X-Men, os personagens e suas sagas em revistas da Marvel e em desenhos animados, talvez componham uma das peças de cultura pop prediletas deste que vos escreve. Há uma série de elementos no universo criado por Stan Lee e Jack Kirby, e mais tarde aprimorado por nomes como Chris Claremont, John Romita Jr., John Byrne e Boyd Kirkland, que batem forte quando bem executados.
Através de sua ficção científica e fantasia sobre pessoas com uma genética diferente, é possível traçar um paralelo metafórico sobre preconceito, discriminação, separação de classes e desumanização, que ressoa em qualquer um que já tenha passado por isso na vida real. Racismo, homofobia, transfobia, xenofobia, intolerância religiosa. No fim, X-Men é uma parábola para tudo isso.
Recentemente, a editora Pipoca & Nanquim lançou no Brasil a obra Vampiros, do grande mangaká Osamu Tezuka. Gibi originalmente publicado na revista Shonen Sunday, entre 1966 e 1967, Vampiros é, em temática e desenvolvimento, uma espécie de X-Men do autor, mas com um apuro narrativo que o próprio quadrinho da Marvel, à época, ainda não tinha.
Para não pegar ninguém desprevenido, uns esclarecimentos: embora tenha esse título, e tenha uma capa com a cor vermelha, que remete a sangue, Vampiros não é um mangá de terror, e sequer é sobre vampiros. Ao menos não sobre o imaginário clássico de vampiros.
O que Tezuka faz aqui é utilizar o termo “vampiro” para se referir a uma raça mutante que consegue, por meios variados, transicionar sua forma entre humano e algum outro animal. E utilizando isso como premissa, ele conta uma aventura tipicamente shounen, extremamente político, com ação, mistérios, reviravoltas, personagens marcantes e alguns tons de comédia. Inclusive, é nessa comédia onde estão os pontos mais inventivos da narrativa.
Na trama, há uma vila isolada nas montanhas onde moram pessoas com a capacidade de se transformar em animais, denominadas como “vampiros” por um pesquisador. Dela, Toppei, um jovem ligeiramente ingênuo, que pode se transformar em lobo, sai para a cidade em busca de um emprego como assistente no estúdio de animação do… Osamu Tezuka, que se insere como personagem na história.
Ocorre que o caminho dos dois se cruza com o de Rokuro Makube, o Rock, um adolescente “hamletiano” criminoso com o plano de roubar a fortuna de uma família na qual ele foi acolhido como afilhado. Por conta de um acidente envolvendo a transformação de Toppei em lobo e o pesquisador dos vampiros, amigo de Tezuka, Rokuro passa a chantageá-los, de modo a executar seu plano contra os membros da família que o acolheram.
Só que os eventos escalam, de maneira que uma tentativa de revolução dos vampiros é colocada em prática, envolvendo a mídia, a opinião pública, e com consequências violentas para a sociedade.
É possível dizer que os vampiros de Osamu Tezuka são outros. Não só por ele usar o termo para literalmente se referir a uma espécie fantasiosa diferente, mas também pela maneira como ele constrói o vilão Rock. Vampiros, narrativamente, são montados como figuras sedutoras, que atraem suas presas e consomem sua vida, sua vitalidade (bebendo o sangue), e Rock faz isso, só que de um jeito metafórico.
O garoto se embrenha nos ambientes e suga a vida daqueles ao redor. Por meio de chantagem, enganando, utilizando alguma vantagem para até mesmo escravizá-los. Por onde ele passa, a flama de vida em sua volta é absorvida para suas próprias ambições escusas.
A história de Vampiros é muito boa e se desenvolve para um lado político que, embora imaginada na década de 1960, permanece atual e pungente. Pois muitos dos problemas sociais ao redor do mundo, e que podem ser refletidos através do que é vivido pelos personagens metamorfos da trama, ainda são assombrosos hoje em dia. Você pode ser um negro, um gay, uma pessoa trans, um indígena, um pobre no Brasil, ou uma criança palestina morta pelo exército de Israel na Faixa de Gaza. O tema de determinada parcela da população sendo subjugada por outra, com mais poder político, ainda persiste.
Tezuka impressiona ainda na forma como ele conta essa história. Há elementos aqui, próprios da narrativa gráfica, que dão aquela empolgação ao perceber que só quadrinhos permitem tais recursos. Por exemplo, um dos talentos de Rock é conseguir se disfarçar com perfeição. Ao trocar de roupa e colocar uma peruca, ele simplesmente se torna outra pessoa, sem que ninguém sequer desconfie.
O divertido é que isso só é possível por histórias em quadrinhos não terem som e por o mangaká ter um traço parecido para vários de seus personagens. Então, com uma simples mudança no visual, e sem que a diferença de voz seja percebida (afinal, ela não existe), é claro que essa mudança seria perfeita. Parece uma piada com a própria narrativa em quadrinhos e com a capacidade do autor.
Outro ponto onde o humor é muito bem utilizado, e serve para elevar a história, é Tezuka se colocar como personagem na trama. Isso dá à obra um tom irônico, como se fosse uma autobiografia satírica, que quebra várias expectativas. Através de Tezuka, o personagem, o Tezuka, autor, aproveita para quebrar a quarta parede e fazer piada com fatos da época e outros autores contemporâneos. É uma história consciente de que é uma história, e de que está sendo contada para um leitor.
Posto tudo isso, Vampiros é uma obra impecável, em ideias, temas, em relevância narrativa e política. É o exemplo de que a alcunha de “deus dos mangás” cai bem ao Osamu Tezuka, que muito antes de muita gente já dominava e revolucionava a narrativa gráfica.
Galeria de fotos
Confira no álbum abaixo algumas fotos da edição brasileira de Vampiros:
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Essa resenha foi feita com base em edição cedida pela editora Pipoca & Nanquim como material de divulgação para a imprensa.
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