Todos nós crescemos ouvindo uma porção de histórias, causos e contos de fadas ditos terem acontecido há muitos e muitos anos atrás. No Japão, as crianças ouvem não apenas sobre os contos de fadas europeus já assimilados, mas também as histórias do Issunbôshi, do Momotarô, da Esposa Garça, do Cortador de Bambu… Os setsuwa do Konjaku Monogatari, os mukashi banashi, as histórias da corte e as histórias de terror recheadas de yôkais, fantasmas e assombrações.
Quantas dessas histórias não giram em torno de mulheres? Atormentadas, amaldiçoadas… e amaldiçoando o protagonista masculino que, nos contos fantásticos japoneses, ainda que seja o herói, é frequentemente uma figura passiva. Boas ou más, quem gira a roda do destino dos contos japoneses são as personagens femininas.
Muito antes da internet existir, dos críticos de YouTube falarem sobre os filmes do tipo “bom pra ela” ou dos edits no TikTok de “female rage” inspirados no filme Pearl (2022), Takako Takahashi já escrevia sobre a condição de mulher e mãe japonesas e colocava suas personagens para queimar escola. Hoje, nomes como Sayaka Murata e Aoko Matsuda não têm receio em, se necessário, serem brutais. Por isso, neste 8 de março, vamos falar sobre o peculiar e bem-humorado Onde vivem as monstras, de Aoko Matsuda.
Publicado pela primeira vez em 2016 sob o título Obachantachi no iru tokoro, o livro foi lançado no Brasil ano passado pela editora Gutenberg. A edição brasileira foi traduzida pela Rita Kohl. O livro é composto por dezessete contos inspirados nas tradicionais histórias de fantasmas japonesas. Matsuda reapresenta essas histórias sob uma perspectiva feminista, de maneira sagaz e bem-humorada.
Apesar de aparentemente independentes uns dos outros, conforme a leitura avança, os contos se intercruzam, mostrando fazer parte do mesmo universo. Neles, suas personagens espirituosas, quase sempre fantasmas, aparecem sob disfarces inesperados e interagem com os humanos vivos prestando os mais diversos serviços a eles: cuidar de crianças, vender produtos, revelar a verdade sobre a morte de um familiar etc.
As histórias do livro de Matsuda são sensacionais. Menos contundentes do que seu conto “A mulher morre”, publicado na revista Granta em 2019, também traduzido pela Rita Kohl, os contos de Onde vivem as monstras usam e abusam do bom humor e da acidez para tratar questões a respeito da emancipação e das mudanças na vida das mulheres japonesas.
Ao longo da leitura, os contos de Matsuda assumem um tom quase semelhante ao do animê Fukigen Mononokean (série de 2016 e 2019 disponível na Crunchyroll sob o título The Morose Mononokean), já que em ambas as obras a convivência entre personagens humanas e sobrenaturais acarretam situações curiosas. Entretanto, nas histórias de Matsuda, o humor distrai o leitor apenas por tempo o bastante até arremessar na cara dele — tal qual uma esposa enciumada ao descobrir uma traição do marido — um prato de cruel realidade.
Os contos de Onde vivem as monstras abordam pressão estética, abandono paternal, divórcio, jornada dupla, maternidade solo, bem como as mudanças do que é ou já foi esperado ou mesmo permitido às mulheres japonesas. Aliados a tudo isso, os gracejos sagazes das personagens de Matsuda parecem às vezes quase advogar em prol de um “fé nas malucas”. E os argumentos delas são tão convincentes que, ao terminar “Zelotipia”, talvez os leitores se perguntem “e por que não?”.
Brincadeiras à parte, a prosa de Aoko Matsuda é direta, contemporânea e definitivamente trabalhada. Mesmo lendo através da tradução — como sempre fluída e soando bem, Rita desenvolveu uma mão muito boa para traduzir literatura feminina contemporânea — é possível perceber que Matsuda têm um domínio de gêneros textuais. As personagens não soam todas iguais e em alguns contos a autora emula outros gêneros que não o conto. Causa uma quebra no ritmo de leitura, cria um respiro divertido, é uma boa ideia.
Onde vivem as monstras é um livro engraçado, espirituoso e bem pensado capaz de envolver o leitor e assalta-lo, nos momentos certos, com reflexões acerca da condição feminina na sociedade japonesa e no mundo. Ele soa como uma piada contada por uma professora já meio velha numa boa aula sobre a tragédia Medeia. Uma piada interna engraçada, mas, ao mesmo tempo, incômoda, que diversos tipos diferentes de mulheres entendem, agora entregue a todo mundo.
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