ser híbrido entre homem e gafanhoto, com habilidades sobre-humanas. Porém, antes de sofrer lavagem cerebral, Takeshi é salvo por Ruriko Midorikawa (Minami Hamabe), uma ex-agente de alto escalão da SHOCKER que agora vai contra os planos da organização.
Ocorre que Takeshi foi escolhido pelo pai de Ruriko, o Dr. Hiroshi Midorikawa (Shinya Tsukamoto), para ser usado como arma contra a SHOCKER. Takeshi, então, assume o nome de Kamen Rider e, ao lado de Ruriko e de agentes governamentais, passa a enfrentar os “Aum” do grupo de vilões. Desse ponto de partida, observamos os personagens, num formato “episódico” de narrativa, baterem de frente chefe a chefe até chegarem ao “final boss”.
Acima de outras interpretações, é possível dizer que Shin Kamen Rider é uma ode ao estilo tokusatsu de se contar uma história e às raízes no teatro clássico japonês que fincam esse estilo narrativo.
No tokusatsu, há uma herança grande de, pelo menos, três escolas de teatro que se popularizaram no Japão do período Sakoku (1639-1854): o kabuki, o noh (teatro de máscaras) e o bunraku (teatro de bonecos). O sakoku, que literalmente significa “país fechado”, foi uma política isolacionista ocorrida durante o Xogunato Tokugawa (Era Edo), quando as relações e o comércio do Japão com outros países eram extremamente limitadas. Por conta desse isolamento, diversas formas de artes nacionais se popularizaram no país, incluindo esses estilos de teatro, que até hoje influenciam a dramaturgia nipônica.
Não é à toa que tokusatsu podem parecer esquisitos ou “camp” demais a espectadores mais acostumados com produções feitas, por exemplo, nos Estados Unidos. Nessas apresentações teatrais, tão ou mais importantes do que o enredo e seu andamento são, em si, as performances. É o cuidado na estética do palco e dos figurinos, na maneira como os movimentos são realizados pelos atores, e no tempo dado a esses movimentos para que o público aprecie como aquilo foi montado — e o tokusatsu herda essa preocupação.
Preocupação essa que o Hideaki Anno parece empenhado em reforçar ao longo da rodagem. O roteiro pula exposições introdutórias e parte direto à ação. Os primeiros vilões são mostrados de forma voraz, bastante coreografadas, com o líder deles, chamado Aum-Aranha, se destacando visualmente dos capangas, enquadrado no centro e se aproximando da mocinha. Então, há o surgimento do herói Kamen Rider, posicionado no topo de uma colina, com segundos dedicados à apreciação de seu uniforme e, sobretudo, de sua máscara.
Várias cenas ainda ampliam essa estética teatral, com Anno transpondo a sensação de palco e plateia para a tela através dos cenários e enquadramentos escolhidos. Há um segmento deslumbrante quando eles enfrentam o Aum-Morcego, passado num auditório, com a luta ocorrendo em um palco e a plateia formada por clones mentalmente controlados.
Em outra parte, contra a Aum-Vespa, o embate ocorre no topo de um edifício, com uma iluminação vermelha e um piso que imita o formato de uma colmeia. Mais para o final, contra o Aum-Borboleta, Anno coloca o vilão à frente de uma estrutura que representa suas asas, gigantescas. São usados cenários enormes, os movimentos dos personagens parecem estranhamente coreografados, e o texto é recitado com pomposidade. É tokusatsu em seu extremo, de um jeito apaixonante, sem nunca se deixar ir à paródia.
Anno mantém ainda o subtexto antieugenista do material original. A SHOCKER é uma organização criminosa que visa “evoluir” a humanidade através da junção com outros animais, elaborando através dos Aum uma raça superior que, eventualmente, irá se sobressair aos humanos, que se alimentam da energia vital das pessoas e da natureza ao redor.
Takeshi é um personagem essencialmente pacífico em sua forma humana. E quando se torna um Aum, dá vazão a uma violência desenfreada e amoral. Ao ver a necessidade, decide se entregar a essa violência para enfrentar a SHOCKER, demonstrando, no roteiro, que é necessário ir contra moralidades individuais em prol de um bem maior.
Para abandonar o pacifismo, Takeshi precisa ser corrompido pelos mesmos poderes dos vilões, tema que perpassa a espinha narrativa de toda a série Kamen Rider: aquilo que dá força ao herói sempre é o mesmo que dá força aos vilões. A figura do herói não é ilibada, não é santa. Sim, um desvio dos ideais nefastos a qual o poder está atrelado para, justamente, destruí-los.
Isso posto, voltemos à palavra “shin” do início do texto, que precede o título desse e dos demais filmes do Shin Japan Heroes Universe.
Com Shin Kamen Rider, Hideaki Anno não só traz um novo filme que pode funcionar como o “neo” a essa geração, significado do kanji 新, mas também pode abarcar os sentidos dos outros kanjis “shin” mencionados, já que pode propor o que seria um Kamen Rider verdadeiro, honesto, fiel e íntimo aos seus conceitos iniciais e referências utilizadas.
E ao levar em conta que o “shin” no título, na verdade, é grafado em katakana, シン・仮面ライダー, também é possível interpretar que Anno entrega aqui uma versão diminuta, afinada, “magra” do material original, já que é uma adaptação para as telonas em vez de um seriado de vários episódios ou um mangá de vários capítulos.
O filme é incrível, bem feito, bem filmado, bem editado, plasticamente lindo, que empolga, engaja, emociona e é uma perfeita transposição às telonas do que faz um tokusatsu… tokusatsu.
Shin Kamen Rider está disponível com legendas em português no Amazon Prime Video, sob o nome Shin Masked Rider.
O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.
Ótima resenha, curti demais o filme!
Confesso que gostei mais de Shin Godzilla 😅
Assisti esse filme e sinceramente não gostei. Tem algumas cenas de ação boas, o visual dos Riders e dos vilões está no geral bem feito mas pra mim foi só isso.
O filme parece até uma minissérie que foi “fatiada” para caber em 2 horas de duração e ser vendido como longa metragem de tão corridos que são certos acontecimentos, além do final anticlimático em aberto, preferi 1000 vezes Kamen Rider The First lá de 2005.
Adorei o texto. Parabéns.