No último fim de semana, dias 12 e 13 de agosto, aconteceu no Japão a 102ª edição da Comiket, o maior evento de doujinshi (equivalente às nossas “fanzines”), que ocorre duas vezes ao ano na Tokyo Big Sight, atraindo fãs, cosplayers, desenhistas amadores e até alguns já dentro do meio profissional, sendo um ótimo termômetro do que está em alta durante aquele determinado período.

Um grande ponto do evento é ele ser aberto para todos os tipos de publicações, para todas as idades; o que inclui também materiais eróticos/pornográficos dos seus personagens favoritos, dentro do padrão heterossexual e homossexual. Ou seja, vai ter de tudo… ou, quase tudo!

Um levantamento das principais obras comercializadas no evento mostrou que a franquia multimídia Umamusume: Pretty Derby não só teve incríveis 804 doujinshi sendo vendidos, como nenhum deles contendo material erótico. Talvez você, leitor, esteja se perguntando como isso aconteceu na terra onde nada é sagrado, mas há uma explicação para o fenômeno.

imagem: levantamento dos doujin da comiket, mostrando 804 para umamusume, com nenhum sendo erótico.

Levantamento de usuário do 4chan. | Catálogo disponível online.

Embora Umamusume pareça ser mais uma IP de animê, jogo de celular e idol, como várias por aí, seu diferencial está em transformar cavalos reais em garotas-cavalo (uma = cavalo; musume = garota), semelhante ao que a franquia Fate faz com figuras históricas.

Acontece que a cena de turfe é forte no Japão, uma paixão que começou durante o milagre econômico japonês na década de 80, e se perpetua até hoje. Existem dois pontos importantes do porquê essa franquia ter um cuidado especial em relação às demais.

O primeiro ponto é algo não exclusivo ao Japão: a ligação de esportes de aposta com a máfia, a famosa yakuza. O segundo ponto, talvez mais importante, é o respeito com os cavalos e com seus criadores e donos, que licenciam o direito de imagem à Cygames.

Afinal, uma coisa é você transformar a figura histórica do Rei Artur em uma linda mulher e colocá-la em uma visual novel erótica, mas outra coisa é pegar um respeitado animal com nome, endereço e até lápide aberta ao público e colocá-lo em material erótico — sendo que tudo que você faz com esse animal na sua série depende de uma autorização que poderia ser retirada a qualquer momento.

Embora o medo de receber um susto da máfia japonesa por profanar o espírito de um cavalo admirado pela nação japonesa pareça ser um ótimo motivo para não produzir doujinshi erótico das garotas-cavalo, os materiais oficiais indicam que é o respeito pelos cavalos a razão para nenhum conteúdo erótico da série ter sido vendido na última Comiket.

imagem: nota oficial da cygames pedindo para não produzirem material erótico das personagens.

Nota oficial. | Divulgação: Cygames.

Em nota oficial lançada no dia 20 de junho de 2018, época do lançamento da primeira temporada do animê, a produção agradece aos espectadores, mas também educadamente pede para não produzirem conteúdo que possa denegrir a imagem dos cavalos de corrida, exatamente porque estes possuem direito de imagem, e seus donos podem revogar a autorização de uso na franquia a qualquer momento.

Assim, é melhor pensar duas vezes antes de sujar a imagem do cavalo para que sua cavalinha favorita não desapareça permanentemente da série. Claro, isso não descarta a possibilidade de fãs que não moram no Japão, ou até mesmo japoneses em suas contas fechadas em redes sociais produzam conteúdo erótico das personagens, mas em um evento aberto como a Comiket a coisa muda de figura.

Ao analisar o catálogo da última Comiket, é possível ver que o conteúdo varia entre ensaios de cosplay, quadrinhos de comédia, crossover, fanfics e até romances, mas todos liberados para todas as idades — com esses resultados, vemos que o pedido feito em 2018 está sendo seguido até hoje.

Talvez o mais interessante nessa história seja a quebra da imagem que muitos têm sobre o Japão: um país onde a pornografia corre sem rédeas. Sabemos do quão brandas são as leis para punir pedofilia e pornografia infantil (ainda mais quando mangakás famosos condenados voltam à ativa após pagarem uma simbólica fiança…), e também temos noção da quantidade de materiais pornográficos produzidos pelo Japão anualmente.

É importante ressaltar que não existe nenhuma lei de proteção para quem produzir doujin, deixando-os em uma zona cinza da legalidade. Os preços por essas zines em eventos como a Comiket normalmente são justos e não parecem visar um lucro que os artistas dependam para pagar as contas no fim do mês, mas apenas não saírem no prejuízo após custearem todo o material. É claro que isso depende de caso para caso e não impede que scalpers — revendedores que compram buscando revender mais caro depois — lucrem com o trabalho desses artistas.

Mas será que, talvez, o ponto é que geralmente não se pede para não criarem doujin pornográficos? Claro, diferente de outras séries, a ameaça da franquia ser prejudicada pelos materiais eróticos está presente e vai além do controle da Cygames; no fim, são os empresários que mandam no que deve ser produzido e o risco pode ser um motivo a mais para que eles sigam na linha.

Isso sem contar que o tal pedido, no fim, pode ser uma forma educada de dizer que há risco de responder judicialmente por uso de imagem indevida — afinal, se o dono da imagem de algum cavalo ver algum material pornográfico e achar ruim, vai reclamar com a Cygames, que provavelmente vai mostrar que nunca autorizou esse tipo de produção, e tanto ela quanto o dono da imagem do cavalo poderiam inclusive processar o artista.

De qualquer modo, algo semelhante aconteceu com Serial Experiments Lain, que liberou a produção de conteúdos derivados da série, com algumas restrições como não a utilizar para fins políticos, religiosos e adultos/eróticos (e não ser uma empresa produzindo o conteúdo) — nesse caso não há o problema da série ter algum tipo de uso de imagem “externo”, mas Lain é uma obra “fora de moda”, então é mais difícil mapear o quanto essas diretrizes são respeitadas em eventos públicos de fãs, já que o material produzido atualmente tende a ser de número menor.

De toda forma, a narrativa de haver respeito entre os fãs e os cavalos não deixa de ser fascinante. Resta saber se esse pedido continuará sendo respeitado anos seguintes, ou se haverá um consenso entre os donos dos cavalos e da franquia de permitirem a produção desse tipo de material, ou fecharem os olhos para ela.

imagem: tweet de usuário com foto de túmulo de cavalo com flores.

Lápide do cavalo Silence Suzuka, coprotagonista da primeira temporada de Umamusume: Pretty Derby, cheia de flores em homenagem no aniversário de sua trágica morte.| Reprodução: Nohocha | Twitter.

A iniciativa da Cygames poderia ser um gatilho para outras empresas passarem a ter posturas mais rígidas com relação ao modo como seus personagens devem ser tratados pelo público, mas é de conhecimento comum que o mercado erótico é não só lucrativo como também um potencial impulsionador de séries — e talvez seja um tanto autoritário querer definir como os fãs podem ou não se relacionar com uma franquia, ainda mais quando historicamente esse tipo de censura moral sempre recai com mais peso sobre populações minoritárias, como produções com conteúdo LGBTQIA+.

É inegável o sucesso da franquia no Japão, que não só levou fãs de turfe ao animê e ao mobage, mas também os fãs do animê e do jogo a acompanharem o esporte e conhecerem mais sobre os cavalos do passado e do presente. Embora a Cygames tenha acertado em cheio na Terra do Sol Nascente, infelizmente o jogo não possui previsão para sair internacionalmente (mas talvez por outros problemas).

Dos materiais animados, a primeira e segunda temporadas do animê estão disponíveis na Crunchyroll, e o OVA Road to the Top está disponível no canal oficial do YouTube com legendas em inglês — uma terceira temporada está confirmada para 2023.


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