Recorrer aos mitos de fundação do Japão é sempre interessante de modo a entender como esses escritos sagrados são utilizados como tropos em obras artísticas atuais. Uma das passagens do Kojiki, a “bíblia” do xintoísmo, que é recorrentemente utilizada é a do primeiro filho. Dessa passagem, é criado um clichê amplamente replicado: o da criança monstro renegada.
Explico. Na gênese da história do Japão, é contado que os deuses Izanagi e Izanami vieram à Terra para procriar e povoar as ilhas. Contudo, o primeiro filho do casal nasce como uma criatura em forma de verme. Isso ocorre porque a iniciativa da relação sexual havia sido tomada pela Izanami, e seria errado ser a mulher a querer transar em vez do homem.
Olhar para aquela criança verme monstruosa seria uma vergonha para Izanagi e Izanami, seria a prova viva do pecado, de um erro cometido por eles. Então, o casal embrulha o primogênito em um barco e o joga para o mar, fingindo que aquilo nunca teria acontecido. A partir daí, eles têm outros filhos, sempre com o cuidado de que o Izanagi é o que toma a iniciativa sexual. Dessa maneira pura, nascem os demais deuses do xintoísmo, incluindo a deusa do sol, Amaterasu, a mais importante desse panteão, e de quem é dito que a família real japonesa descende ainda hoje.
Esse mito da primeira criança renegada é frequentemente utilizado na produção cultural nipônica. Podemos pensar em GeGeGe no Kitarou, de Shigeru Mizuki, onde o protagonista literalmente é uma criança monstro rejeitada que volta de um jeito aterrorizante, ou em Naruto, de Masashi Kishimoto, com o ninja sendo hostilizado por todos por ter dentro dele um monstro, algo que sequer é sua culpa.
Mas esses tropos de renegarem, se livrarem, esconderem ou fingirem que esqueceram do resultado de um pecado não é exclusivo da literatura japonesa. Frankenstein, da escritora britânica Mary Shelley, é uma obra que conversa com esse conceito. Na trama, o Dr. Victor Frankenstein decide criar vida a partir de partes de cadáveres. O experimento dá certo, porém, a criatura a que ele anima se mostra um monstro, do qual ele quer se livrar. A criatura nasce do pecado de Frankenstein, e sua existência é o terror de perceber esse erro.
Agora, como seria Frankenstein feito com esse background da literatura japonesa? A resposta está na adaptação feita pelo Junji Ito. Originalmente publicado entre entre 1994 e 1998, o mangá chegou ao Brasil em 2021 pela editora Pipoca e Nanquim, sendo relançado no ano passado, parte da Masterpiece Collection, coletânea em 12 volumes que reúne algumas das obras mais aclamadas do autor.
Esses mangás do Junji Ito que reúnem contos são uma roleta russa. Eles podem trazer uma maioria de histórias ótimas e que valem a leitura, ou podem ser um mar de mediocridade. Felizmente, Frankenstein e outras histórias de horror está no primeiro time. O mangá pode ser dividido em três partes: a primeira, com uma série de contos envolvendo o personagem Toru Oshikiri (já falo deles); a segunda, com a releitura de Frankenstein; e um “epílogo” com mini historinhas de horror e comédia. Cada uma a seu estilo, as três partes trazem Ito em seu melhor em narrativa e execução de ideias.
A melhor é, justamente, a que dá nome ao gibi. Junji Ito pega a história da Mary Shelley e a interpreta livremente, modificando pontos e desfechos. Seu cerne ainda está lá, mas é contado ao estilo Junji Ito. Espere então aquela construção narrativa onde a bizarrice escalona conforme a trama ganha gás. E espere também uma caneta afiada, com o autor desenhando a criatura com o primor nojento de um machucado infeccionado vazando pus e só revelando ela por completo quando o choque se faz necessário.
Há um charme especial em ler Frankenstein entre as sarjetas de Ito. Não só pela arte avassaladora que é seu desenho, mas a história da Shelley conversa tanto com esse clichê histórico e religioso do Japão que a trama num todo ganha um peso ainda maior. E embora esse não seja um quadrinho onde o Ito vá tanto ao seu nonsense habitual, ele serve como um atestado de que ele pode conquistar o horror através de diferentes propostas. Os quadros finais, com a criatura chorando, trazem um dos momentos mais bonitos que já li do mangaká.
A primeira metade do tomo é composta por seis contos com o personagem Toru Oshikiri. Digamos que Frankenstein é um “lado B”, e aqui temos o “lado A” de Junji Ito, com o mencionado nonsense que faltava sendo explorado dessa vez. É a mesma proposta narrativa presente, por exemplo, em Uzumaki: cada história funciona isoladamente, mas calha delas se juntarem em algo maior, com eventos de umas ressoando em outras.
Oshikiri mora em uma mansão de arquitetura europeia que impressiona quando vista de fora. Mas ele tem vivido ali sozinho, pois seus pais passam a maior parte do ano viajando a trabalho. Ou melhor, “sozinho”, já que o local é uma espécie de satélite interdimensional para outras versões dele, de sua família e de conhecidos seus, que perambulam entre realidades causando horrores grotescos com que têm contato.
Imagine então que, por trazer a ideia de múltiplas dimensões num mesmo lugar, acompanhamos diferentes versões dos mesmos personagens, com situações vividas nessas dimensões impactando em acontecimentos de outras. Por vezes, não sabemos qual personagem é qual, se aquele Oshikiri que estamos seguindo na história é o mesmo psicopata da anterior, e isso é parte do que torna a experiência muito boa.
A partir disso, Junji Ito trabalha ao grotesco temas como aquele medo infantil de ficar sozinho em casa, como o conceito de “duplo”, onde uma versão sua virá para tomar seu lugar, como autoestima (Oshikiri é retratado como alguém que se sente inferior por sua baixa estatura), como paranoia. Meu conto predileto entre esses é Amizades por Correspondência, onde uma menina se corresponde com amigas pelo correio. Mas o endereço nas cartas é o da casa dela. Como é uma realidade onde há portas para outros universos, seria esse um caso onde ela troca mensagens interdimensionais, ou é algo que está só na cabeça dela?
O quadrinho segue com mais dois contos de horror e mistério, Funeral da Boneca do Inferno e Imobilizador Facial. Bem mais curtos que o resto, são ideias que agridem logo de cara. No primeiro, crianças no mundo têm se transformado em bonecas. Quando isso ocorre com a filha de um casal, eles decidem mantê-la com eles em vez de cremá-la ou enterrá-la. Porém, com o passar do tempo, eles entendem o porquê de outros pais não fazerem o mesmo. O outro, mais mundano, porém duplamente perturbador, é sobre uma paciente que fica presa num aparelho facial durante uma consulta médica.
Por fim, o trabalho é encerrado com mais dois minicontos. Dessa vez, de humor, quase como se fossem crônicas do dia a dia sobre uma cachorrinha chamada Non-non.
Frankenstein e outras histórias de horror é um mangá excelente do Junji Ito. A entrada é impressionante, o prato principal é impecável e as sobremesas valem a conferida. Numa variedade imensa de obras do autor por aqui, essa é uma das que realmente fazem valer o tão repetido título de Mestre do Horror que atribuem a ele.
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Essa resenha foi feita com base nas edições cedidas como material de divulgação para a imprensa pela editora Pipoca & Nanquim.
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