De tempos em tempos, determinados animês, mangás, etc. despontam como temas de discussões acerca das escolhas temáticas de seus realizadores para tais obras. The Rising of the Shield Hero, Shuumatsu no Harem, Tokyo Revengers, Attack on Titan, Redo of Healer, Goblin Slayer e Darling in the Franxx são alguns exemplos recentes.
Atualmente, a animação que parece despertar debates acalorados é Mushoku Tensei: Jobless Reincarnation, que está em sua segunda temporada, já com sete episódios exibidos até o momento em que esse texto é escrito. Muito disso devido a declarações dadas pelo autor de sua web novel, Magonote na Rifujin; muito também pela forma como a história vem se desdobrando nesse arco.
Antes de seguir com o texto, deixe-me abordar dois elefantes brancos na sala.
O primeiro é o de que ficção é, huh, ficção. É “de mentirinha”. É algo que sai da imaginação de um autor, que, a partir de convenções da nossa realidade, cria seu próprio universo, personagens, regras e uma história nele. Na ficção, tudo pode acontecer, porque as coisas nela não acontecem de verdade. Não é uma reportagem, não é um documentário. Grande parte da graça da existência da ficção é, justamente, não haver amarras nela, é ela depender única e exclusivamente da imaginação do autor. E querer delimitar o que pode ou não acontecer em ficções é censura, não há outro nome para isso.
O segundo é de que Mushoku Tensei é uma péssima obra de ficção. Não pelas escolhas temáticas na trama que apresentam questões muito ruins desse lado da tela (porque, de novo, é ficção, elas não acontecem de verdade), mas por a história ser fraquíssima, repetitiva, desinteressante e por aí vai.
Agora, me deixe explicar essas questões ruins no mundo real e o porquê de o animê ser uma das maiores chatices da atualidade. E adicionar ainda que, se não fosse pelas polêmicas, ele provavelmente nem despertaria qualquer interesse do público geral.
Um dos pais dos isekais, Mushoku Tensei conta a história de um NEET (acrônimo para “Not in Education, Employment, or Training”, uma pessoa que não estuda e nem trabalha, aqui chamamos “nem-nem”) de 34 anos que, após um momento de introspecção, se sente mal por não conquistar nada em sua vida.
Em dado deslumbre, ele tenta salvar alguns adolescentes de serem atropelados por um caminhão e, nisso, é morto no acidente. Momentos depois, ele renasce como um bebê chamado Rudeus, consciente de seu passado, num mundo de Espada e Feitiçaria. Aí, acompanhamos sua trajetória crescendo como um mago e tentando alcançar um futuro mais significativo do que teve em sua vida passada.
Ocorre que Rudeus não é exatamente uma pessoa boa. Na verdade, o cara possui um lado bem sombrio. E nesse novo mundo, ele renasce em uma posição privilegiada, de modo que ele pode, através desses privilégios, usufruir de uma moralidade que, em sua vida passada, era vista como ruim, mas aqui é premiada. Coisas como diferença de classes, raças serem consideradas superiores e inferiores, escravidão e estupro de mulheres e vulneráveis são normalizadas em tal universo idealizado em Mushoku Tensei. E Rudeus aproveita isso.
Narrativamente, talvez isso renda a coisa mais interessante do animê. A história parece 100% ciente de que retrata uma pessoa horrível sendo feliz em uma posição de dominância num ambiente igualmente horrível. Então, é como se acompanhássemos, de um jeito bem voyeurístico, essa situação. Tipo ver um filme pornô profissional pesado, com os atores praticando coisas que não faríamos, que talvez nem nos excitem de verdade, e sim causam um desconforto pela curiosidade culposa.
Isso é algo que o diretor, Hiroki Hirano, e o roteiro de Toshiya Ono, a partir do material original da novel, trabalham bem. Nesses primeiros episódios da segunda temporada, rolam, ao menos, duas situações destacáveis pelo puro amoralismo em relação a esse lado da tela.
Numa delas, Rudeus, junto de outros dois personagens, Fitz/Sylphiette, amiga de infância e interesse amoroso do protagonista, e Zanoba, que moram em uma escola de magia, decide que a melhor maneira de ajudar o último com sua inabilidade para confeccionar action-figures é comprar um escravo que fará esse trabalho por ele.
Os três, então, vão a um mercado de escravos e compram uma criança da raça anã, por motivos puramente práticos de investimento: por ser uma anã, ela terá mais habilidades manuais, e por ser criança, terá uma facilidade maior em aprender as magias necessárias para produzir as figures.
Em outra, também por conta de action-figures, Rudeus, sequestra duas estudantes, as amarra em seu quarto e importuna sexualmente uma delas na frente dos amigos (ele lhe apalpa os seios). Ele as deixa trancadas, sem comida, durante um dia inteiro. Quando retorna, a “câmera” mostra que elas estão fracas e urinaram no local. Como moeda de troca, uma delas diz que ele poderá abusar da outra caso ele as liberte.
Fitz, que é uma mulher, Sylphiette, disfarçada de homem, reforça os maus-tratos para que as duas se portem dum jeito mais submisso. No fim, isso dá certo, e eles se dão bem em cima delas, que ainda desenvolvem respeito por Rudeus pelas atitudes.
Mas não ache que esse é um animê que promove ideias ruins, ou mesmo que “passa pano” para elas. Como disse, é uma história sobre alguém ruim, em um lugar ruim, que permite que ele faça coisas ruins sem peso na consciência ou julgamentos morais. O roteiro, que é consciente disso, adiciona um elemento para enfatizar que Rudeus merece, sim, ser castigado: ele é broxa.
Sendo, basicamente, um avatar dos comportamentos “channer“, “redpill“, “masculinista” e demais tribos que surgem com os anos na internet e reúnem todo tipo de cara frustrado com o próprio desempenho em um mundo que não necessita de verdade deles, Rudeus, depois de uma desilusão amorosa, não consegue transar casualmente. A oferta para ele é grande, poderia ter quase qualquer garota que quisesse, mas seu rudeusinho não levanta.
Ou seja, mesmo num mundo em que todos os fatores lhe são favoráveis e suas maiores fantasias de poder podem ser realizadas, Rudeus segue tão sexualmente frustrado quanto um troll de internet que hoje estaria reclamando do filme da Barbie ou algo do tipo.
Só que os pontos de interesse narrativo do animê terminam aí. Porque a história mesmo é de uma chatice tão mole quanto a bilolinha do protagonista.
Tal como acontece na primeira temporada (leia aqui a crítica feita na época), a trama de Mushoko Tensei é uma eterna corrida atrás do próprio rabo. Por lá, o mesmo plot de aluno aprendendo com o mestre ocorreu três vezes seguidas. Aqui, isso parecia que ia mudar a partir do arco inicial, com Rudeus em outro lugar, vivendo aventuras com uma party em estilo RPG para fazer seu nome. Em paralelo, Sylphiette é (literalmente) jogada em uma novela política palaciana, bem diferente do resto, e dando a impressão de que agora a história engataria.
Contudo, episódios depois, Rudeus se matricula em uma escola de magia, para qual Sylphiette também vai e, de novo, pela quarta vez, somos aterrorizados com o mesmo clichê narrativo de estudantes desenvolvendo suas habilidades. É repetitivo, é chato e dá a sensação de que as coisas não saem do lugar.
Fica a impressão de que, não fossem os pontos polêmicos que despertam questionamentos, Mushoku Tensei passaria incólume pelo radar de animês dessa temporada. A história não engaja, não segue, não evolui, não escala, não muda.
O desenho num todo parece, então, uma moldura para a vontade de retratar uma realidade idealizada por uma fatia de público reacionária que domina certos ambientes online. Realidade essa onde quase toda fantasia de poder perante mulheres e minorias é realizada. Menos a sexual, pois a sexual é utilizada, justamente, como ponto para criticar tal público.
Mas de que adianta uma ideia crítica boa desenvolvida num produto tão fraco? É conceito demais para entretenimento de menos.
Mushoku Tensei é exibido pela Crunchyroll com legendas em português de forma simultânea com o calendário japonês, e com dublagem em modelo expresso. A empresa fornece ao JBox um acesso à plataforma.
O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.