Na última quinta-feira (26 de outubro), o termo “dorama” foi oficialmente integrado à língua portuguesa pela Academia Brasileira de Letras (ABL) e a notícia gerou bastante comoção na internet — o processo é chamado de “dicionarização”, pois a palavra vira um verbete no “dicionário oficial” da língua.
A palavra foi incorporada ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp, para os íntimos) com a definição de “obra audiviovisual de ficção em formato de série produzida no leste e sudeste da Ásia”.
O uso da expressão, advinda do japonês, foi criticado por membros da comunidade, estudiosos e entusiastas da cultura sul-coreana. Segundo eles, a escolha pelo termo seria tratar todas as produções leste e sudeste asiáticas como se fossem “a mesma coisa”, desconsiderando as diferenças culturais de cada país e sendo, portanto, generalizante e orientalista.
Na verdade, já em abril do ano passado o Centro Cultural Coreano publicou um aviso em seu site explicando que o termo correto para se referir às novelas sul-coreanas seria “drama” e não “dorama”.
De fato, por mais que enquanto brasileiros nós tenhamos contato por mais tempo com a expressão “dorama”, a escolha dessa palavra para definir todo um grupo de produções asiáticas é, no mínimo, controversa.
Principalmente quando levamos em consideração o passado colonialista que o Japão tem com seus vizinhos do leste e do sudeste, em especial a própria Coreia do Sul, ocupada pelo Japão pelo menos de 1910 a 1945, embora alguns argumentem que o domínio japonês começou alguns anos antes (a do Norte também foi, já que na época existia apenas uma Coreia só, com o território dos atuais dois países).
Entretanto, existe mais um fator na controversa escolha da ABL, algo que é quase irônico. O termo “dorama” é a pronúncia da palavra “drama” do inglês segundo a fonética japonesa. No Japão, os doramas são produções televisivas episódicas e a palavra é usada para se referir a esse tipo de produção audiovisual japonesa, sul-coreana ou brasileira. Resumindo, dorama, no Japão, é uma palavra genérica como “novela” ou “série”. Ela designa um tipo de produção, mas não atribui nenhuma origem específica.
Portanto, enquanto no Japão o uso de “dorama” faz uma generalização pela forma, adotar o termo no Brasil cria uma generalização cultural o que é, como bem afirmam os críticos, orientalista. Porém, toda essa discussão gerada pela escolha mal pensada da ABL nos permite refletir como nós, pessoas não leste-asiáticas, pensamos as produções culturais dos países dessa região.
No início desse ano, a tradutora de literatura japonesa Rita Kohl deu um curso pela plataforma Momonoke intitulado “Tradução de literatura japonesa: reflexões e debates”. Nesse curso — e por vezes em suas redes sociais também — Rita comenta como normalmente a gente acaba querendo manter muito o nome “original” para “coisas japonesas”. O distanciamento geográfico faz com que a gente enxergue tudo como “muito diferente”, como se “não houvesse um equivalente” em português para aquelas palavras.
Acontece que, geralmente, esse pensamento se dá por duas posturas: preciosismo e exotismo. Com advento da internet, podemos apontar também o contato com estrangeiros em redes sociais e fóruns online, mas não podemos negar que mesmo quando esse contato não é com anglófonos, é pelo menos via sites em inglês, o que por si só configura um olhar “ocidental” (euro-americano) da coisa, por assim dizer. Portanto, vamos conduzir a discussão considerando o preciosismo e o exotismo.
O preciosismo acontece, por exemplo, em traduções. Quando você consome alguma mídia na língua original, geralmente, você deseja que todas as pessoas que consumirem aquilo tenham a mesma experiência e entendam todos os detalhes. O tradutor vive um eterno dilema de perda, ele sempre precisa escolher do que ele vai abrir mão. Às vezes se deseja muito que o espectador final entenda aquele detalhe específico, mas no fim das contas aquilo nem é tão importante.
É claro que o “preciosismo” não é inerentemente ruim. A escolha por uma tradução mais estrangeirizante pode ser importante a depender do público-alvo, do motivo pelo qual aquela obra está sendo licenciada no Brasil ou da própria concepção de tradução e o que o tradutor deseja com o seu trabalho (confira um pouco sobre o uso de honoríficos em dublagem aqui).
Porém, algumas vezes, o “preciosismo” acaba sendo um clamor do próprio público, como a curiosa fixação que alguns otakus têm com o uso de honoríficos nas traduções para o português, independente do peso que eles tenham na obra em questão. Esse preciosismo, entretanto, é diferente do descrito acima. Ele não vem de um posicionamento enquanto tradutor nem de um desejo por fidedignidade, ou mesmo uma dificuldade tradutória.
O preciosismo desse público parte de uma vontade de se “aproximar da cultura japonesa”, mas o que ele faz é revelar um desconhecimento cultural e linguístico, pois essas pessoas não concebem a ideia de que em alguns casos a presença de honoríficos na obra só existe porque ela se passa no Japão. Não é nada assim tão importante.
É nesse momento que tal preciosismo acaba apenas por acentuar uma diferença que é real, mas menor do que aparenta, e cai na ideia de que “precisamos de um nome específico, porque é muito específico e diferente”.
Em paralelo ao preciosismo, nós temos o exotismo que pode ser até mesmo inconsciente. O fato de se tratar de outro país e outra cultura nos leva a pensar que tudo é muito distante do nosso entendimento. Entretanto, isso só acontece porque, ainda que inconscientemente, a gente acha aquilo tudo meio exótico e diferente.
O exotismo não se manifesta apenas como uma repulsa que considera as culturas e as pessoas do leste-asiático esquisitas e desagradáveis, mas também como uma admiração cega que vê importância e sacralização em coisas que nessas culturas são completamente cotidianas e ordinárias.
É daí, principalmente, que advém esse pensamento de que as produções culturais do Japão — e de demais países leste e sudeste asiáticos — precisam ter um nome específico. É curioso que esse “nome específico” adotado é frequentemente uma palavra genérica para designar aquele tipo de mídia na língua original.
O quadrinho japonês se chama mangá, que é a palavra em japonês para história em quadrinhos. O desenho animado japonês se chama animê, que é a palavra japonesa para desenho animado. Entretanto, a gente não chama os quadrinhos franceses por uma palavra francesa, nem os filmes espanhóis por uma palavra em espanhol. E por quê? Oras, porque o quadrinho francês é só uma história em quadrinhos feita na França, mas o mangá é visto como algo muito diferente e distante dos nossos quadrinhos.
Porém, do outro lado, não acontece o mesmo fenômeno. Os japoneses gostam bastante de novelas e curiosamente, ou não, uma das formas de se referir a Avenida Brasil é “burajiru dorama”, ou seja, “dorama brasileiro”, pois “dorama” é a palavra mais próxima que eles têm de “novela”.
Veja bem, esse texto não tem a intenção de fazer ninguém parar de falar “mangá”, “animê”, “dorama” — para as novelas japonesas especificamente — nem nenhum outro termo já amplamente conhecido e consolidado, mas sim refletir sobre os motivos que nos levam a escolher nomes específicos para produções leste-asiáticas.
A verdade é que nós, enquanto “ocidentais”, temos por vezes uma dificuldade, ainda que inconsciente, de enxergar as pessoas do leste-asiático apenas como pessoas. Por vezes, parece que isso é quase impossível. Social e culturalmente falando, é como se os países do leste asiático só pudessem ser vistos como esquisitos ou como exuberantes e “sacralizados”, nunca como sociedades cujos hábitos e costumes são reflexo de seus processos históricos — assim como todos os países do mundo.
Essa noção exotizante acaba se estendendo para a maneira que enxergamos as produções culturais desses países também. É claro que um livro japonês, um filme chinês ou uma poesia coreana são diferentes das produções brasileiras, ou americanas, mas todas as produções culturais são assim.
Culturas diferentes pensam, enxergam, percebem e resolvem questões subjetivas, ou não, de maneira distinta. Isso é perfeitamente normal, é esse o motivo pelo qual levamos em consideração o contexto de produção ao analisar uma obra. Entretanto, isso não necessariamente significa que precisamos inventar uma nova palavra a cada vez para nomear uma manifestação cultural de um país distante, principalmente quando já temos uma palavra para isso que define nossas próprias produções cultuais semelhantes.
Se a intenção é desconstruir nossas ideias orientalistas e passar a enxergar os países, os povos e as culturas leste e sudeste asiáticos pelo que eles são e não pelas concepções que um dito ocidente tem deles, talvez esteja na hora de mudarmos a maneira como enxergamos as nossas diferenças e nos perguntarmos: isso é mesmo tão inexplicável e distante?
A imagem de capa do texto é uma cena da série chinesa Jardim de Meteoros, uma adaptação live-action de Hana Yori Dango, exibida em 2018, sendo também um remake da série taiwanesa de 2001.
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Ué, é tudo novela. Só chamar como tal