Nessa edição da coluna Sakuga no Hanashi, o bate-papo sobre o que tem rolado na indústria de animês entra em um caso polêmico! 👀

Durante a última temporada de verão, tivemos a estreia da adaptação de Zom 100: Bucket List of the Dead (Zombie ni Naru Made ni Shitai 100 no Koto), baseada no mangá escrito por Haro Aso (麻生羽呂) e ilustrado por Koutarou Takata (麻生羽呂) — o mangá sai no Brasil pela JBC, enquanto o animê é exibido na Netflix e na Crunchyroll.

imagem: poster promocional do anime de zom 100.

Divulgação: Bug Films.

Zom 100 se tornou um dos animês mais aguardados dessa safra, prometendo talvez ser uma das maiores surpresas do período, não só pelo material original, mas também pelos seus vídeos de divulgação, que apresentavam uma direção intrigante acompanhada por sequências de animação impressionantes e uma equipe forte por trás da produção! E depois de entregar um dos melhores episódios de estreia de 2023, não demorou muito para que a verdadeira realidade dessa produção viesse à tona.

 

A equipe

De forma superficial, a situação ao redor do animê de Zom 100 não deve ser novidade para muitos a esse ponto, depois de tantos adiamentos na sua exibição. Afinal, já estamos no final da Temporada de Outono e a série ainda não concluiu sua exibição, e apenas em novembro tivemos a confirmação de que seus últimos três episódios serão exibidos apenas no dia 25 de dezembro.

Talvez esse ainda tenha sido um prazo curto para finalizar o que a equipe havia planejado para o clímax da temporada, afinal, é evidente o desejo dos envolvidos de elevar ao máximo cada momento, entregando o melhor resultado possível a todo instante. Então, pode-se supor que haja algo ainda mais ambicioso planejado para a reta final, não?

imagem: cena de zoom 100 mostrando a evolução humana, do australopitecus ao homem engravatado indo trabalhar, terminando no zumbi.

Reprodução: BF.

Toda a produção de Zom 100 é super ambiciosa, sempre buscando aproveitar ao máximo todo o talento da sua poderosa equipe de animação. O time é formado por alguns dos maiores talentos até então afiliados ao estúdio OLM, agora trabalhando sob o estúdio BUG FILMS — um estúdio novo e ainda pequeno, que conta com o apoio de grandes nomes do OLM ao seu dispor.

Desde o seu primeiro episódio já é evidente que a equipe por trás do anime de Zom 100 é composta por artistas altamente talentosos em todos os departamentos da produção, desde sua equipe de diretores, artistas de storyboard, animadores, equipe de fotografia, e composição musical. Porém, em especial temos que destacar dois nomes para entender o que levou esse projeto à situação atual. Um deles é o próprio diretor da série, Kazuki Kawagoe, possivelmente um dos jovens diretores mais promissores atualmente na indústria, e o outro é o produtor do animê, Hiroaki Kojima (児島宏明).

imagem: cena de zoom 100.

Reprodução: BF.

Enquanto que Kawagoe e Kojima são dois dos principais indivíduos por trás do potencial bruto do animê, pode-se também considerar os dois como os principais indivíduos cuja a forma de produzir é responsável pelo colapso da produção de Zom 100.

Também gostaria de aproveitar e destacar alguns outros membros da equipe do animê. Começando pelo designer de personagens da produção, Kii Tanaka (田中紀衣), que também atuou como designer em produções como Hinomaru Sumo (2018), Hitoribocchi no Marumaru Seikatsu (2019), So I’m Spider, So What? (2021), entre outros. Em seguida, no comando da direção de arte da série, temos Taketo Gonpei (権瓶岳斗), o diretor de arte responsável por SSSS. Gridman e SSSS. Dynazenon. Menos conhecida, temos Nano Hasegawa (長谷川奈穂) atuando como diretora de fotografia no animê, tendo assumido a função anteriormente em projetos como Peach Boy Riverside (2021), Salarymen’s Club (2022) e Giant Beasts of Ars (2023).

imagem: mulher em cena de zom 100.

Reprodução: BF.

Temos aqui um time forte, acompanhado por Kawagoe, um diretor que se propõe a trazer à tona o melhor de cada animador, e cada departamento envolvido no projeto. E assim ele fez, no formato de episódio espetacular que acabaria se tornando uma faca de dois gumes para o andamento da produção.

 

Uma estreia ambiciosa, uma aposta audaciosa

Kazuki Kawagoe começou a trabalhar como diretor de episódios e como artista de storyboard em meio à produção de Beyblade Burst (2016) e ao longo de suas séries derivadas sob o teto do estúdio OLM, onde ele já trabalhava como assistente de produção em projetos da franquia Pokémon. Ele é um jovem diretor que nunca deixa de entregar momentos impactantes através da sua direção, do seu uso de cores, enquadramentos, e uma composição visual meticulosamente planejada. Isso sem falar das sequências de animação impressionantes, expondo todo o potencial das equipes de animadores sob sua direção.

imagem: reprodução de 4 frames de zom 100, ligados ao trabalho do protagonista.

Reprodução: BF.

Foi apenas com Komi Can’t Communicate (2021) que Kawagoe finalmente teve a oportunidade de assumir a direção interina de uma projeto dentro do OLM — onde ele comandaria a série, até então, por duas temporadas, — com o, já mencionado, Hiroaki Kojima como produtor de animação para o projeto.

imagem: poster do anime de komi-san.

Divulgação: OLM.

Atualmente filiado ao estúdio BUG FILMS, ele foi responsável pela produção do animê de Zom 100, onde junto de Hanako Ueda (上田華子), a diretora-assistente do animê, trouxe o espetáculo do episódio de estreia.

Desde de seus momentos iniciais, já temos um vislumbre do potencial da equipe de animação, através do filme de zumbis que abre o primeiro episódio. E até que cheguemos na próxima grande sequência de ação, Kawagoe consegue manter o público engajado através de um trabalho de direção espetacular, destacando sua habilidade para construção de cenas a todo momento, através do uso de cores.

imagem: 4 frames de zom 100 mostrando o uso de cores e luz e sombra.

Reprodução: BF.

Vemos isso com as cores do mundo se esvaindo através dos olhos do protagonista (Akira Tendou) ao longo do episódio, tornando-se predominante em tons de cinza em paralelo ao seu estado mental, culminando em uma explosão de cores com a chegada do apocalipse zumbi e a liberdade que ela representa,— enquadramento e composição visual — com cada cenário, cada perspectiva sendo cuidadosamente planejada, correlacionando com o estado mental do protagonista, de forma a tornar sua dor e seu mundo em algo que seja tangível para o público.

imagem: cenas do primeiro episódio de zom 100.

Reprodução: BF.

A qualidade da animação nesse primeiro episódio é impressionante, elevada de forma grandiosa através da direção de Kawagoe. Desde de sua cena inicial, até a grande libertação do protagonista em uma incrível explosão de animação! Desde cenários, animação de efeitos, frames de impacto, até a execução de ângulos e ideias complexos, com dezenas de zumbis sendo animados de forma constante e simultânea, um trabalho realmente árduo e demorado. Todos os aspectos da animação ao longo das duas principais sequências de ação do episódio, são dignas de grande destaque.

imagem: cenas de zom 100 que mostrando diferentes ângulos, enquadramentos, cenários e efeitos, ainda demonstrando como o uso de cores foi feito na produção.

Reprodução: BF.

Após uma estreia assim tão impressionante, grandes expectativas foram criadas para o que viria ao decorrer dos episódios. Mesmo que não se esperasse que todos os capítulos seguintes mantivessem um nível de qualidade tão alto quanto esse — até porque Hiroaki Kojima é o produtor —, era difícil prever ao certo o quão realmente alarmante seria para o projeto as consequências dessa escolha de apostar TUDO na estreia.

 

Problemas e adiamentos

É aqui que precisamos falar mais sobre o produtor de animação de Zom 100 e CEO do estúdio BUG FILMS, Hiroaki Kojima, porque esse produtor não é nenhum estranho quanto a essa estratégia de produção.

Assim como em Komi Can’t Communicate e A Ilha das Sombras (Summetime Rendering), os dois projetos anteriores do estúdio OLM em que ele atuou como produtor de animação, seus animês tendem a “sacrificar” a maioria dos seus episódios — geralmente na forma de terceirização — em prol de focar todos os esforços da equipe em somente alguns episódios específicos, entregando resultados que vão muito além do padrão. Nas produções do Kojima, a aposta em altos e baixos é a norma, mas em Zom 100 essa aposta talvez tenha condenado toda a produção.

imagem: poster do anime de summertime rendering.

Divulgação: OLM.

Também é necessário apontar novamente que o BUG FILMS é uma empresa pequena, que conta com apenas uma única equipe de produção, e que ao invés de fazer o que normalmente seria esperado de um estúdio de animação pequeno recém fundado (que é focar em trabalhos menores, geralmente trabalhando como um estúdio de subcontratação/terceirização), o BUG FILMS já pegou vários projetos logo de cara, sobrecarregando essa sua pequena equipe de produção.

Infelizmente, é uma prática que tem se tornado cada vez mais recorrente nos últimos anos, e mesmo que por motivos diferentes, geralmente todos levam ao mesmo resultado: adiamentos e produções insalubres. Só nos últimos anos tivemos o alarmante caso de Wonder Egg Priority (2021), no qual a produção entrou em colapso mediante o peso da sua própria ambição. Wonder Egg (ou WEP) foi uma reunião de novos talentos e grandes veteranos que, assim como em Zom 100, almejavam entregar o melhor resultado possível do começo ao fim, e que apesar das circunstâncias não serem favoráveis, seguiram em frente, até que tudo colapsou.

imagem: poster promocional de wonder egg priority.

Divulgação: CloverWorks.

O caso de WEP foi, à época, algo tão alarmante que capturou a atenção do grande público para os problemas e as condições extremamente insalubres às quais a equipe estava sofrendo. Correndo contra o cronograma, havia animadores passando noites em claro, se privando de uma boa alimentação, a ponto de perder peso; alguns até sendo hospitalizados.

Esse não foi o único caso alarmante. O Tio de Outro Mundo (2022) e Nier Automata Ver 1.1a (2023) são outros dois exemplos recentes de animês que tiveram suas produções sofrendo adiamentos por períodos indefinidos, seja por um motivo ou por outro.

Enquanto que de fato a pandemia de COVID-19 afetou fortemente os estúdios de animação chineses, que são essenciais para terceirização de muitas produções, alguns estúdios japoneses alegavam surtos de COVID como a causa de adiamentos e cronogramas problemáticos, na tentativa de mascarar problemas causados na verdade pela própria gestão dos estúdios. Pois bem, não tem COVID que mascare a situação de Zom 100, a qual está muito mais alinhada com o mesmo caso de Wonder Egg Priority.

imagem: poster do anime de nier automata.

Divulgação: A-1 Pictures.

Logo no segundo episódio, temos o exato oposto do que foi visto no primeiro. Enquanto que a estreia foi uma explosão de animação que não cessava em momento algum, o segundo episódio, apesar de possuir alguns bons momentos, foi em maior parte estático e com muitas sequências de animação que entregavam um resultado questionável, tanto em relação à animação em si, quanto em relação à composição.

A abertura que acompanhava o segundo episódio também apresentava um cenário alarmante, uma vez que ela claramente não parecia estar nem perto de finalizada, e continuaria assim por muitos dos seus episódios seguintes, Apesar de ter boas cenas originais, essa primeira versão da abertura reutilizava muito da animação do primeiro episódio ao longo de toda a sua duração, além de também possuir muitas cenas que serviam como óbvios “placeholders”.

 

Até então, essa abertura era completamente o oposto do trabalho habitual do Kawagoe, que junto dessa mesma equipe, foram responsáveis por criar a impressionante abertura da primeira temporada de Komi Can’t Communicate; um espetáculo estiloso de animação e direção criativa.

Assim como a de Komi-san, a abertura de Zom 100 tem a direção e storyboard por Kazuki Kawagoe (川越一生) e a supervisão de animação a cargo de Isao Nanba (難波 功); responsável por fazer toda o trabalho de correção sozinho. O que em retrospectiva parece ter sido má ideia, e pode muito bem ter sido um dos principais fatores do porquê dessa abertura ter levado tanto tempo para ser completamente finalizada.

imagem: 4 frames da abertura de zom 100.

Reprodução: BF.

A abertura continuaria sendo atualizada a cada novo episódio, sempre reutilizando cenas do primeiro ou do mais recente. Foi apenas no seu oitavo episódio que a abertura seria atualizada com novas cenas originais, quase três meses após a estreia do animê e já no fim da temporada de verão; mesmo assim, essa ainda não era a visão final. No episódio seguinte é que teríamos finalmente a abertura de fato finalizada. E apesar de todo esse atraso, o resultado final é genuinamente criativo, impressionante e, acima de tudo, divertido!

 

O resultado final é exatamente o tipo de trabalho que você poderia esperar do Kawagoe. Assim como foi o primeiro episódio, a abertura final é uma explosão de animação frenética, que não para de se mover em momento algum. Cada corte é muito bem construído, denso e rico em detalhes, todos desenhados à mão e muito bem incorporados diretamente na animação.

E falando em rico em detalhes, a última porção da abertura a ser finalizada, e provavelmente a mais trabalhosa, foi a grande e detalhada sequência de dança no final, onde o artista Kyo-hey foi responsável por desenvolver a coreografia.

imagem: 4 frames da versão final da abertura de zom 100.

Reprodução: BF.

Dado o contexto da produção, toda essa ambição pode muito bem ser considerada como uma eventual faca de dois gumes.

Em vez de dividir o talento e os esforços da equipe para nivelar a qualidade dos episódios, todo o esforço foi focado somente no primeiro, afetando severamente a capacidade da equipe de sequer produzir o segundo, formando uma “bola de neve” que acabaria se agravando cada vez mais. Chegou ao ponto que o estúdio SHAFT se juntaria a produção como co-produtor do animê a partir do seu terceiro episódio.

Essa situação iria perdurar até a estreia do seu 5º episódio — apesar do 4º ainda contar com algumas ótimas sequências, tudo em meio ao cronograma apertado, destacando a participação do animador William Lee.

imagem: cenas do quarto episódio de zom 100, com incêndio.

Reprodução: BF.

O 5º episódio conseguiu elevar novamente a barra de qualidade do projeto, um ponto alto graças à participação do animador Shoutarou Tamemizu (為水翔太郎), outro filiado ao estúdio OLM, agora sob o teto da BUG FILMS. Tamemizu fez sua estreia como diretor de episódio nesse 5º de Zom 100 e, utilizando seus contatos como animador, conseguiu trazer alguns outros bons animadores para lhe dar uma mão. 

imagem: cenas do quinto epiosódio de zom 100, com tubarão.

Reprodução: BF.

Mesmo com um cronograma apertado, esses “reforços” que Tamemizu conseguiu trazer a bordo do episódio, como Tatsuya Miki (三木達也), Isao Nanba (難波 功), Satoshi Nakano (中野悟史), William Lee, Haruyoshi Nomura (野村治嘉), entre outros, conseguiram garantir que o episódio conseguisse se movimentar bastante e, sob a direção de um ótimo animador, que ele também se movimentasse bem.

imagem: mais cenas do quinto episódio de zom 100.

Reprodução: BF.

Mas mesmo com um exemplo como elevando novamente o nível do projeto, aquela “bola de neve” criada pela concentração irresponsável de todos os esforços dessa pequena equipe na estreia, continuava a rolar e crescer cada vez mais. E isso levaria as eventuais recapitulações e ainda pior, os adiamentos!

Toda essa situação foi tão desastrosa que apenas nove dos doze episódios do animê foram exibidos durante a Temporada de Verão — junho a setembro —, deixando os episódios finais sem nenhuma previsão de quando seriam lançados por mais de dois meses. Foi apenas em novembro que tivemos a confirmação oficial de que os últimos três episódios do anime só seriam exibidos em 25 de dezembro de forma simultânea, mais de dois meses depois da exibição do nono episódio.

Esse enorme adiamento não foi o único sofrido durante a exibição de Zom 100. Desde o seu quarto episódio até o oitavo, todos esses capítulos tiveram sua exibição adiada em 24 horas em plataformas de streaming, como Crunchyroll, Netflix e Hulu, e seu sexto episódio ainda contou com um adiamento adicional de uma semana.

imagem: cena de zom 100 mostrando um prédio entre cerejeiras.

Reprodução: BF.

Ironicamente, a equipe por trás do animê, composta por veteranos do estúdio OLM, faz uma grande indireta às condições de trabalho dentro do próprio estúdio, uma vez que o time da BUG FILMS cria uma paródia do OLM para representar a empresa horrível a qual Akira se junta no primeiro episódio.

imagem: cena de personagem mostrando cartão de funcionária da empresa ZLM.

Reprodução: BF.

Tanto o prédio da empresa, quanto o logo da empresa nos crachás, são referências ao prédio e logo do estúdio OLM. E olha a situação na qual a equipe se encontra agora, tão crítica — apenas para repetir os mesmo erros?

 

Dúvidas e lições deixadas por Zom 100

Zom 100: Bucket List of the Dead teve uma estreia simplesmente fenomenal, entregando um dos melhores episódios de 2023, sem sombra de dúvida. Mas será que valeu a pena?

Kazuki Kawagoe se manteve fiel à sua visão — e Hiroaki Kojima à seu método de produção —, almejando criar algo genuinamente tão ambicioso, apesar do estúdio possuir apenas uma equipe pequena com outros projetos em desenvolvimento em paralelo. Mas não parece justificável prejudicar a equipe e comprometer toda a produção.

É a função de um líder tomar as decisões a zelar pelo bem-estar do projeto e da sua equipe; criar algo tão ambicioso e complexo quanto foi a estreia, tomando todo o tempo, recursos e talentos de uma produção limitada, com um cronograma apertado, que poderia ter sido melhor distribuído visando estabilizar os episódios seguintes — ou mesmo uma abertura tão complexa, supervisionada por apenas uma pessoa, que acabou levando quase três meses após a estreia para ser finalizada — foi mesmo a escolha correta a se tomar?

imagem: cena de zom 100.

Reprodução: BF.

Encerramos aqui mais uma edição. Novamente, espero que esse texto tenha sido informativo, como também proveitoso para você. Até à próxima!


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Sakuga no Hanashi é uma coluna assinada por Tonatiú Saraiva, sendo um espaço para abordar questões técnicas e discutir sobre a produção das animações japonesas.

O texto presente nesta coluna é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.