Recentemente, a Netflix lançou o animê PLUTO. Essa é uma adaptação do mangá seinen de mesmo nome, publicado entre 2003 e 2009, escrito por Naoki Urasawa, também conhecido por obras como Monster e 20th Century Boys. PLUTO é uma releitura de uma saga de Astro Boy (no original, 鉄腕アトム, “Poderoso Atom”, ou mais literalmente “Atom do Braço Forte”), gibi clássico do “deus dos mangás” Osamu Tezuka, publicado entre abril de 1952 e março de 1963.

Como diz uma piada que circulou no Twitter esses dias, é tipo uma Graphic MSP, onde o autor pega os personagens e conceitos principais e os trabalha numa abordagem diferente. Aqui, mais adulta, reflexiva e crítica.

A fim de esclarecimentos prévios: embora o Naoki Urasawa seja aclamado, inclusive, por pessoas de fora do nicho otaku (principalmente pelo mangá de Monster), até assistir a esse animê, ainda não havia tido contato com sua obra. E embora Astro Boy seja um desses quadrinhos seminais para quem acompanha a nona arte nipônica, também nunca o li.

Mas se esse também for o seu caso, não se preocupe. Para assistir a PLUTO, não é necessária uma bula, ou quaisquer conhecimentos prévios. A história é contida em si mesma. E o bom de ter seu primeiro contato com algo através de uma adaptação (aqui, a adaptação da adaptação) é a possibilidade de, depois disso, ir conferir os materiais que lhe deram origem.

imagem: cena de pluto mostrando gesicht apontando uma arma.

Reprodução: Netflix

Na trama, um assassino em série misterioso, denominado como “Pluto”, tem atacado os robôs mais avançados do planeta. Em paralelo, um cientista famoso ligado às leis internacionais de proteção aos robôs é morto. Pode ser que haja ligação entre esses dois casos, e que o culpado seja um robô. Para cuidar disso, a Europol envia Gesicht, justamente, um desses robôs mais avançados, e consequentemente possível alvo do serial killer.

Gesicht precisa então juntar as peças dos ataques, ao mesmo tempo em que lida com os eventuais alvos, e que tenta resolver mistérios causados por buracos na memória de sua própria inteligência artificial. Além disso, é possível que toda essa teia de eventos esteja relacionada a uma guerra ocorrida anos antes, que resultou num genocídio de robôs.

Posto isso, PLUTO é um animê mais interessante do que bom. Porque as coisas que ele propõe levantam boas discussões. Mas a maneira como tudo é contado mais cansa do que empolga.

O roteiro nos apresenta uma parábola antirracista bastante tocante. Para discutir como determinados indivíduos de determinadas etnias se consideram membros de uma raça superior  — e calham por desumanizar, em diversas ocasiões, pessoas de outras etnias –, a história opta por humanizar, literalmente, não humanos.

imagem: cena de pluto mostrando atom comendo um sorvete.

Reprodução: Netflix

No mundo retratado em PLUTO, a tecnologia já se desenvolveu o suficiente para que quase não existam diferenças aparentes entre humanos e máquinas. Isso ocorre em questão de inteligências artificiais, com mesmo os robôs mais, ahn, “robóticos” falando, se comportando e alegando sentirem emoções como raiva, ódio, tristeza e solidão. E isso ocorre também em questão de estética, com os mais avançados sendo visualmente idênticos a humanos de verdade, com a habilidade de sorrir e vertendo lágrimas quando choram.

Daí, o debate: robôs devem ter os mesmos direitos de humanos? Na história, o curso parece positivo às máquinas. Foram criadas leis que guardam elas de discriminações. Agora, elas têm o direito de adotar crianças robôs como filhos. E um tribunal para julgar um genocídio de soldados robôs em uma guerra vem ocorrendo.

Mas existe resistência. Uma espécie de organização/seita, com alguns signos visuais que remetem à Ku Klux Klan, opera nos bastidores a partir de uma visão antirrobôs. E um membro proeminente dela, que cruza o caminho de Gesicht, literalmente se chama Adolf.

E essa resistência também aparece socialmente, em atos mais velados. Por exemplo, em dado segmento, Adolf e sua esposa estão jantando num restaurante luxuoso. Lá, está também um robô em uma das mesas. A esposa comenta a presença dele ali, mas Adolf alerta para que ela tenha cuidado, pois falar daquela maneira poderia ser visto como preconceito.

imagem: imagem: cena de pluto mostrando épsilon e crianças.

Reprodução: Netflix

Há também outra passagem bem significativa. Um dos sete robôs mais avançados do mundo, Épsilon, é um pacifista, e se absteve na guerra ocorrida anos antes. Contudo, uma missão que lhe é proposta depois que os combates estão encerrados é apagar um vilarejo, que havia sido feito de campo de batalha. O militar responsável por passar as instruções aponta a “covardia” de Épsilon ao não lutar, e faz questão de diminuir, para ele, os corpos de outros robôs que estão estirados ali.

Pro militar, humano, é só lixo. E para esse militar, aparentemente, mesmo humanos daquele país também não são humanos o suficiente, já que ele dá a ordem da missão mesmo com o Épsilon detectando que há uma criança perdida entre os escombros. Essa parece ser também uma metáfora antiguerra, que remete à guerra do Iraque, dado o visual parecido com o do país do Oriente Médio onde se passou o conflito, e por o adversário ter sido os Estados Unidos (da Trácia).

A crítica contra a guerra se estica por todo o animê, pois muito do que de ruim acontece, na verdade, é consequência dessa guerra mencionada, ou de desejos nefastos de dominância por parte de determinados senhores da guerra. Personagens são glorificados por seus movimentos antiguerra (caso do Atom, mas já chego nele), enquanto outros seguem traumatizados por ela (caso do menino encontrado por Épsilon, que só consegue repetir a mesma palavra desde então).

Dá para fazer um paralelo mais óbvio com a guerra do Iraque, o que me parece ter sido a ideia do autor, mas também é possível aplicar isso a quaisquer outros conflitos. Só pensar nos dois mais recentes que ganharam a atenção da mídia.

Difícil buscar qualquer argumento mais político para justificar os ataques da Rússia à Ucrânia com a imagem de milhares de civis sendo obrigados a deixarem suas casas em busca de abrigo em outros países da Europa. Do mesmo modo que é difícil não achar desumano o que Israel vem fazendo com os palestinos na Faixa de Gaza. Guerra sempre é horrível e sempre deixa marcas naqueles que são mais afetados por ela.

imagem: cena de pluto mostrando idoso sentado em cadeira e talvez um robô, em jardim.

Reprodução: Netflix

O que PLUTO faz é ilustrar esse aspecto humano, em guerras literais ou em conflitos sociais diários, através de robôs. É dos robôs que vêm comportamentos que são considerados mais humanos, como manifestar a felicidade, a tristeza, praticar a caridade, a empatia, se afundar a mágoa, e se apegar à esperança em seguir em frente.

É no desenvolvimento dessa “humanidade robótica” que está o que de melhor há nesse animê. O segmento do primeiro episódio, com o North No. 2, é um dos negócios mais tocantes que assisti nesse ano. Sendo um dos mencionados robôs mais avançados do mundo, North No. 2 se candidata para trabalhar como mordomo de um compositor cego, que odeia robôs, em uma mansão isolada.

Criado como uma máquina de destruição em massa, ele se arrepende do tanto de outros robôs que destruiu durante a guerra. Isso é algo que o assombra desde então. Como uma espécie de tratamento, North No. 2 descobre o amor pela música. A música é a válvula de escape para o horror que ele carrega. E é logo quando as coisas começam a dar certo entre ele e o compositor que ele é atacado por Pluto. O final é de cortar o coração.

Outro que tem sua humanidade bem desenvolvida é o já citado Épsilon. Um pacifista, após presenciar o que de pior pode acontecer com robôs e humanos na guerra naquela sua missão de apagar do mapa aquele vilarejo, ele decide fundar um orfanato para crianças que perderam tudo na guerra. E é justamente nesse amor pelas crianças que mora sua maior fragilidade. Enquanto apenas máquina, não existiria nele qualquer fraqueza. Mas ter uma ligação afetiva é um ponto fraco que é usado por Pluto quando chega sua vez.

imagem: cena de pluto com brando voltando para casa e abraçando seus filhos.

Reprodução: Netflix

É mais ou menos nessa pegada que opera a humanidade de Brando. Outro dos robôs mais poderosos da Terra, ele tem uma capacidade de luta gigantesca, e que foi bem aproveitada durante a guerra. No momento, ele ganha a vida em brigas esportivas de mechas. Antes, ele tinha um pensamento mais livre, não tinha medo da morte. Só que adotou um monte de filhos com sua esposa. Então, a partir daí, ele tem para quem voltar, pessoas que dependem dele.

Gesicht e sua esposa talvez tenham um dos arcos de humanização mais deliciosamente desconfortáveis. Durante toda a série, entendemos que “falta” algo ali, que é como se algo na memória deles tivesse sido apagado. E isso perturba Gesicht fisicamente. Surgem flashes de um catador de sucata dando o preço de um corpo. Só no fim descobrimos o que está faltando, e que isso que foi retirado demonstra onde ele, mais do que todos, cruzou a linha entre mecânico e humano.

Em ideias, conceitos, em abrir discussões para esse lado da tela através de sua diegese, PLUTO é extremamente competente. O problema é o modo como isso é contado, sua narrativa. E as falhas em seu roteiro que comprometem a experiência do espectador.

Contar a história de oito volumes de um mangá em oito episódios de mais ou menos uma hora cada torna essa uma viagem bem trabalhosa de embarcar, pelo menos da maneira como ela foi concebida para ser consumida. Nessa longa duração (que imagino que cubra um volume por episódio), arcos narrativos diferentes são abertos e fechados. O nível de informação passada é grande. E levando em conta que isso é um thriller dramático composto, na maior parte do tempo, por diálogos duros, engajar num episódio inteiro é cansativo.

imagem: cena de pluto mostrando noticiário.

Reprodução: Netflix

O problema aumenta quando algumas decisões de roteiro soam confusas. O arco do Atom (o Astro Boy) é esquisito. É dito que ele é um dos robôs mais famosos do planeta, pois teve envolvimento com o cessar-fogo na guerra. E quando algo grave ocorre com ele mais pra frente no desenho, é noticiado internacionalmente. Mas nunca é mostrado o que o Atom fez. Nunca é mostrado o quanto ele é famoso. Nunca é mostrado o porquê dele despertar essa comoção pública. E sequer é mostrada essa comoção pública. Isso só é dito.

Há um segmento todo que também é muito estranho. Como dito parágrafos atrás, o Épsilon monta um orfanato onde ele acolhe crianças que perderam suas famílias na guerra. O menino que ele salva dos escombros antes de apagar do mapa o vilarejo está traumatizado e só consegue repetir uma palavra. Em dado momento, os vilões decidem levar esse garoto, e isso ocorre por meio de uma adoção pelas costas do Épsilon, com um milionário que se oferece para doar uma quantia grande de dinheiro ao orfanato.

Mas nada do que acontece daí em diante faz o menor sentido. As duas babás humanas que estão no orfanato naquele momento simplesmente entregam a criança depois de um papo sobre o Épsilon não ser apto a cuidar de crianças por ser um robô, e não parece ser de um jeito onde elas são corrompidas pelo dinheiro nem nada. O orfanato sequer parece precisar de dinheiro. Qual o sentido de deixarem a criança mais fragilizada da instituição ser levada assim, sem nem consultar o responsável por ela? É muita conveniência de roteiro.

E (alerta de spoiler) talvez seja desatenção minha, mas qual mesmo a ligação do “vilão secreto” que surge ao final com os planos envolvendo o Pluto? A premissa é boa: uma inteligência artificial fazendo com que um chefe de Estado arme para eliminar os robôs mais poderosos de outros países com a desculpa de que isso é para que ninguém desafie sua soberania, mas na verdade isso é um grande plano para que ninguém tenha poder para impedi-la de extinguir a vida humana na Terra. Mas o jeito que isso é ligado ao que está ocorrendo é meio forçado, não parece um plano redondo, sim uma imposição de quem escreve a história.

imagem: cena de pluto mostrando robôs como alvos.

Reprodução: Netflix

Também rola um desleixo com o arco da organização antirrobôs, que se mostra um dos grupos mais burros que assisti em animês na vida. É desenhado um plano para virar a opinião pública contra robôs utilizando a figura do Gesicht. Mas quando o Adolf ameaça assassinar o investigador da EUROPOL (mas não o mata, pois não tem coragem), quaisquer rastros de bom senso são deixados de lado.

Adolf se torna inimigo número um da organização a qual ele faz parte, mesmo ele não tendo matado o Gesicht, e o que era uma ideia de moldar os pensamentos da população vira uma caçada ao próprio humano que era fiel à causa. Como o animê é longuíssimo, e com um ritmo tão arrastado, fica difícil entender o porquê de deixarem essas pontas soltas. Tempo de tela teria para cobrir.

Nisso, PLUTO parece uma aula universitária sobre semiótica, onde o professor utilizaria as metáforas desenvolvidas aqui para explicar como autores utilizam signos em suas obras para passar mensagens. Essas parábolas são bem elaboradas e, de fato, evidenciam o aspecto político aqui.

O problema é que PLUTO não é uma aula de semiótica, sim uma obra artística animada televisiva. É preciso, em animês, mesmo nos mais políticos e com o intuito de passar mensagens mais profundas, ter esse mesmo apresso pela narrativa, pelo jeito como a história é passada. É interessante? Sim, muito. Mas paradoxalmente chato, maçante e irritante de assistir.


PLUTO está disponível na Netflix, com opção de áudio original, dublagem em português e outros idiomas, e legendas em português e outros idiomas.


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