A esse ponto, qualquer leitor que acompanha o lançamentos de mangás no mercado brasileiro deve ter tido algum contato com Junji Ito, mesmo por alguma curiosidade mórbida já que, atualmente, conteúdo do autor não falta por aqui.
No meio de tantas opções, o interessado pode ficar na dúvida do que vale de fato a pena dar uma chance, ainda mais porque as obras de Ito são muito no 8 ou 80, além de serem vários contos com potenciais diferentes dentro de uma mesma coletânea. No entanto, já fique sabendo: das várias coleções, O Beco é uma das que não valem a pena.
O Beco é uma coletânea com onze histórias que variam bastante de qualidade entre si, apesar da fórmula de sucesso de Ito (não veja como elogio) estar presente em todas elas. Mas o problema de O Beco é que, com exceção de “Cidade sem Ruas”, o máximo que os contos mais legais conseguem ser são interessantes, mas o resto é completamente descartável.
Podemos aplicar uma divisão clara entre os contos em O Beco (e talvez em toda a obra de Junji Ito): aqueles com apoio principal no terror visual e aqueles que destacam a psique humana para proporcionar o horror. No geral, o autor se propõe a sempre colocar coisas relacionadas ao psicológico mesmo quando entrega terror visualmente, mas as histórias de destaque mais são as que se apoiam simplesmente nas enganações da própria mente dos personagens.
“Modelo Fotográfica”, por exemplo, é um daqueles contos que parecem tentar se apoiar na mescla entre os dois tipos, mas o que temos como resultado é uma das piores histórias da coletânea.
A modelo que dá título para a história, inclusive, já é uma personagem conhecida ao longo da produção de Ito, sendo até mesmo recorrente, mas isso não quer dizer que a história ao redor dela é bem formulada. Todo o questionamento sobre o quanto o protagonista fica assustado com a aparência da personagem perde o rumo e se torna apenas uma história que parece ter como conclusão “gente feia é assustadora e posso provar”.
Mas o problema de “Modelo Fotográfica” não é a parte da feiura em si, já que “Lembranças” usa o mesmo conceito como alicerce e mesmo assim consegue nos dar um conto de fato perturbador. Na história, vemos uma garota que, mesmo sabendo que é bonita, tem um medo avassalador de se tornar feia, até mesmo alimentando uma memória de que, por um certo período de sua vida, tinha um rosto feio.
A construção dessa narrativa se conecta bastante com distúrbios psicológicos, pois acompanhamos uma garota delirando sobre o que ela possivelmente foi no passado — no fim, nos é entregue é um retrato sobre o narcisismo que alcança até mesmo a psicopatia.
Nessa mesma veia de crítica aos defeitos humanos, temos “Quarto Coletivo”… mas essa funciona muito mais como comédia do que terror, comparável a uma esquete do Zorra Total. Toda a situação de duas mulheres discutindo durante a história sobre a indenização após um acidente de trânsito parecia querer levar a algo assustador no final, pois as colegas de quarto das duas estavam agindo de um jeito estranho, porém é difícil se prender na proposta considerando o tom acidentalmente cômico presente. Mesmo quando finalmente as aparições visualmente assustadoras dão as caras, não tem mais como estar imerso na proposta.
Outra história que mescla horror psicológico com o visual é “Caminhão do Sorvete”. O conto nos mostra a história de um pai que conseguiu a guarda do filho, porém é superprotetor demais, gerando uma insegurança nele quando o filho começa a demonstrar querer voltar a morar com a mãe. Para agradá-lo, o pai decide deixar o filho passear no caminhão de sorvete que tanto queria, mas as coisas pioram quando o garoto começa a mudar o comportamento e, quando é questionado sobre isso, ameaça voltar a morar com a mãe, deixando o pai em um conflito. No fim das contas, o conto até tenta criar uma situação interessante, mas falha muito em sua narrativa para se sobressair.
Seguindo uma proposta parecida na pegada de “usar um conceito nada a ver para criar terror”, temos “Mofo”, que, apesar de ser algo bem direto ao ponto, consegue entregar um roteiro decente, sendo a história mais arroz com feijão da coletânea.
Algo semelhante acontece em “Fumódromo” — apesar de não ter considerado exatamente uma história capaz de entregar o medo, segue uma proposta básica que funciona o suficiente, mesmo tendo um final bem aberto até para os padrões de Junji Ito.
Na mesma pegada, ainda temos “Hospedaria”, mas esse provavelmente é o conto mais falho em todos os aspectos dentro da coletânea. É uma história incapaz de criar uma construção impactante o bastante. É aquela clássica história de fantasma que não consegue nenhuma reação do público na rodinha de amigos, pois contador se enrola demais enquanto narra o ocorrido.
Isso acontece porque o início do conto inteiro é focado em mostrar um velho enlouquecendo ao querer fazer uma casa de banho. Anos depois, vemos a filha dele reclamando enquanto relembra sobre o pai. Quando finalmente as coisas vão seguindo para a conclusão, quem assume o papel de protagonista é um rapaz que escutou a história sobre o velho, mas ele é totalmente desconexo de tudo. É criado apenas um estranhamento que não chega a perturbar, até porque rapaz não parece ligar muito para tudo de assustador acontecendo em sua volta.
Falando em história de fantasma, a coletânea conta com duas dessas: “Permissão” e “O Beco”, o conto-título do tomo. “Permissão” é uma história que inicialmente não parece ser de fantasma, na qual acompanhamos um homem passando anos pedindo a mão da garota que ele ama em casamento para o pai dela. Ele vai perdendo cada vez mais a paciência, a ponto de desistir da garota. Mas depois de, aparentemente, um acidente com sua nova mulher, o homem volta a insistir na antiga amada, usando métodos mais extremos. Parece ter tudo para desembocar em outra coisa, então a surpresa de usar um conceito sobrenatural aqui funciona muito melhor do que outros contos.
“O Beco” já é um conto que deixa mais claro o uso do aspecto sobrenatural em sua criação, pois, logo depois de se mudar para um apartamento de uma pensão, o protagonista começa a escutar vozes assustadoras no beco que fica logo atrás de onde ele mora. Depois, um homem conta a ele a história sobre mortes ocorridas naquele local, deixando o protagonista fique mais curioso com o caso. Nesse meio tempo, ele também comenta com a filha da dona da pensão sobre os barulhos e, aos poucos, descobrimos qual a relação dela com o beco, gerando um bom suspense para o conto.
Antes de comentar sobre o grande destaque da coletânea, ainda temos “A Queda”. Na história, uma cidade começa a ter um surto de tentativas de suicídio. As pessoas sobreviventes, depois de hospitalizadas, de repente desaparecem e começam a cair do céu. Apesar de tentar usar bem o conceito, não chega a ser uma história assustadora, mesmo com a temática pesada. Uma curiosidade dessa história é que é possível associá-la com uma parte dos capítulos mais recentes de Chainsaw Man, a ponto de que esse conto de Ito realmente parece ter influenciado o mangá de Fujimoto.
Agora finalmente chegamos em “Cidade sem Ruas”. Esse conto tem um desenvolvimento bem esquisito, às vezes até soando sem pé nem cabeça, já que a metade inicial da história por muito tempo não parece ter conexão com a segunda parte.
No início, acompanhamos Saiko, uma garota atormentada por estar sonhando com um colega de classe todos os dias, fazendo com que ela comece a criar sentimentos por ele. Certo dia, ela descobre que isso pode ter uma causa proposital, mas logo depois de finalmente confirmar isso, o jovem é encontrado morto.
Depois do causo, a pegada muda completamente, focando na família da garota, que começou a agir de forma perturbadora. Eles tentam de tudo para ver o que garota está fazendo quando está em seu quarto, e, por isso, ela decide ficar o máximo de tempo fora de casa, ao ponto de decidir ir para a casa de sua tia.
Porém, as coisas estão ainda mais assustadoras por lá, já que, na cidade onde a tia mora, a norma se tornou todos terem sua privacidade invadida, sendo literalmente um crime negar essa “liberdade”.
Nesse ponto, já é possível perceber que o conceito de invasão de privacidade é justamente o tema que a história se propõe a brincar, a usando de diversas maneiras, desde o rapaz apaixonado invadindo a casa da protagonista para fazê-la sonhar com ele de propósito, passando pelos pais e chegando no absurdo: toda uma cidade ter abraçado esse conceito abertamente. Em um certo ponto, até mesmo a protagonista acaba fazendo isso quando está tentando evitar os pais ficando na casa de uma amiga, que a repreende por querer ter seu próprio espaço. Tudo é muito bem encaixado, até mesmo o motivo da morte do garoto da primeira parte. É uma ótima reflexão sobre a falta de privacidade e como ela pode, em vários níveis, ser de fato bem assustadora.
Apesar de entregar um conteúdo aproveitável em algumas histórias, O Beco é uma coletânea que pode facilmente ser deixada de lado. No geral, vemos a fórmula de Junji Ito ser reutilizada ao extremo e, como infelizmente foi justamente isso que tornou o autor popular, devemos ter mais e mais obras do autor saindo por aqui, mesmo já estando saturado. Talvez o autor seja melhor aproveitado por alguém capaz de fazer um apanhado de contos que valham a pena para, assim, de fato conseguir formar uma coletânea interessante de ser lida por inteiro.
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Essa resenha foi feita com base nas edições cedidas como material de divulgação para a imprensa pela editora Pipoca & Nanquim.
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Tem coletânea de melhores contos já, acho q vc ta meio por fora, rs. De qualquer forma, eu gostei das histórias, sempre acho interessantes e sempre trazem algo diferente. Se vc tá cansado de junji ito, o que é um direito seu, sugiro ir ler outra coisa.
Mano, não tem como gostar daquela do sorvete não. Eu acabei essa história e fiquei tipo… “Puta que pariu, essa foi uma das piores historias que eu já vi em qualquer anime/mangá, de longe”
A frase logo do começo diz tudo, as histórias do Ito só bem 8 ou 80. As vezes você tem algumas das melhores histórias curtas do mundo dos mangás e outras vezes… Você tem a menina caracol cuja única utilidade é talvez ter inspirado Uzumaki parcialmente. É isto.