A Pokémon Company é uma joint venture, isto é, uma empresa criada por outras duas ou mais empresas (no caso, três empresas) visando explorar, de maneira mais eficiente e compartilhando os riscos, uma atividade econômica específica, neste caso, gerenciar de maneira global a propriedade intelectual Pokémon e seus projetos.
Uma das empresas é a Nintendo, uma companhia de capital público (em caso de dúvida: significa que vendem ações na bolsa), negociada na Tosho, a bolsa de valores de Tóquio. Dessa forma, ela tem que divulgar seus relatórios financeiros regularmente.
Desses relatórios conseguimos extrair algumas informações sobre Pokémon e as empresas envolvidas: a Nintendo tem 32% da Pokémon Company, e as outras duas sócias são a Creatures, Inc e a Game Freak, portanto a Nintendo é sócia minoritária — empresas públicas não são obrigadas a publicizar as porcentagens minoritárias em outras empresas, podendo listar isso apenas como posse de ações.
As outras duas empresas envolvidas nessa empreitada, Creatures, Inc e Game Freak são empresas de capital privado (em caso de dúvida: significa que são de posse de alguém, não têm ações negociadas em bolsa), ou seja, nada do que fazem precisa ser divulgado. Dessa forma não sabemos quanto da Pokémon Company cada uma delas controla.
Ambas são de um tipo específico de empresa de capital privado, especificado pela legislação japonesa: kabushiki kaisha. No mercado, normalmente se classifica as kabushiki kaisha como equivalentes as joint-stock company, isto é, um tipo de empresa de capital privado na qual seus donos podem vender as ações para terceiros ou para os demais proprietários. Dependendo do estatuto seguido e tipo específico de empresa, essa venda pode precisar ser autorizada pelos demais ou não. No direito japonês, elas são divididas em dois tipos, koukai gaisha denai kabushiki gaisha e hi-koukai gaisha.
Vou tentar ser o mais breve possível nessa explicação — as koukai gaisha denai kabushiki gaisha são empresas com distribuição acionária: as ações podem ser livremente negociadas, porém não são publicamente negociadas, isto é, não são negociadas em bolsa. Ou seja, os proprietários de capital dessa empresa podem fazer o que cargas d’água quiserem, sem consultar ninguém a respeito.
Já as hi-koukai gaisha são as empresas fechadas típicas, isto é, qualquer mudança na distribuição acionária, seja entre os sócios originais, terceiros ou o que quer que seja, precisa ser aprovada pela empresa. A forma como essa aprovação se dá, precisa, necessariamente, estar no estatuto da empresa em sua fundação — normalmente, é algo decidido pelo corpo de diretores ou de acionistas, em assembleia.
Para ambos os tipos, no estatuto de fundação é estabelecido a divisão acionária entre os investidores iniciais. Isso independe de quanto de capital esteja sendo efetivamente colocado naquele momento, por qualquer uma das partes. Essa informação é privada, tal como o estatuto da empresa.
Quando são de um tamanho significativo (caso dos exemplos que estamos tentando investigar), são obrigadas a ter um corpo de diretores, de no mínimo três indivíduos, com mandatos de dois anos (que podem ser renovados, a depender do estatuto particular de cada empresa). Além de um corpo de diretores, é obrigatória a presença de um auditor legal independente, responsável por supervisionar as ações dos diretores e reportar aos acionistas (mesmo que alguns dos acionistas sejam diretores). Essa estrutura pode variar em alguns sentidos, a depender do tamanho e estatuto da empresa.
Voltando para o Pokémon. Quem é responsável por gerir a marca Pokémon é a Pokémon Company, uma joint-venture registrada, também, como hi-koukai gaisha, ou seja, com certa rigidez na divisão acionária.
Ela foi criada em 1998 sob o nome Pokémon Center Company, para gerenciar as lojas físicas de Pokémon. Com o sucesso da franquia, principalmente após a animação, começaram a receber propostas comerciais do mundo inteiro. Inicialmente, a Creatures, Inc cuidava das questões de licenciamento da marca, mas, de acordo com a história publicizada, o volume exigiu um corpo de funcionários para se dedicar somente a isso.
Nos anos seguintes, a empresa começou a estabelecer operações internacionais para lidar com os mercados mais relevantes para a marca. Novamente, não temos públicas a porcentagem de ações de ninguém, além da própria Nintendo, que tem 32% e recebe uma parcela não divulgada de seus lucros. Obviamente, a Game Freak e a Creatures, Inc, somadas, são o voto mandatário, mas a divisão entre elas não é um conhecimento público, nem, digamos, “informalmente”.
Algumas vezes, empresas privadas publicizam parte de seu relatório financeiro em algum tipo de publicação de negócios. A Pokémon Company faz isso regularmente na publicação do governo japonês Kanpo, as outras duas envolvidas não. É daí, por exemplo, que vem as notícias positivas sobre o tamanho de Pokémon. A motivação por trás, muito provavelmente, é para influenciar positivamente as ações da Nintendo, uma empresa de capital aberto.
A Pokémon Company tem apresentado resultados fiscais expressivos nos últimos anos. No ano fiscal de 2018 (que terminou em fevereiro de 2019, para as empresas japonesas), em informações traduzidas pelo portal do Serkan Toto: os lucros líquidos da empresa subiram no ano fiscal de 2018, para 124 milhões de dólares (preços de 2019) — um crescimento em relação ao ano anterior de cerca de 50%.
Esse resultado não inclui receitas relacionadas a rede de lojas Pokémon Center, cujas operações são controladas por uma empresa separada, porém de controle acionário total da Pokémon Company. Não sabemos quanto desse lucro é destinado a reinvestimento, quanto é distribuído à Nintendo, à Game Freak ou à Creatures, Inc.
No ano fiscal de 2020, a Pokémon Company obteve um lucro líquido estimado de 170 milhões de dólares. Até então, seu maior lucro líquido da história, isso mesmo sem o impulsionamento de grandes lançamentos da franquia de jogos no período e com todas as dificuldades de cadeia produtiva que acometeram o período e, por óbvio, afetaram a produção e venda de merchandising.
No ano fiscal 2021, tivemos mais uma vez um lucro recorde para a empresa, dessa vez alavancado por um calendário de lançamentos expressivo, com Pokemon Snap (abril de 2021), Pokemon Brilliant Diamond & Shining Pearl (novembro de 2021) e Pokemon Legends: Arceus (janeiro de 2022).
No ano fiscal de 2022, que se encerrou no dia 31 de março de 2023, a Pokémon Company apresentou, mais uma vez, um recorde em seus resultados financeiros, alavancado pelo lançamento de Pokémon Scarlet& Violet (novembro de 2022), além do constante sucesso de Pokémon Go e do TCG. Podemos observar essa evolução dos últimos anos no gráfico abaixo, em dólares:
A empresa tem vivido um crescimento expressivo, e tem sido capaz de manter o momentum de sua propriedade intelectual com bastante competência; é esperado que tenhamos resultados robustos para o ano fiscal de 2023.
Apesar de não ter nenhum lançamento grande previsto em termos de jogos, a empresa contará para o ano fiscal de 2023 com o lançamento das DLCs de Pokémon Scarlet & Violet (que tem um potencial de vendagem significativamente inferior, mas ainda importante), acordos comerciais relacionados à nova série animada de TV, Pokémon: Horizontes, e o lançamento de Pokémon Sleep.
A Creatures, Inc é uma empresa “sucessora” da Ape, uma desenvolvedora de jogos eletrônicos que a Nintendo tinha uma participação minoritária — pelo que entendo, a transição utilizou o método da dissolução, no qual a Ape foi dissolvida e o capital utilizado para abertura da Creatures, Inc em 1995, empregando boa parte dos antigos funcionários.
A Nintendo continuou a ter uma participação minoritária não publicizada da Creatures, Inc, mas existem informações duvidosas apontando para 10%. Outra empresa com ligações à Nintendo, na qual ela também tem uma participação minoritária não-publicizada, a HAL (inclusive, seu fundador chegou a ser CEO da Nintendo), ajudou a reestruturar a Ape em Creatures, então é possível que eles possuam uma participação acionária na empresa.
Hoje, a Creatures é encarregada do cardgame de Pokémon, designs de personagens e trabalha como terceirizada para a Game Freak, auxiliando no desenvolvimento dos jogos de Pokémon desenvolvidos por ela. A empresa tem 144 funcionários, e tinha sua sede, até pouco tempo atrás, no Nintendo Kanda Building, edifício de propriedade da Nintendo, localizado no distrito de Kanda-Sudachō, em Tóquio. Hoje a sede é no Kawasaki Teitoku Building, no distrito de Nihonbashi, também em Tóquio. Esse prédio abrigou, anteriormente, a primeira varejista da rede Pokémon Center.
A Game Freak foi fundada de maneira independente em 1989. Pokémon, em específico, foi apresentado enquanto uma proposta diretamente para Nintendo, o acordo entre eles não é público, mas acredita-se que a divisão sobre a propriedade intelectual de Pokémon venha desse investimento inicial oferecido.
Também não existem informações consistentes sobre isso, mas acredita-se que a Nintendo tenha, também, uma participação minoritária da Game Freak, originário desse investimento nos momentos seminais da empresa.
A Creatures, Inc entrou na jogada provavelmente com algum suporte em desenvolvimento de designs e com o desenvolvimento do primeiro produto secundário de Pokémon, o jogo de cartinhas, lançado no mesmo ano do primeiro jogo de videogame.
A Game Freak, hoje, tem 169 funcionários e tem sua sede no Kanda Square Building, prédio de propriedade da Nintendo que também abriga os times Nintendo EPD Tokyo e Nintendo PTD Tokyo, além das empresas HAL Laboratory e 1-Up Studio.
Agora chegamos no ponto final: mas quem diabos decide o que acontece em Pokémon? A minha resposta tende a ser a Nintendo, e somente a Nintendo. Mas por quê?
Agora vamos a segunda explicação super chata que vai amarrar todo o raciocínio conduzido até aqui: a Nintendo atua com a estrutura similar a de um keiretsu.
Sem me alongar muito, keiretsu é um tipo de grupo econômico que surge no Japão com a dissolução forçada dos zaibatsu, conglomerados econômicos de grande extensão controlados por uma família (resumidamente). Os keiretsu são resultado dessa dissolução forçada, caracterizados por um grupo de empresas legalmente independentes que atuam de maneira coordenada.
Com essa dissolução, as empresas acabaram mantendo elos informais e gerando esse ambiente de gravitação em torno de um grupo informal, legalmente independente, atuante em diversos setores — setores esses muitas vezes não relacionados, centrados normalmente em um empresa de tamanho significativo, um banco ou algum fundo de investimentos, além de uma empresa que controla as exportações de todo o grupo.
Esses grupos têm seus laços “efetivados” através de posse-cruzada de ações entre as empresas, em proporções que podem ser grandes ou pequenas, mas normalmente são pequenas. Os acordos e definições estratégicas são originários de encontros informais entre os presidentes e diretores das empresas envolvidas.
Os keiretsu estariam mais próximos de uma aliança estratégica do que um grupo de coordenação vertical e horizontal, como os chaebol da Coreia do Sul.
Outra prática “típica” dos keiretsu é as empresas dividirem o mesmo prédio para suas sedes, simbolizando a união e simplificando a possibilidade de acordos táticos (no mundo de hoje, mera formalidade).
Acredito que seja possível ver certas similaridades entre o descrito para os keiretsu e a história contada até aqui.
Obviamente, a Nintendo não é um keiretsu tradicional, não tem relações com uma entidade do mercado financeiro e nem mesmo uma empresa de exportações centralizada, além de, obviamente, atuar majoritariamente no setor de jogos eletrônicos.
Mas as estruturas organizacionais das empresas têm forte relação com a forma como se faz negócios no país, e por boa parte do século XX e de certa forma até os dias de hoje, os keiretsu foram o principal modelo organizacional no país, em termos de extensão e influência. Dessa forma, é extremamente provável que a Nintendo exerça esse controle tácito e ordenamento estratégico sobre todas as empresas referidas nesse texto.
A Nintendo tem participações minoritárias não declaradas de todas elas, tal como elas atuam quase que com total exclusividade como parceiros da Nintendo, além de literalmente estarem no prédio que é considerado a “sede de Tóquio” da Nintendo (que tem sua sede administrativa oficial em Quioto).
Obviamente, essas empresas são legalmente independentes, e têm corpos administrativos próprios, então certamente existem etapas do processo decisório que são tomadas diretamente em cada uma, sem a necessidade de uma ação mais orquestrada. Esses processos automatizados, do dia-a-dia, são, sem dúvidas a maioria, porém, decisões críticas, nesse tipo de organização, são tipicamente tomadas em forma de coalizão e coordenação.
Dessa forma, é possível, sim, dizer que: efetivamente, Pokémon é da Nintendo, todas as empresas envolvidas no processo são “subsidiárias informais” da Nintendo, em um modelo que muito se assemelha a um keiretsu.
Sendo assim, pode-se supor que uma ordem de “poder” em relação às empresas relevantes para o tema “Pokémon” seria: Nintendo > Game Freak = Creatures, Inc > The Pokémon Company — isso em termos práticos, não quero dizer que as decisões do dia a dia seguem essa escala, mas obviamente se qualquer um ali estiver insatisfeito com algo em Pokémon, essa seria a ordem de “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Enfim, espero que tenha conseguido elucidar um pouco sobre como (provavelmente) funciona a “máquina” Pokémon do viés de estrutura de negócios. Como eu disse, é algo difícil de identificar com precisão, mas acredito ter chegado perto. Como alguém que, em alguns momentos, estudou especificamente os keiretsu, me pareceu um caso de estruturação similar.
Existem alguns grupos de empresas no Japão, grandes porém fortes apenas em um ou poucos setores, que acabam se estruturando dessa maneira, típica dos keiretsu, mesmo que formalmente não os sejam. Além disso, o modelo tradicional de subsidiárias, típico dos conglomerados euro-americanos, é pouco usual no capitalismo do leste asiático, algumas vezes surgindo apenas por pressão de reguladores.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade de seu autor e não refletem necessariamente a opinião do site JBox.
Serkan Toto não é um portal, é uma pessoa, o analista e dono da Kantan Games.
E Satoru Iwata não foi um dos fundadores da HAL, apesar de ter entrado na empresa bem no início.
E sobre a última parte, pelo que o próprio CEO da TPC(Ishihara) disse no passado, é ele quem dá as cartas, chegando a duvidar do sucesso do Switch e por isso focando os jogos derivados em celular. Se fosse a Nintendo, com certeza teria algum tipo de Pokémon para alavancar o Wii U.
Fanboy de Nintendo tudo chorando porque será mesmo
Bom ponto sobre o Wii U, mas também se o Ishihara tivesse bancado o ceticismo dele em relação ao Switch, será que estaríamos vendo essa cacetada de Pokémons ruins no console? Eu não sei se ele dá as cartas tão sozinho assim. Aliás, isso só me deixa mais confuso em relação ao tema da matéria.
Achei esse artigo muito interessante e um bom primeiro post, Bruna, espero que volte mais vezes ♥
Artigo bacana. Mas o ano fiscal japonês se encerra no dia 31 de Março.
Muita complicado, no geral é a Pokémon Company e pronto, quem manda nela não importa.